23 de março de 2014

Olho Mirolho P’ra Matar a Passarada

Dizia Aquilino Ribeiro que os piores inimigos dos pássaros são os rapazes (Geografia Sentimental). Já o disse há uns anos, num texto passageiro, que as mossas infligidas pela canalha, no mundo das pequenas aves, era incomparavelmente menor ao poder devastador da química.
Há cinquenta anos não havia parque público, latadas de videiras, arbustos de jardins, que não estivessem cheios de ninhos de serzinas e verdilhões, macieiras onde não habitassem ferreirinhas e, quando calhava algum terreno ficar em pousio, ruidosas bandadas de pintassilgos. De pardais, nem se fala. Faziam nuvens quando se erguiam no céu de qualquer recanto onde tinham topado comedoiro. Nas árvores de recolha eram, por vezes, mais bastos que as folhas. O meu querido conterrâneo Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, fez um belo relato disso que também já abordei noutro texto, igualmente passageiro.
Os rapazes, os desses anos, sem televisões que os prendessem aos ecrans, sem computadores que os enredassem, tinham ratoeiras, fisgas, visgo, andavam aos ninhos e davam argumentos ao bom Mestre da Soutosa. Há uma cantiga do Zeca Afonso que só pode ser escutada e sorvida, na sua plenitude, pelos que comeram desse pão:

Andei ao licranço
Andei ao lacrau
...............
Vibra à carocha
Ao corujão cego

Então, eu tinha a minha molhadinha de ratoeiras com que entretinha os domingos e, algumas vezes, com parceiros das malasartes, também armei redes nos poços, por noites de invernia. Alguns poços, mais antigos e desprezados, criavam nas paredes interiores arbustos, vegetação vária, e a pardalada, confiada, escolhiam-nos para dormitório. Assim os surpreendíamos e quase sempre a safra era generosa. Mas, se havia sonho, se havia coisa que eu desejava era uma espingarda de pressão de ar. Alguns companheiros ganhavam-me à palma exibindo as suas, de que eram extremamente ciosos... Eu bem me roía, prometia mundos e fundos, mas os meus pais não estavam para aí virados.
Até que um dia, não sei quando nem em honra de que santo, caíram em me dar uma. Já eu era, então, espigadote, com boa idade para não dar mais razões ao Aquilino... Mesmo assim, a Diana 27 foi uma coisa do outro mundo, o instrumento que me permitiu dominar o reino da passarada, por todos os meus domínios.
Eram anos despreocupados em que eu lia, por vezes noite fora, indiferente às horas, alheio ao sono, com a janela do quarto escancarada para espantar o perfume dos primeiros cigarros. Em muitas dessas noites em que devorava Camilo ou Júlio Dinis, subia até ao meu quarto o canto dos rouxinóis que moravam junto a uma presa, num frondoso cômoro de loureiros. E eu adorava o seu canto que, não raro, me suspendia a leitura.
Eram anos despreocupados em que eu pegava na espingardinha e ia, de árvore em árvore, atirando aos pardais. E tudo me servia, tudo contava para a molhada. Uma velha empregada da casa, sempre que a molhada aparecia composta, comentava:
- O menino tem olho mirolho p’ra matar a passarada!
Mas um dia o tal “olho mirolho” deu mesmo para o torto. Num caminho, próximo da minha casa, então de terra batida e ladeado de oliveiras, disparei a Diana para um tal pardal, que estava camuflado pelas folhas, e o pardal caiu apenas ferido. Corri a apanhá-lo e, o pardal, era um rouxinol...
Passaram os anos, as décadas, e a espingardinha de pressão de ar jazeu sempre em telheiro de minha casa, a madeira minada pelo caruncho, o cano desfigurado pela ferrugem. Na sua podridão progressiva foi utilizada apenas para atirar às ratazanas que por vezes apareciam nos currais.
Desapareceram as bandadas de pintassilgos, são raras as serzininhas e raros os verdilhões. Há pássaros familiares da minha infância que já só encontro nos terrenos onde caço às perdizes e onde ninguém recorre à química para o seu cultivo.
Orgulhosa, talvez, do menino, a velha criada gabava o olho mirolho sem imaginar que havia coisas que matavam muito mais e às cegas. Eu também precisei de alguns anos para o saber. Quanto ao autor do Romance da Raposa, morreu há exactamente cinquenta anos sem sequer o suspeitar. (pp. 51-53)

Sérgio Paulo Silva (2013). O Bando e outras Penas de Caça. Edição do autor, fora do mercado com 50 exemplares

Sobre o blogue

Contacto: ribeira-seca@sapo.pt
número de visitas

1 - Pertence-me e não possui fins comerciais;

2 - Transmite a minha opinião;

3 - Os trabalhos publicados são da minha autoria;

4 - Poderei publicar textos de outros autores, mas se o fizer é com autorização;

5 - Desde que se enquadrem também reproduzirei artigos de imprensa;

6 - Pela Caça e Verdadeiros Caçadores;

7 - Em caso de dúvidas ou questões, poderão contactar-me através do e-mail acima;

8 - Detectada alguma imprecisão, agradeço que ma assinalem;

9 - Não é permitido o uso do conteúdo deste espaço sem autorização;

10 - Existe desde o dia 21 de Outubro de 2006.

© Pedro Miguel Silveira

Arquivo