19 de abril de 2014

A Caça - Perspectiva Histórica e Receitas Tradicionais

Desde o paleolítico bife de “auroch” até ao guérardiano navarin de faisão, a caça tem acompanhado o homem no atravessar de milénios. Alimento assistencial desde a primeira hora omnívora, recolheu a atenção primeira dos nossos antepassados.
É impossível debruçar-mo-nos sobre a aurora do homem sem que nos apareçam, a todo o momento, os sinais do homem caçador.
Como única garantia de vida, a caça está presente nos restos de comida que nos chegam até hoje, nas pedras e utensílios para o seu abate, na utilização de peles para agasalho, no uso de ossos e dentes para armas e enfeites, na representação portentosa dos seus corpos e movimentos, em toda a arte rupestre.
Toda a estrutura económica da sociedade estava baseada na caça que fornecia tudo o que era essencial para a vida. Foi a partir dela que nasceu a técnica, que deu origem aos primeiros instrumentos, e foi a partir dela que o homem desenvolveu as suas faculdades de astúcia, que lhes eram essenciais numa luta desigual com animais superiores em tamanho, em força e em número.
Foi também a caça que deu os primeiros deuses aos homens, elegendo cada clã ou cada horda um símbolo totémico animal que, em forma de alegoria, protegia os homens da sua mais directa preocupação: a fome.
Instituídas em figuras de protecção e agradecimento, logo se transformam em objectos de devoção que, mais tarde, dariam origem ao deus-animal que tão comum haveria de ser nas civilizações proto-egipcías e em quase todas as regiões onde houve uma ligação intima e estreita entre os povos e a sua caça.
Apesar de transformados em símbolos de veneração , os animais de caça escolhidos para deuses ou totens, não eram subtraídos à dieta alimentar dos povos que os deificaram. (Nota Breve Sobre a Caça na Cozinha, pp. 59-60)

Galinhola Real

Barre a galinhola com uma massa feita de alho, sal e salsa e envolva-a em papel de alumínio, antes de a levar ao forno onde deve estar cerca de trinta e cinco minutos.
Com o fígado, a tripa e duas gemas de ovo, faça uma massa que deve passar por duas colheres de sopa de manteiga e um cálice de armagnac. Deixe fazer este molho durante três minutos, ao fim dos quais deverá juntar uma colher de sopa de mostarda de muito boa qualidade. Passe o molho por um passador e retire a galinhola do forno. Passe toda a ave pelo molho que acabou de fazer e sirva de imediato. (pp. 95-96)

Um verdadeiro livro de caça e de receitas, que todo o caçador deve possuir.
Na primeira parte acedemos a uma perspectiva histórica da caça e da relação do homem com os alimentos - muito interessante e muito bem conseguida pelo autor, que a faz desde os primórdios até à actualidade, e na segunda metade usufruímos de belíssimas receitas tradicionais de caça, que vão desde o pequeno tordo até ao poderoso javali ou majestoso veado, sem esquecer o coelho, a lebre, a codorniz, a galinhola ou a perdiz, entre outras espécies do nosso calendário venatório.

Alfredo Saramago (1997). A Caça - Perspectiva Histórica e Receitas Tradicionais. Colares Editora.

18 de abril de 2014

A Caça e a Literatura - Colóquio

No próximo dia 26 de Abril, das 10h15 às 16h30, na Casa do Paço, no Município de Tarouca, decorrerá um colóquio, denominado "A Caça e a Literatura", cujo programa aqui se anuncia.


16 de abril de 2014

Veados na Raia

Em “Veados na Raia”, de Manuel Vassalo, desfrutamos de belíssimos relatos e recolhemos diversa informação sobre a caça de aproximação aos veados no concelho de Idanha-a-Nova; no Vale de Avide, na Morena ou nos Tronqueirões.
Ao longo das mais de trezentas páginas que nos oferece, acedemos a equipamentos e acessórios, vestuário e calçado, indo o autor ao pormenor de descrever a forma como se movimenta e coloca os pés, para além de nos apresentar armas, munições e calibres, explicando as razões da preferência d'um em relação àquel’outro.
No essencial, apesar de nunca o dizer directamente, nos traça e define o perfil do  verdadeiro caçador e de como este se deve relacionar com o animal que persegue.
Tomámos igualmente conhecimento do significado de mais de cem termos regionais, como “A-de-rabo”, “Boca-noite”, “Carujér” ou “Undo”, entre muitos outros.
Veterinário de formação, o Dr. Vassalo, veio partilhar connosco a sua experiência e saber adquiridos como Guia de Caça na aproximação aos veados, valorizando sempre o  lance e o aproveitamento da carne, fazendo-o com a mesma naturalidade e humildade como encara a vida e a morte.
Em tudo nos deixa uma opinião pessoal muito válida, mas que nos persiste em qualificar, nas suas próprias palavras, de: “Vale o que vale”!

“Este despretencioso livro é uma singela homenagem a uma população que sempre me tratou com toda a consideração e a uma região onde tive caçadas memoriais, usufruindo das suas belíssimas paisagens. Por estas razões decidi usar termos regionais ao longo do texto e que se encontram em itálico, podendo o seu significado ser consultado no glossário. Também é um contributo meu para com uma espécie que ao longo de anos me tem vindo a proporcionar um prazer imenso. Por isso não faço alusão aos que são medalha ou não, pois pretendo única e exclusivamente realçar a espécie, o lance e o caçador.
Ao longo dos anos fui tirando notas das caçadas que realizava. Escolhi aleatoriamente algumas e outras, para mim também interessantes, ficaram na gaveta da minha memória.
Não quero deixar de esclarecer, que os conhecimentos, apresentados neste livro, não são científicos, mas sim o resultado de observações realizadas no campo, ao longo de mais de vinte anos. Alguns, já os vi descritos em livros, contudo pude pessoalmente comprova-los, outros foram única e simplesmente presenciados por mim e discutidos com amigos, como por exemplo o Professor Dr. Alberto Ferreira, pois para ele é importante este conhecimento prático.
Neste livro faço transparecer a minha concepção da caça. Para mim, a caça é algo mais do que fazer uma colecção de troféus ou desporto. É-me impensável fazer desporto com a vida de um animal, pois ela não se insere em nenhum desporto e não é ou não devia ser, uma competição entre dois seres humanos. Na minha modesta opinião, há seres humanos, que ainda têm no seu código genético, o gene da predação. Esta foi a primeira actividade do Homem, muito antes de fixar e tornar agricultor. A caça é uma necessidade genética, um acto de predação entre o predador e a sua presa e nestes meus singelos contos, mais não pretendo do que valorizá-la mas dignificando a importância dos animais, a sua capacidade de adaptação e de superação da adversidade, quiçá uma lição de vida para os humanos...” (pp.9)

Manuel Vassalo (2013). Veados na Raia. Município de Idanha-a-Nova.

13 de abril de 2014

Caça – Filosofia para Todos

"A caça tem sido, ao longo do tempo e da história, uma pedra basilar nas tradições artísticas, religiosas e filosóficas de inúmeras culturas. De facto, precede a caça a própria civilização. No entanto, poucos percursos continuam a ser tão controversos como este, pelos contínuos embates no centro de questões fundamentais, como a morte, a personificação, a vida não-humana e a moralidade. Este livro encerra uma admirável colecção de pensamentos provocantes de diversos autores e de novos ensaios, produzidos através de um espectro académico e não académico, que se movem para além dos argumentos familiares e debates sobre a caça.
Filosoficamente estimulante, proporciona novas perspectivas numa diversidade de tópicos:
- Temas relacionados com a ética da caça;
- As experiências e perspectivas do caçador;
- A relação existente entre caça e natureza e natureza humana;
- A caça na cultura, política e tradição.
Na peugada de um dos assuntos mais controversos da sociedade contemporânea.
Caça – Filosofia para Todos, é uma obra que nos veio agitar estereótipos e convidar a pensar profundamente o significado de ser humano.”
Trata-se, efectivamente, de um livro que merece tradução para português pela actualidade e pertinência dos assuntos que trata.
Saiu em primeira edição no ano de 2010 e foi compilado por Nathan Kowalsky, Professor assistente de Filosofia, na Universidade de Alberta. Para além desta obra, o autor publicou diversos ensaios e foi consultor do Governo Canadiano em assuntos de carácter ambiental.
É caçador e dedica o livro ao seu avô, falecido em 2009, com quem caçava, na companhia do seu pai, nas imensas planícies canadianas.
Vale a pena!

6 de abril de 2014

Como Falar para um Anti-caça

Quando se é editor de uma revista de caça em Manhattan, passa-se a ter uma noção da verdadeira dimensão da ignorância em relação ao mundo selvagem e constata-se que é da moda, mesmo um conceito moral, nos círculos mais sofisticados, menosprezar hipocritamente as realidades da natureza.
Ficarás perplexo ao verificar que muitos destes urbanos elitistas se opõem ao corte de árvores, mas que optam por viver confortavelmente em casas de madeira, equipadas por lareiras onde as queimam; que conduzem SUV’s de elevadas cilindradas, mas que apoiam restrições cegas ao uso de gaz e combustível fóssil; que clamam por energia limpa, mas que se manifestam ruidosamente quando se vêem confrontados com ventoinhas nas proximidades das suas casas de praia; e que se opõem à caça, mas que beneficiam dela de toda a vez que viajam de avião, uma vez que se previne o embate de gansos nas aeronaves.
E que, por vezes, te encontras mesmo numa troca de palavras sem qualquer sentido e totalmente inconcebível com uma dessas pessoas. Por isso é que me vi na contingência de criar um modelo, constituído por cinco etapas, de como se deve falar para um anti-caça. Por exemplo, há alguns anos, numa aprazível noite de Verão, em Nova Iorque, fui convidado a estar presente num jantar que teve lugar num restaurante da moda daquela cidade. Sentei-me defronte de uma mulher que me pareceu ser, pela forma como se vestia e agia, uma pedante. Disse-me que era advogada e perguntou-me o que fazia. Respondi-lhe que editava uma revista de caça.
A mulher, momentos depois, enquanto espetava o garfo numa das cenouras que tinha no prato, olhou-me nos olhos e disparou: “Sou vegetariana; oponho-me a tudo o que é caça.”
O primeiro passo a respeitar num debate com anti-caças é ser cordial, mesmo quando verborreiam. Ajuda a manter a conversação, a temperar as emoções e dá-lhes motivação; afinal de contas ignoram a verdade politicamente incorrecta que assiste à caça, por isso sorri-lhe.
O segundo passo é confrontar o anti-caça com as suas convicções, contradições e tudo o resto. Força-los a explicar a base das suas conclusões contra a caça. É a aplicação do Método Socrático e resulta maravilhosamente perante estes utópicos troca-casacas, pessoas que baseiam o seu conhecimento da natureza nas animações de Walt Disney.
Respondi-lhe: “Nesse caso, presumo que só coma vegetais?”
- Sim, claro.
- Porquê?
- “Lamento a existência da morte, do assassínio dos animais”, declarou.
- Presumo então que os vegetais que consome devem vir de quintas certificadas «Não-Morte»?
- Isso o que é? Perguntou-me sustendo a garfada defronte da boca.
- Certamente que confirma a existência da certificação quando adquire os seus vegetais. Não o faz?
- Não. Onde é que...? e pousou o garfo.
- Não será melhor questionar o restaurante sobre a proveniência dos vegetais que está a consumir?
Assim que o empregado passou por perto, abordou-o: “Poderá informar-me se adquirem os vossos produtos vegetais numa quinta certificada de «Não-Morte»?”
Atónito, o funcionário arregalou os olhos e retorquiu: “Eu... eu... Terei de verificar. Um momento.”
Regressou apresentando um semblante preocupado. “Queira desculpar-me, mas na cozinha ninguém tem conhecimento de tal designação ou origem. Asseguro-vos que os vegetais são de qualidade. Recebemo-los de quintas orgânicas e nos chegam frescos todos os dias.”
Olhou a mulher para a sua salada. Não sabia o que fazer. Depois viu-me esboçar um sorriso e focou-me venenosamente. Nessa altura senti que teria ultrapassado alguns limites e solicitei que me perdoasse. “Preguei-vos uma partida. Não existe esse tipo de certificação.”
- Bem, eu nunca! Exclamou.
O terceiro passo na fala com um anti-caça é identificar-lhe as contradições, o que lhe fiz secamente, ignorando totalmente a primeira etapa. Antes que me agredisse, saltei para o passo quarto: Deixem-nos saber que estão a falar com uma pessoa esclarecida, conhecedora das coisas, dos factos reais.
- Tenho caçado desde os campos de Montana ao Maine e os agricultores apreciam e reconhecem a importância do que faço.”
- E?
- Todos eles necessitam de defender as suas colheitas. Ainda não conheci nenhum agricultor que não mate gansos, coelhos ou mesmo os veados que lhes vão comer as novidades.
- Onde pretende chegar?
- Cada uma das cenouras ou hortaliças que consome foram produzidas por agricultores que matam veados e coelhos, tal como qualquer animal que lhes comprometa a safra.
Começou a ficar conturbada e sem saber o que dizer.
Era chegado o momento do quinto passo: Abater a irracionalidade e apresentar uma alternativa. É a etapa mais importante, porém a mais negligenciada. Confrontar um anti-caça com os factos reais nunca é suficiente. Ficam confusos perante as próprias contradições. Geralmente as pessoas com escolaridade detestam assumir que defendem teses sem credibilidade ou constatar a cegueira do seu fanatismo. Se os deixarmos nesta fase, perder-se-ão nas suas emoções, na sua irracionalidade e não aprenderão absolutamente nada. Por isso continuei.
- Não deverá sentir-se culpada pelo facto dos agricultores necessitarem de proteger as suas colheitas. É natural que o façam. As espécies animais também o fazem em relação às suas fontes de alimento. Os lobos matarão o intruso, tal como os leões e os pumas. Até mesmo o esquilo perseguirá outro esquilo que ousar penetrar no seu território. Todos necessitam de proteger o local onde vivem. Se não o fizerem morrerão. Isso faz parte da vida, da ordem natural das coisas.
- Bem, suponho que seja verdade. Disse ela concordando.
Se uma pessoa debater este tema frontalmente, sem se deixar enredar nas contradições que lhe são apresentadas, estes cinco passos resultarão.
A maior parte das pessoas ignora a verdade sobre a existência da caça. As emoções toldam a visão lógica. Mas a culpa não é totalmente delas. A poderosa corrente dos media não lhes está a contar a história toda. A não ser que tenham uma experiência pessoal, jamais aprenderão a importância da caça. De facto, falar com verdade sobre caça na América tornou-se de tal modo supérfluo que os meios de comunicação para definirem um político em termos ambientais, recorrem a uma listagem publicada pela Liga de Eleitores Conservacionistas, movida pelos temas do aquecimento global e da oposição à exploração e uso de combustíveis fosseis, cujo objectivo é pressionar os legisladores a apresentarem medidas restritivas da emissão de gases poluentes. Se o político passa o teste, então é “verde”, se chumbar está condenado à liga dos poluentes, dos destruidores ambientais e, claro, dos caçadores.
Não consideram importante a gestão da vida selvagem ou a angariação de fundos para esses tipos de programas, a preservação das áreas húmidas, a restauração dos habitats ou outros esforços quantitativos. Nada disso é digno de registo na tal escala ambiental.
Isso é um ultraje aos caçadores, porque são estes que implementam e pagam os projectos conservacionistas do mundo real.
Em resultado, um congressista apesar de ter votado a expansão de um programa de preservação, apoiado a cedência de fundos adicionais a um sistema de refúgio da vida selvagem ou lutado por águas límpidas, pode muito bem ser catalogado por essa liga e pelos media como anti-ambientalista por um dia ter considerado inviável restringir totalmente a extracção de combustíveis fosseis em plataformas marítimas.
Esta disparidade não é apresentada pelos mass media. Resulta daqui uma coluna vertebral tão defeituosa que mesmo nos tempos actuais, em que a consciência ambiental está tão desperta, a maioria dos americanos ignora que, das taxas obtidas através do comércio das armas e munições, bem como de outro equipamento de caça, contribuíram os caçadores em 2005 com $294.691.282 USD para programas estaduais de conservação ou mesmo que os montanhistas, os ciclistas e ambientalistas não pagam uma pequena fracção desses valores. A maior parte das pessoas não tem mesmo consciência que o dinheiro dos caçadores compra habitats e gera fundos importantes para investigação em todos os estados. Ignora inclusivamente que a caça reduz o risco de sermos perseguidos pelos predadores.
Foi para combater isto que escrevi este livro. Nestas páginas encontrarás factos concretos que atravessam a retórica, a propaganda anti-caça e a versão dos media. Lerás biólogos, caçadores, agricultores, anti-caças, vítimas de ataques de animais e muitos outros. Acederás a estudos da vida selvagem, estatísticas de ataques, notícias e opiniões de peritos de caça. E compreenderás como a proibição da caça afecta as populações de animais selvagens e a sua conservação. Deste modo, assim que falares com um anti-caça ou quando o teu coração te questionar sobre a prática da caça, saberás encontrar uma resposta concreta e real, mesmo que seja do tipo politicamente incorrecta. (pp. 1-5.) Tradução por Pedro Miguel Silveira

Frank Miniter (2007). The Politically Incorrect Guide to Hunting. Regnery Publishing, Inc.

À Redescoberta das Furnas

Passeio realizado por Colaboradores do BES dos Açores e do Grupo Bensaude no dia 5 de Abril de 2014, com o objectivo imediato de redescobrir as águas do Vale das Furnas. 
Fomos acompanhados na vertente científica e histórica pela Dra. Paula Aguiar, João Câmara e Cidália Costa. 
O almoço foi cozido nas caldeiras das Furnas e magistralmente servido pela dupla: Berta Melo e José Franco.
Durante o roteiro das águas foram ainda degustados produtos locais de Emanuel Casado e da Cooperativa de Solidariedade Social Celeiro da Terra.   
Participaram ainda neste evento com uma animada componente musical, o inigualável Carlos Galvão e o Furnense António  Pacheco (Barreta) acompanhado à viola pelo José Cabral.
O Sr António Pacheco, com 85 anos, é uma das vozes mais puras do folclore e música popular Açoriana, e uma referência obrigatória nas Serenatas do Vale das Furnas. 
Aconselha-se vivamente este percurso pelo fascínio do mundo das águas das Furnas, naquela que é considerada a maior hidrópole do mundo.

Texto da autoria de Gualter Furtado
Foto de João Dias

3 de abril de 2014

Game Management

De Aldo Leopold, autor do "A Sand County Almanac", publicado recentemente em Portugal com o título de "Pensar Como Uma Montanha", apresento o "Game Management", cuja primeira edição data de 1933 e ainda sem tradução para português.
O que muita boa gente ignora, quando menciona Aldo Leopold, na qualidade de cientista, filósofo ou ambientalista é que ele foi caçador de arma de fogo, de arco e flecha e pescador até ao fim. 
Que sacrilégio! Dirão alguns na sua enorme petulância e desconhecimento. 
Calar-se-ão outros, envergonhados...
Mas foi precisamente por ter sido caçador que Aldo Leopold nos escreveu estas duas belíssimas obras que ainda hoje nos inspiram e orientam na gestão da vida selvagem e na nossa relação com a terra; a tal "Land Ethic" que ele tão bem aborda e nos refere no "A Sand County Almanac".
De "Game Management" traduzo livremente o final do prefácio que a seguir transcrevo das palavras do autor:

"(...) Este volume almeja três objectivos:
Primeiro, servir como guião para gestores da vida selvagem ou para aqueles que a estudam e dessa actividade pretendem fazer uma profissão.
Segundo, permitir que o caçador desportista ou o amante da natureza consiga compreender o que observa quando está no campo armado ou de binóculos ou mesmo na qualidade de activo conservacionista.
Terceiro, explicar ao naturalista, biólogo, técnico agrícola ou florestal, como as diferentes ciências se relacionam com a gestão da vida selvagem e como as suas práticas condicionam a aplicação no terreno.
Em resumo, trata-se esta obra de uma tentativa para descrever a arte de gerir o meio ambiente e os animais selvagens, bem como traçar um rumo que permita integrar essa gestão noutras áreas em que fazemos uso da terra."

Aldo leopold
Junho de 1932

Aldo Leopold (1986). Game Management - Aldo Leopold. The University of Wisconsinpress

24 de março de 2014

Taça de Portugal Compak Sporting 2014 - Paulo Cleto vencedor absoluto

O Clube Desportivo de Tiro de S. Miguel foi o anfitrião da Taça de Portugal de Compak Sporting, edição de 2014.
As provas (com um total de 200 pratos) decorreram nos dias 22 e 23 de março, no nosso campo de tiro em Santana, Vila de Rabo de Peixe, com o apoio indispensável da Câmara Municipal da Ribeira Grande e da Direção Regional do Desporto.
Com um total de 34 atiradores, entre os quais figuraram as figuras maiores desta modalidade de tiro do país, as provas decorreram sem incidentes e dentro dos horários previstos.
A meteorologia açoriana, inconstante nesta época do ano, resolveu ser solidária, tendo a maioria das oito contagens de 25 pratos decorrido dentro de condições atmosféricas adequadas ao bom desempenho dos atiradores.
Os almoços e as pausas foram momentos de agradável convívio entre os atiradores, oriundos de várias regiões do país. Esta é a maneira de receber própria das nossas gentes, com as refeições, coordenadas pelo incansável Paulo Cruz, à base de pratos de raiz tradicional, a fazerem o regalo de todos os participantes.
Para corolário da festa, ganhámos a competição. Com 191 pratos partidos, num total de 200 pratos de prova, o nosso atleta maior, Paulo Cleto, consagrou-se como vencedor absoluto.
Assim, em 2015, temos novamente a obrigação e o orgulho de voltar a organizar esta prova que, esperamos, irá trazer a esta Região Autónoma ainda mais entusiastas do tiro com armas de caça.
Com esta vitória, os Açores marcam presença, pelas melhores razões, no mapa do tiro desportivo nacional.

O Presidente da Direção

João Lima

23 de março de 2014

Olho Mirolho P’ra Matar a Passarada

Dizia Aquilino Ribeiro que os piores inimigos dos pássaros são os rapazes (Geografia Sentimental). Já o disse há uns anos, num texto passageiro, que as mossas infligidas pela canalha, no mundo das pequenas aves, era incomparavelmente menor ao poder devastador da química.
Há cinquenta anos não havia parque público, latadas de videiras, arbustos de jardins, que não estivessem cheios de ninhos de serzinas e verdilhões, macieiras onde não habitassem ferreirinhas e, quando calhava algum terreno ficar em pousio, ruidosas bandadas de pintassilgos. De pardais, nem se fala. Faziam nuvens quando se erguiam no céu de qualquer recanto onde tinham topado comedoiro. Nas árvores de recolha eram, por vezes, mais bastos que as folhas. O meu querido conterrâneo Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, fez um belo relato disso que também já abordei noutro texto, igualmente passageiro.
Os rapazes, os desses anos, sem televisões que os prendessem aos ecrans, sem computadores que os enredassem, tinham ratoeiras, fisgas, visgo, andavam aos ninhos e davam argumentos ao bom Mestre da Soutosa. Há uma cantiga do Zeca Afonso que só pode ser escutada e sorvida, na sua plenitude, pelos que comeram desse pão:

Andei ao licranço
Andei ao lacrau
...............
Vibra à carocha
Ao corujão cego

Então, eu tinha a minha molhadinha de ratoeiras com que entretinha os domingos e, algumas vezes, com parceiros das malasartes, também armei redes nos poços, por noites de invernia. Alguns poços, mais antigos e desprezados, criavam nas paredes interiores arbustos, vegetação vária, e a pardalada, confiada, escolhiam-nos para dormitório. Assim os surpreendíamos e quase sempre a safra era generosa. Mas, se havia sonho, se havia coisa que eu desejava era uma espingarda de pressão de ar. Alguns companheiros ganhavam-me à palma exibindo as suas, de que eram extremamente ciosos... Eu bem me roía, prometia mundos e fundos, mas os meus pais não estavam para aí virados.
Até que um dia, não sei quando nem em honra de que santo, caíram em me dar uma. Já eu era, então, espigadote, com boa idade para não dar mais razões ao Aquilino... Mesmo assim, a Diana 27 foi uma coisa do outro mundo, o instrumento que me permitiu dominar o reino da passarada, por todos os meus domínios.
Eram anos despreocupados em que eu lia, por vezes noite fora, indiferente às horas, alheio ao sono, com a janela do quarto escancarada para espantar o perfume dos primeiros cigarros. Em muitas dessas noites em que devorava Camilo ou Júlio Dinis, subia até ao meu quarto o canto dos rouxinóis que moravam junto a uma presa, num frondoso cômoro de loureiros. E eu adorava o seu canto que, não raro, me suspendia a leitura.
Eram anos despreocupados em que eu pegava na espingardinha e ia, de árvore em árvore, atirando aos pardais. E tudo me servia, tudo contava para a molhada. Uma velha empregada da casa, sempre que a molhada aparecia composta, comentava:
- O menino tem olho mirolho p’ra matar a passarada!
Mas um dia o tal “olho mirolho” deu mesmo para o torto. Num caminho, próximo da minha casa, então de terra batida e ladeado de oliveiras, disparei a Diana para um tal pardal, que estava camuflado pelas folhas, e o pardal caiu apenas ferido. Corri a apanhá-lo e, o pardal, era um rouxinol...
Passaram os anos, as décadas, e a espingardinha de pressão de ar jazeu sempre em telheiro de minha casa, a madeira minada pelo caruncho, o cano desfigurado pela ferrugem. Na sua podridão progressiva foi utilizada apenas para atirar às ratazanas que por vezes apareciam nos currais.
Desapareceram as bandadas de pintassilgos, são raras as serzininhas e raros os verdilhões. Há pássaros familiares da minha infância que já só encontro nos terrenos onde caço às perdizes e onde ninguém recorre à química para o seu cultivo.
Orgulhosa, talvez, do menino, a velha criada gabava o olho mirolho sem imaginar que havia coisas que matavam muito mais e às cegas. Eu também precisei de alguns anos para o saber. Quanto ao autor do Romance da Raposa, morreu há exactamente cinquenta anos sem sequer o suspeitar. (pp. 51-53)

Sérgio Paulo Silva (2013). O Bando e outras Penas de Caça. Edição do autor, fora do mercado com 50 exemplares

22 de março de 2014

Divagações

Umas palavras minhas a falar de caça? E porque se lembrariam do meu nome? Por ser um caçador da velha guarda, como vulgarmente se diz, certamente depois daquela que em Waterloo morria mas não arriava? Por ter escrito o livro de poemas «É El-Rei Que Vai à Caça»? E melhor caçador que poeta, vá lá... Não interessa a razão e escreva umas palavras.
Como a Nau Catrineta, um caçador velho tem sempre muito que contar.
Caçador de perdiz, desde o luzir da mocidade, fale da perdiz.
Quando nasci, o vício da caça andava-me no sangue, e nem admira.
O meu avô paterno fora caçador de coelho. De perdiz, o paterno, e dos melhores aqui das redondezas. Outros avós teria assim? Tarde já para que o apure, mas ponto de fé meu que tive. Muito bago de chumbo talvez pisei por estes montes das bacamartadas que despejaram.
Menino, comecei a atirar aos pardais com a espingardinha de pressão. Rapazote com a Flobert de calibre 22, já de pólvora. E pelos quinze ou dezasseis anos já me atrevia à serra com a 12 de dois canos, a velha Jamin inesquecível, porque se afeiçoa o caçador à espingardas, tanto ou mais que aos seus cães, e limpá-las e cuidá-las é um dos seus maiores prazeres, como se já a apontá-las e dispará-las a um perdigão dos sabidos, matando pela imaginação o vício da caça.
Quando matei a minha primeira perdiz, apareci em casa mais orgulhoso do que se tivera prendido o Gungunhana. Aqui pelas serras, ao tempo, a grande novidade era ainda a da prisão do Gungunhana, e iam passados vinte anos...
Minha mãe, ao vê-la, entristeceu-se – ela que, ainda agora, me não perdoa a crueldade de caçar –, e censurou-me com aspereza por assim matar, impiedoso e glorioso, a inofensiva perdizinha, mas eu não podia sofrear a irresistível tentação, e, na véspera da abertura – então no primeiro de Setembro –, nem conseguia adormecer. Cada qual é para o que nasce, diz o povo. Estava escrito: tinha de ser caçador de perdiz. E, para a perdiz, um galgo... Para o coelho, um manco...
Tenho umas pernas de aço – umas pernas de galgo – e o coração bate-me ainda sossegado. Hoje ainda, e já na casa dos sessenta, sou bem capaz de calcorrear, da alvorada à noitinha, uns trinta ou quarenta quilómetros pelas vertentes íngremes do meu Douro recobertas de matos fechados, bravias de estevas e carrasqueiras, ou pelas Terras do Demo de Aquilino, só fraguedo e calhaus. Com mais de quarenta anos de caça, quando me viro a deitar contas, acho nas pernas umas boas dezenas de milhares de quilómetros.
Rapaz, fui caçador solitário. Merenda a tiracolo, na bolsa já herdada, cantil à cinta (que a sede queima e o suor cai em bagas), deitava-me à toa por montes e vales, por tojais e vinhas, assim o Gama ou o Cabral ao descobrimento de mundos. E que surpresas, que novidades para o caçador aprendiz! Pastores e rebanhos... Riachos límpidos e serenos, que se diriam de cristal... Povoléus desterrados pelo horizonte... Que o poeta e caçador não os pode dissociar... E o gosto da solidão e o esquecermo-nos do tempo...

Que ele vai à caça só por desfastio,
Por entrar na barca, por passar o rio,
E ao fitar as águas com os céus no fundo
Esquecer as mágoas com que fere o mundo...
Que ele vai á caça para recolher
Imagens de versos que há-de conceber...
Para como os lobos se embrenhar nos matos
E dar ao seu corpo os mais duros tratos
Quando a voz maldita do diabo tenta
A sua alma sempre só de Deus sedenta...

Vou hoje sempre com outros caçadores, e, mal entramos no monte, vá de formar ala: todos em fila, à distância de um tiro, os de cima atrasados e os fundeiros adiantados.
Em linha a caçada será mais frutuosa, mas não tão emotiva, presos todos os companheiros, sem liberdade de acção. Porque não é um qualquer que se mete ao monte para enfeitar o cinte de perdizes como quem vai aos frangos à capoeira ou colher o cacho de uvas à parreira do quintal... Que a perdiz obriga às suas regras, à sua técnica, e é preciso ser duro, de reflexos prontos, de sentidos apurados. E ter a queda, o instinto, o conhecimento do terreno, e sabê-la bater, e calcular-lhe as revoadas, medir-las. Que a perdiz é a ave mais arisca e astuta que sei e só pelo uso chegamos a dar-lhe com as manhas. Como poucas se defende, e ainda bem, pois, se não fora assim, e de cobiçada que é, já se lhe teria extinguido a raça. Mas que seria do caçador, poderia até haver caçadores, sem o cão, sem um bom cão? Sem o amigo?Amigo dos Amigos, vai o cão ao ponto de morrer com saudades do dono. De paixão e fome, por não querer comer, oiço que morreu o perdigueiro dum meu tio-avô, tão bom padre como bom caçador. E um já vi, em plena cheia do Douro e arriscando a vida, atirar-se a abocanhar uma perdiz que levava a corrente.
São os caçadores muito mentirosos – dizem – mas eu não minto. Os caçadores não mentem, estilizam. Cães bons, porém, são raros como os bons caçadores. Mestres caçadores, hoje, numas tantas léguas à roda, podem apontar-se a dedo. No Freixo, o Zé do Álvaro... O João de Tourais, na Régua... O Norberto, em Lamego... E, nas minhas terras em Armamar, o Acácio da Rapada, meu companheiro de ala por dúzias e dúzias de vezes...
Ai as perdizes! Poucas são as pessoas que, ao trincá-las e saboreá-las, tão apetitosas a derreterem-se na boca, saibam imaginar as canseiras que nos dão. Soubessem-no, e a peso de oiro é que as pagavam. Que, para matar uma perdiz, é preciso suá-la. Das dizimadas aos centos nas batidas como bandos de pardais, não falo. Nem nessas que à traição matam os esperistas, dando ao fole do chamariz e alvejando-as no chão, às duas e três, às carreiras de meia dúzia, de enfiada.
Bem gostava, como Turgeneff, de escrever as narrativas, ou melhor, as memórias de um caçador. E agora me salta à lembrança o livro do nosso rei D. Duarte, Da Arte de bem Cavalgar toda Sela. Pois não haverá aí quem decida escrever uma Arte de Bem Caçar a Perdiz?
A perdiz! A mais linda ave que conheço, que em lindeza nenhuma se lhe compara! Mais linda que os pintassilgos mais lindos...

Como o senhor bispo, o bom bispo velho,
Calça meia fina de cetim vermelho;
O colar de penas que lhe adorna o peito
Lembra-me a corola de um amor-perfeito...

Fausto José
in Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo, n.º 20, Dezembro de 1966

César Luís de Carvalho (2003). Fausto José, Poeta de Portugal. Câmara Municipal de Armamar. Tipografia Voz de Lamego, Lda.

21 de março de 2014

Cortando Traços ao Tempo

Deste deslumbrante trabalho de José Maria Souza Guedes, através do qual percorremos poemas e contos, diz-nos Guida Morais e Castro que quando as palavras de um poeta subtilmente se transformam numa melodia de imagens, sons e emoções, transportando os nossos sentidos para mundos desconhecidos  e longínquos, que porém se tornam tão familiares e tão cerca, sucede um milagre: a nossa alma dança.
Vitor da Rocha acrescenta-nos que, ambos, poemas e contos, respondem bem pela sua paternidade, denunciando cumplicemente  a sua origem, da mesma postura perante a vida, num misto de melancolia e ternura pelos seres e coisas mais insignificantes, uma suave angústia perante os dentes do tempo, que, impavidamente, no encaminha, ora a bem, ora a mal, para a ladeira derradeira - o que, aliás, é logo denunciado pelo próprio título da obra. Um livro fascinante, de regresso ao húmus, mas também à corrente límpida das palavras, que, tal como os cenários e seres que descreve e recria, se nos revelam em toda a inocência de um texto que pode e deve ser lido por todos e para todos.

Galinhola

Nesta gaiola...
Ave rara aqui na feira, onde toda a gente diz que este bico não é de perdiz.
Estou exausta, cansada, mal consigo distinguir entre a balbúrdia e o zunir desta gente, ou as ondas permanentes do oceano sem fim que acabei de atravessar.
Vim de longe, muito longe... Do lado de lá do nascente...
Mas toda a gente insiste que sou diferente... O feirante diz à gente que eu sou um gavião, uma espécie única vinda do oriente... Outro mais entendido diz que não... Que não...
Que sou apenas um faisão. Mas o feirante insiste que sou um falcão, uma ave especial que veio do Japão, um papagaio diferente, porque o bico cresceu, e o meu falar é único.
Deixa muda toda a gente.
- Têm de ouvir! Têm de ouvir!
Apregoa agora entusiasmado que valho 100 euros.
Uma velha agoirenta fitou-me com olhos baços, apontou-me os dedos trémulos e disse à multidão que eu era o tira-olhos, o tira-olhos autêntico.
Cada vez chega mais gente.
O feirante, radiante, encheu a gaiola de trigo centeio e ração, e um miúdo sorrateiro tentou cortar-me o bico de corta-unhas em riste.
Estou confusa. O barulho é imenso.
Ontem ao chegar tive azar. Caí esgotada, mal cheguei à costa.
Mesmo ali na praia, acho que as ondas ainda me empurraram para terra. Depois, pouco me lembro... Sei que acordei dentro desta gaiola.
Já não era a primeira vez que tinha feito esta travessia desde os gelos glaciares até aqui, dias e noites sem fim.
Quantas vezes nos confins do oceano sonhava com estas paragens cálidas e serenas, com o balir suave das ovelhas a pastarem, com o riacho calmo ao pé das folhas caídas dos carvalhos seculares da serra de Montemuro, lá em Carvalhosa.
Quantas e quantas vezes consegui enganar a cadela do P. Chamava-se Tua.
Essa cadela que eu conheço tão bem... Linda, de traços finos, com ar altivo e decidido. Uma pointer, uma pointer pura. Acho que até havia uma espécie de pacto entre nós. Ela, parada, estática, com a pata levantada e a cauda hirta, completamente esticada, e eu imóvel, numa tensão de nervos e angústia quase a explodirem.
Até à última. Quando por fim levantava, olhava fixamente os olhos dela, e o P. Apontava a velha Francotte de canos paralelos e coronha inglesa, corria a mão, seguia-me, e fingia premir o gatilho.
E eu lá ia... Pousava cem metros adiante, e à pata, entre as giestas e o musgo, chegava até ao pequeno ribeiro, refrescava-me, e pouco depois lá estava a Tua e o P.
Passávamos horas e horas nisto, como um jogo nunca visto. Não sei. Não faço ideia porque me quis poupar, pois segundo algumas colegas, era o caçador mais famoso e temido aqui das serranias. Contavam que até tinha um casaco largo e velho, quase roto, onde no forro, junto ao peito, pendurava a caça, para que ninguém soubesse as paragens por onde andávamos.
Quanto chegava, sozinho mais a Tua, toda a serra ficava de sobreaviso, num alvoroço contínuo. Era único...
Não estou longe de Montemuro.
Daqui da feira consigo divisar ao longe os moinhos de vento.
Já não é cedo.
O povo vai indo em debanda, e o feirante começou a guardar as gaiolas, as plantas e os tristes peixes indiferentes...
Em frente a mim, mei dúzia de pessoas ainda discutiam que eu era, quando perplexo e desconfiado, o feirante olhou para alguém que indignado disse:
- Não tem o direito de ter uma galinhola presa.
Fiquei radiante. Alguém sabia quem eu era.
Uma galinhola.
As lágrimas vieram-me aos olhos.
Era o P.
O feirante continuava a afirmar que eu era uma ave rara, uma arara, um falcão do oriente, um papagaio diferente...
- Não. Não tem o direito de ter uma galinhola presa.
Vi-o pegar na carteira, numa nota de cem euros, tirou-me com cuidado da gaiola e, perante o pasmo total do feirante e toda a gente, ergueu o braço, e no ar, abriu a mão de contente.
E eu voei, voei...
P.S. Isto aconteceu na feira de 3/XI/2008.
Em finais de Dezembro, algures, na serra de Montemuro, lá nos encontrámos. A Tua, o P. e eu Galinhola.
Obrigado, P.

José Maria Souza Guedes (2011). Cortando Traços ao Tempo (pp. 54-56). Mosaico de Palavras, Editora.

20 de março de 2014

O Bando da Carvalheira

Eu não sei se Vossenhorias sabem que esta Serra de Bornes, noutros tempos, era a melhor coutada da província. Da província? Do reino todo, quanto mais da província! Hoje não. Hoje, três vezes nove vinte-sete. Mas naquele tempo... Assucedeu isto no tempo da guerra, já lá vão mais de cinquenta anos, num lugar da serra que lhe chamam a Carvalheira. Andava eu e o meu compadre Sabastião, que morreu há dois anos pelos Santos, tolhidinho do reumático assim como eu, que mal se alevantava já. Pois saibam que naquele tempo não havia nada que se nos metesse à frente. Quem diria os cacos a que haveríamos de chegar... Caçada em que não calcorreássemos vinte quilómetros e não trouxéssemos uma dúzia de perdizes à cinta não era caçada.
Mas, nem de propósito, naquele dia em que tal caso assucedeu, as perdizes andavam esquivas. Quem lhe punha a vista em cima? Os cães bem fusgavam o mato, a farar, a farar, que pareciam a máquina do combóio. Pois sim. Deixá-los farar. Parecia que tinha passado por ali um furacão e não ficara raça de perdiz. De repente, grita o Sabastião, que ia a dobrar um cabeceiro, para mim, que andava mais abaixo, a meia encosta:
- Eh, Zeferino, parece que já dei nelas! Anda daí, homem, que, pelo barulho, handem ser para cima de vinte perdizes. Ouvi agora mesmo rotar o bando, ali atrás do alto. Chegam para ti e para mim, e ainda hadem sobrar perdizes!
À sede com que lhe andava, botei a correr como um cavalo, encosta acima, ao encontro dele. E com efeito, quando estava a chegar pertinho, rota o bando segunda vez: brrrrrrrr!
- Ah, compadre, até que enfim vamos a fazer o gostinho ao dedo. Já não era sem tempo. Estas perdizes são nossas, nem que tênhamos de ir atrás delas até Soeima, e nem Santo António lhe vale! Hemos de as levar de afeito!
E aí vamos nós, a mata-cavalo, a dobrar o altinho, para ver se ainda víamos onde é que o bando ia pousar, para lhe cairmos em cima. Mas dobremos o alto, e perdizes – que é delas?
Olhemos um para o outro, assaranpantados. Quenquera o diz. Tinhamos ouvido tão bem o bando a alevantar voo – onde estava o bando carvalho? Nisto, ouvimos outra vez, ali pertinho, à nossa mão esquerda: brrrrrrrr!, como se o bando se tivesse alevantado ali mesmo a dois passos. Viremos a cabeça – e o que vai ser? Não adivinham... Um burro, com licença de Vossenhorias! Um burro, sim senhor, que ali estava preso à corda, a pastar com toda a pachorra um fenanco, ementes o dono  andava mais abaixo, a cavar uma horteca. Um burro, pergunta Vossenhoria. Um burro pois! Nunca ouviu espirrar um burro? Pois fazem assim, brrrrrrrr!, sem tirar nem pôr, tal e qual como um bando de perdizes quando abre as asas e deita a voar.
Assim à primeira, o Sabastião e eu fiquemos  a olhar um para o outro, como quem diz: “O estupor do burro!” E então impecemos a rir, a rir como perdidos, em tão altas gargalhadas que até o dono do burro parou de cavar e se pôs a olhar para nós muito espantado.
Dali em diante, quando andávamos no monte e calhava de vermos um jumento, dizia logo o primeiro que as visse:
- Olha o bando da Carvalheira, compadre! Fogo nele!
- É verdade! Lá vai ele!
Aí têm Vossenhorias a história do bando da Carvalheira, tal e qual como assucedeu. Há-de haver para cima de cinquenta anos, e ainda tal não me esqueceu.

António Manuel Pires Cabral (2009). Páginas de Caça (pp. 106-108). Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros e Âncora Editora.

Aguarela "Perdiz", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)

19 de março de 2014

O Bácoro das Castanholas de Seda

Á quarta,enganei o bácoro!
Tudo começou há quatro dias atrás, nunca um bácoro me tinha feito perder tanto tempo! Como ia dizendo, comecei a ver umas grandes fuçadelas perto do meu hortejo, muito gramudo, carunchoso e muito minhocudo na vala húmida q´o atravessa e que por sua vez tem um grande manchão de mato á volta do dito e meu próprio e bem trabalhado hortejo... E aprontei-me p’ra esperar o bicho numa noite de lua, como mandam agora a gente fazer nos tempos modernos... Lá fui.
Lá chegado, prendi o Mariano á porteira da horta e fui-me prantar numa rochinha á meia barreira donde conseguia ver o fundo do barranco e pouco mais,... mas sabia q´o crenço dele era ali mesmo, por o fundo... e como ocês sabem, a ventania teve d´arrepio e soprava-me as pontas dos bigodes dum lado pró outro... Vamos lá ver s´o bicho aparece, pensei eu todo arrepiado. E fez-se noite quando tive impressão d´ouvir um ronco assim ao de leve... E passou-se algum tempo, já tava ficando com as nalgas dormentes e de bácoro nada! É quando o burricalho começou a zurrar... Eu pensei logo: o animal tá zurrando, tá sentindo o bacoro! (nã sei s´ocês sabem mas os Marianos são muito sentidos, dão logo sinal quando ventejam, barruntam ou veêm um bicho bravo) Ainda nã tinha acabado de pensar isto, faltava p´raí um segundo pra acabar, ouvi os arames do meu saboroso hortejo esticarem todos e com força... O Mariano tinha dado sinal q´ele andava ali, mas o bicho foi rápido a fintar-me sem eu o barruntar... e nisto, ele barruntou-me! Arrancou fazendo faísca nos bolegos e foi sair do outro lado da horta, num bocado que tá sem muro e o vosso amigo velhote atou-lhe uns arames mandongos, mal atados... Rebentou-me com aquilo tudo e foi-se sacudindo... Filho daquele cabrão! Hás-de pagar-me em géneros alimentares da tua própria carcaça, grande estafermo! E vi logo o que era: um dos raros javardos com castanholas de seda! Eu nem o ouvi tarraceando e era tão grande...
Na noite seguinte, lá tava eu, cheio de genica, prontitude e positivitude! Já tinha outro esquema pensado; hoje o Mariano fica a vinte metros mais abaixo de mim no barranco e eu mais chegado p’ra onde ele passou ontem á noite...assim foi! Á mesma hora, o burro zurrando muito... cada vez mais... e de repente um reboliço que mais parecia um bácoro saindo dum silvado á carga, lascando tudo... quando dei por isso, ouvi os arames outra vez e quando olhei p’ra lá já nã o vi... O q´é q´eu pensei; vou dar uma firme e robusta corrida pra ver s´ele se descuida na passagem de saída q´eu entretanto e nesse mesmo dia tinha amanhado já com manhosice p´ra se isto acontecesse o bicho enlear-se e atrapalhar-se um bocadinho... Olhem, parecia um rinoceronte!!! Levou arames, bolegos, latas, tudo pela frente! Eu pensei logo no momento e muito rápidamente, tal como m´ensinaram os budas islâmicos radicais: t´ás amanhado comigo! Faço-t´em bifes das patas á cabeça, nã me chame eu Velho Murtigão, o bispo papal de todos os caçarretas que tão lendo isto muito afinadinhos e tremendo a parte traseira do pézinho tentando barruntar s´o raio do vosso mestre, eu, pensa mesmo q´ocês são uns grandessíssimos caçarretas e marteletas mas pronto, o q´eu penso fica pra mim porq´é um pensar muito sublime... E alembro-me do Mariano... Nunca mais disse nada... E vou lá muito prontamente! Lá chegado até me vieram as lágrimas aos olhos... Mariano tinha levado uma violenta e mal intencionada sarrafada do bácoro nas pernas, derrubando-o p´ró fundo do barranco! E o desgraçado, sofrendo dos intestinos como sofre, cagava-se e espeidorreava-se sem destino á vista... Tive q´ir lá com um tractor tira-lo... Coitado, ele sofrendo e eu com a fórmula mágica p´ra entalar o javardo na minha mentalidade completamente cinegética... No dia seguinte o burro tava como novo com umas pomadas milagrosas q´o velhote tem p´ra curar Marianos. E lá fomos outra vez, com tempo, sol ainda alto, pensando muito, com muita força, p´ra correr bem... E pensei assim: o burro hoje fica na porteira, onde ficou na primeira noite... Só preciso saber sinal de Mariano pra saber s´o bicho tá perto, e quando ele zurra, tá perto da passagem d´entrada, q´é ond´eu vou tar d´arma á cara, preparado... E nã falhou, burro zurrou, zurrou cada vez mais... E truz!  Eu pensei logo: já foi bater no Mariano outra vez, este sem vergonha! E nisso, ouvi o javardão sair por o mesmo sítio de sempre, no muro caído com arames... Fui ver de Mariano, tava caído, de olhar triste, orelhas murchas... Lá o tive levantando; tinha só um lascão com uns trinta centímetros na perna direita provocado por as navalhas do bácoro... Fomos p´ra casa e curei-o e pensei: este bácoro t´á dando comigo em doido! Mas antes disso eu mato-o! E já sabia o q´havia de fazer áquele descarado, farto de dar pazada no meu burro!
No dia seguinte, lá fomos á labuta bacoral. Lá chegados tive atando umas latas ás pernas do burricalho assim a fazer de conta q´era um colete á prova de navalhadas... E eu... Fui prá saida do bicho, q´essa é certa com´ó destino q´ele vai ter comigo... E eu vou tar muito concentradinho e rijinho p´ra parar o javardão com um tiro balístico mesmo no meio da testa, q´é p´ra nã precisar de lhe tar rachando a cabeça p´ra assar no forno de lenha q´eu próprio possuo em meu nome, em nome indivídual, o nome do mestre. E lá nos prantámos outra vez. Bem dito e pensado, melhor feito... Mariano começou zurrando muito aflito e, de repente, ouviu-se um barulho que parecia um acidente d´automoveis!!! Vi logo, o bácoro mandou uma pazada ás latas do burro... E o bacorão arrancou fugindo p´rá passagem d´entrada, ond´eu nã tava... Mas inteligentemente e cinegéticamente durante o dia tinha pensado nisso e tinha tapado aquela passagem duma maneira que nem com um tractor "John Dias" a conseguiam abrir... O bicho deu-lhe uma cabeçada e nada, nã furou... Deu-lhe outra e,... nada! Foi quando arrancou p´ra mim, p´rá saída de sempre, prá saída da salvação... E eu lá, d´olho afinado (tinha tado com "Bodi" a semana passada num afinanço rápido e simples) na fita do meu ferro,... á espera de s´encher de gadelhas cerdísticas... Quando a fita e a testa bacoral s´encontraram, carreguei o gatilho com tanta força q´até o dobrei! Desviei-me e ele passou por mim adormecido e embalado num sono do qual nunca mais havia d´acordar neste mundo em crise... E assim foi, quatro noites pra enganar um animal feroz, terrível, sem vergonha e com castanholas de seda cujas próprias castanholas servem de cabide pró casaco de vison da minha Murtigoa... Este animal nunca pensou de tar diante do velhote mais implacável, perspicaz, cinegético, audaz, venenoso, certeiro e sementaleiro q´há notícia por estas bandas... Bem, fui ver Mariano, t´ava bem e quando o desamarrei da porteira foi-se por o bácoro morto e arrimou-lhe um valente par de coices no cachaço de vingança, com o meu consentimento... Carregámos o bicho e casa, fatachar, estaçalhar e amanhar a carne q´amanhã temos trabalho, temos q´ir cuidar da horta javardeira!

Texto da autoria de Sua Santidade Velho Mestre Murtigão, em honra da qual foi erigido o Santuário Bacoral de Santo Alêxo, local de peregrinação e de encontro dos marteleiros muito devotos a Santo Huberto e na arte da erração

Aguarela "Javali Navalheiro", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)

18 de março de 2014

A Dádiva Sagrada

“De alguma coisa me hão-de valer as cicatrizes de defensor incansável do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a passagem de qualquer homem por este mundo.” (Miguel Torga, Diário, Coimbra, 9 de Dezembro de 1993)

“Trôpego, o Tafona já não chegava às perdizes da Cumieira. Por isso, arrastava-se até Pedralva e caçava de espera. Caíam rolas no cedo, uma lebre ou outra pelo ano adiante, e coelhos quase sempre. No defeso, fornecia a casa e a barriga sem fundo do compadre Frederico; no tempo da permissão, vendia-lhe a Joana Benta as cabeças na Vila. 
- Veja vossemecê... - dizia ele, a contratar o preço.
- Eu sei lá!... Com oitenta e cinco anos, a vida fora-lhe sempre estranha como se a não tivesse conhecido. Casara, tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro. Virgem e selvagem na alma, continuava a caçar, e só embrenhado entre giestas e urgueiras é que ouvia, se ouvia, os clamores da mulher e o ganido das crias. Saía cedo, sempre supersticioso das menstruações da Camila, a vizinha do lado, que lhe mudavam a direcção do chumbo, e regressava altas horas da noite, colado ao granito das paredes, e assim escondido dos olhos curiosos da povoação.
- Por onde andaste? A pobre da Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão distantes, que se atirou às leiras e deixou o homem às carquejas. Não era que ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a cegueira com que galgava os montes é que o impediam à noite de relatar o trajecto seguido. Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação, com alguns ramos vistos em pormenor, por neles pousar inquieto um pombo bravo ou se aninhar, disfarçada, uma perdiz. Ás vezes até se admirava, ao regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido simultaneamente os olhos. Serras a que trepara sem dar conta, abismos onde descera alheado, e um toco, um raio de sol, o rabo de um bicho, que todo o dia lhe ficavam na retina. É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas, aqui de granito, ali de xisto. Mas, mesmo nessas ocasiões, qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão absoluta deles, que os olhos como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão. Simplesmente, essa diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de identificar o panasco de Alcaria pelo cheiro ou pelo tacto. A caça fora a maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho. A meninice começara-lhe aos grilos e aos pardais, a juventude e a maioridade passara-as atrás de bichos de pêlo e pena, e agora, velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de cartuchos que, sentado, ia esvaziando no que aparecia. E a vida, a de todos os dias e de toda a gente, com lágrimas e alegrias, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado, vestida de uma realidade que que não conseguia ver. A aldeia formigava de questões e de raivas, e ele coava-lhe apenas a agitação de longe, vendo-a fumegar na distância, ao anoitecer, e acariciando-a então num cansaço doce e contemplativo.
- Casou a Dulce...
- Ah, sim?...
Ouvira, de facto, imprecisamente, a voz do sino grande chegar repenicada e festiva ao Falição, mas o seu espírito não pudera nesse momento, nem podia agora, descer da nuvem de abstracção que o envolvia.
- Muito bonita ia o demónio da rapariga! Humana, mulher, a Catarina tentava chamá-lo a uma consciência que reanimasse fogueiras mortas, sonhos desfeitos. Nada. O pensamento dele não estava ali: perdia-se nos projectos do dia seguinte, já cheio do rumor alvoroçado do bando de perdizes que sabia ir levantar da cama ao romper da manhã.
- Morreu a Palhaça...
- Ah, morreu?
E continuava a dar à manivela do rebordador, encontrando no cartucho, túmido como uma semente, não sabia que verdade mais profunda e mais transcendente do que aquela morte.
A velhice e o reumatismo tentaram com toda a brutalidade metê-lo noutros varai. Mas ele lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar.
Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes. A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia.
- Os Canedos berraram...
- Eu vi...
- A cunhada chamou curta à Ana... O que ouvira eram gritos, evidentemente, insultos, com toda a certeza, mas nomes assim... E uma tristeza muda apertava-lhe o coração.
- Um roubo em casa do Antunes...
- Bem me pareceu...
- Batatas, trigo, muita roupa, um presunto...
Quase que surpreendera o Rodrigo e a mulher com a boca na botija, e sabia que não, que o que esconderam na mina velha, e pudera examinar à vontade, era uma sombra daquilo.
De maneira que cada vez se metia mais consigo, com medo do vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma coisa sabia ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que mortalmente, o dedo premia o gatilho.
E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia aveludada. Entre o sangue de perdiz morta - que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele - e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele. Mas a aleluia do formigueiro humano que o rodeava era outra.
- A Rosária a flara em moralidade! Se reparasse na filha...
- A Matilde? Que fez ela?
- Nem tu sabes!
Palavra, que não sabia. Atravessara os anos como um duende, puro, alheio à raiva e à ganância, inocente, pronto a comover-se diante da primeira flor. Uma virtude, sobre todas, conservara sempre: a da lisa naturalidade. E por isso, no meio da incapacidade que sentia para entender o tecido de razões com que era feito o mundo que o cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se debatiam forças e gestos de amor. O cio, a brisa de sémen que agitava todos os seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda sagrada. Então, oleava e arrumava a arma, e os seus olhos, de caçador ainda, seguiam a revoada do casal de melros, o trajecto de um coelho, as pegadas da raposa, mas para os acompanharem comovidos naquela dádiva sensual e procriadora.
Infelizmente, só ele é que entendia de uma maneira assim inocente as coisas que tinham intimidade de ninho e calor de seiva. Porque a aldeia, que olhava compreensivamente as reses alevantadas, diante de uma rapariga cega de amores erguia-se como se visse um crime.
- Ela e o Avelino parecem cães à cainça.
- E que mal há nisso? Maiores e vacinados, que tinha que ver o mundo com o que o corpo lhes pedia? Mas os pais, aqui-del-rei que os enforcavam se olhassem sequer um para o outro, e a terra inteira aplaudia. Acontecia ainda que o Travassos, todo lá da mãe da rapariga, punha em semelhante martírio a sombra de uma perseguição.
De fora, mas infelizmente não de tão longe como desejava, o Tafona assistia à cena. Sentado à sombra da nogueira molar, e perto da poça onde vinham beber, esperava as rolas. E lá em baixo, na veiga, o seu olhar cansado ia acompanhando a comédia. A cachopa, de molho à cabeça, a passar na Silveirinha; o rapaz a deixar a rabiça na lavrada e a sair-lhe ao caminho; e o esqueleto do Travassos, abelhudo e ciumento, a correr a avisar as famílias.
Via e ficava a malucar naquilo, no contra-senso de tudo e de todos. Pois não seria melhor, mais justo, mais humano, deixá-los juntarem-se livremente, à lei da natureza? Contudo, daí a nada, a rapariga ia a toque de caixa pelo Teixo abaixo, e o rapaz retomava o arado a ouvir berros do pai.
- Uma pouca vergonha... - recomeçava a Catarina à noite, depois do caldo.
- O quê?
- O que há-de ser? A Matilde e o Avelino... Se não o Travassos...
Calou-se como de costume. Decididamente, cada vez entendia menos tal mundo. Mas as pernas atraiçoavam-no miseravelmente, e embora quisesse fugir para muito longe, tinha de se resignar às leis da idade e caçar de emboscada coelhos pacatos na vinha velha do prior.
Era um Setembro puro. Videiras que pareciam cedros e cachos com bagos como bugalhos. Manco, o Tafona, foi-se arrastando e ainda a tarde vinha a cair além-Doiro já ele estava no seu posto, sentado, imóvel e silencioso, com a arma engatilhada sobre a coxa.
Como habitualmente, quase nem respirava. Por muito inocentes que fossem os láparos, farejavam ruído a cem léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos, apertava os pulmões.
A espera nunca lhe dava inteira paz de espírito. Forçava-o a uma espécie de compromisso com a parte traiçoeira da vida, estremando os campos do agredido e do agressor. Entre ele e o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro encontro, um embate de forças. Tudo se passava sem alegria e sem eco, choque abafado, como o de uma pinha aberta a cair no musgo. Subitamente começou a sentir sons indistintos. Prestou atenção. Passos. Passos de gente, e grande.
- Bolas! - disse, sem abrir a boca. De facto, perdera o tempo. Para que tudo retomasse a quietude inicial e os coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca, seriam precisas horas, e então já não teria luz.
Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um bardo e a sumir-se na vinha.
- É boa!... - murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom. Mas ainda o seu espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.
Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.
Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles, de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o Travassos que, por acaso, caminhava direito à arma do caçador.
O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.
O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.
- Alto lá! - ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.
O Travassos estacou, apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:
- Sou eu, ó ti Zé!
- Bem sei. Mas não te mexas.
- O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!
A tremer e de olhos esgazeados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber. Mas o Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia confiava na alma solitária do caçador.
- Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor...“

Torga, Miguel, Novos contos da montanha, 13ª edição, s.e., Coimbras., pp. 53-63
Transcrição de Luís Paiva

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