Divina – lhe
chamam Xenofonte, Diogo Fernandes Ferreira, e todos os sequazes de Nenrode,
caçador tão formidável que o Eterno exclamou do alto, contemplando as suas
inconcebíveis façanhas: aquele salafrário dá-me cabo da Criação!
Bárbara -
contesta qualquer sócio da Protectora e, antes, os filósofos sofistas e
platónicos.
Afinal de
contas, tanto lhe cabe o conceito de divina como de bárbara: depende do ângulo
em que se coloca o observador. Nós, que somos no terreno da competição pelo
tiro aos pratos contra o tiro aos pombos de gaiola, pela batida às
perdizes pedibus calcantibus em vez de ir o "fogueteiro" ocupar
uma porta nas coutadas, mantidas na roda do ano sob a égide da G. R., pela caça
da lebre procurada pelas devezas e encostas soalheiras em vez de perseguida a
cavalo - de corricão lhe chamavam os antigos - e com galgos que só comem e
bebem e são bonitos para tal fim, diremos, dentro da lei da relatividade das
coisas, que será isso e mais uma coisa: humana.
A caça, mesmo
que considerada em tanto que ablação da vida a seres vertebrados, coloca-se num
plano incomparavelmente superior àquele em que se processa a matança
quotidiana, praticada nos animais domésticos a bem da nossa conservação, sempre
a frio, quer pelos magarefes, quer pela cozinheira de faca e alguidar. Não que
o vitelinho loiro, mamoto, de olhos inocentes, o cabritinho saltador que
executa, sem ninguém lhe ensinar, toda a espécie de gambiarras de alta
ginástica, o franganito que ensaia a sua solfa de cantador e já arrasta a asa,
sejam menos respeitáveis e interessantes sob o ponto de vista de beleza e como
máquinas de viver dotadas de uma relojoaria autónoma, mais perfeita que o mais
perfeito produto das nossas fábricas. Em face do direito à existência não lhes
assiste menos sufrágio a uns do que aos outros. Em tudo, porém, quem dá leis é
o mais forte.
O mundo está
bem, está mal construído, é também uma questão de critério. Com certeza que eu
o faria melhor... para mim. O filantropo da Sociedade Protectora pode garantir-nos
que está mal. Um tomista, pelo contrário, não deixa de proclamar: Nada mais
admirável que a obra da natureza no todo e na parte. Saiu da mão de Deus, que é
o artífice perfeito. Mas vejamos:
A venatória, é
intuitivo, nasceu com o homem e representa por conseguinte uma necessidade. Não
digo como o pão para a boca, pois que in imo não havia entre nós tal
adjuvante, mas como a água que se bebe. O homem armava seus engodos aos
animaizinhos mais fracos, mas mais lestos do que ele, a lebre, o coelho, a perdiz,
ou atacava-os de frente como o javali e o auroque, e fazia deles, crus ou
assados, um pastel ou muitos pastéis. Sempre assim foi, com mais escabeche ou
menos escabeche, à moca, a laço, à flecha, a pólvora piroxilada. Fatalidade da
orgânica terrestre. A natureza animal não é mais que uma roda girante e
contínua de navallhas, ou se quiserem, de dentes, que tal é o occídio dumas
espécies pelas outras. As superiores, como é lógico, levam sempre a melhor, e
na maneira de exercerem a sua força se inscreve a caça como actividade regular.
Os seres nutrem-se uns dos outros, a partir de aIfa para ómega, e os de ómega,
são por sua vez vítimas dos microrganismos, porventura espécies que hajam
remontado à vida e que a biologia, cujos minutos são os nossos milénios, ainda
não classificou ou de cuja existência está insegura. Encarada a esta
cronometria, a vida é um gorgulhar constante de seres, uns que vingam, outros
que se afundam e extinguem, como se vê pelo filme fantástico dos fósseis.
Nascimento, meio-dia, ocaso são fases multimilenárias essas que os nossos
sentidos não abarcam e todavia se têm como alpodras infalíveis no renovamento
da vida cósmica.
Se subsistir
implica, portanto, esta luta no mundo organizado, podia a caça ser havida como
uma prática condenável? Pelo contrário, pois que exige do caçador qualidades
particulares, tenacidade, paciência, destreza, manha, dom este que constituía o
fundo do carácter de Ulisses e o cronista João de Barros se aprazia em celebrar
nos descobridores do seu tempo, só podia conferir dignificação a quem se
ilustrasse no seu exercício.
Os Gregos, que
amassaram os seus deuses do barro comum, fizeram daqueles que simbolizavam o
lado naturalista da vida caçadores de marca. Foram-no ApoIo, Ceres e todos os
demiurgos de fama. Hércules era grande caçador, até de leões. Aquiles apanhava
o veado na carreira e Ulisses sabia mandar uma seta veloz à garça que os
seus marujinhos, pouco depois, lhe apresentavam, na nau côncava, condimentada e
assadinha nas brasas. A caça, entre outras razões que a justificavam,
impunha-se como aprendizado da guerra, condição tirânica das sociedades. O
magala faz-se soldado batendo o passo na parada, o archeiro do tempo do rei que
rabiou fazia-se no monte. Antes de se ter inventado a pólvora, não se
compreenderia que um herói celebrado nas batalhas, fosse bem embora à volta de
Santa Ilion ou nas lutas tribais, não começasse primeiro por firmar o braço a
abater o urso e a caçar o cervo.
Na Idade Média
veio a caça com falcão, o açor e o esmerilhão, para que havia mestres exímios,
tão abertos do entendimento como este Diogo F. Ferreira que deixou o
livro Arte da Caça de Altanaria. Não era mais complicado fazer dum
filho de morgado de Entre Douro e Minho bacharel in utroque jure que
dum falcão um caçador de garças e perdizes, digno de príncipe. Saber
conduzir-se com um destes bichos sábios primava a saber ler e escrever e
dançar. A sua educação começava dali. Depois vinha a filosofia, a gramática e a
geometria, que ensinavam o quantum satis da cartilha moral e a ciência
das proporções para reinar. Não digo governar; governavam-se os cavalos e aos
homens davam-se ordens. Em Xenofonte, na Ciropédia, lá encontramos
bem assinalado este aspecto da cinegética, vista como disciplina na formação
dum monarca. O tempo tudo abastarda, é certo. D. Pedro, o Cru, era grande
batedor de montes e fragoeiro; igualmente D. João lI, D. Manuel e D.
Sebastião; já com D. Henrique, esse de quem contavam:
D. Henrique
está no Inferno
No Inferno há
muitos anos,
Porque deixou
Portugal
Em testamento
aos Castelhanos
Não podia, se
é que alguma vez soube, na sua manifesta decadência física, caçar um coelho
manso. Mas atavam-lhe um cervo a um tronco e ele ali lhe ia despejar o trabuco,
forma ainda de ser rei. Mas é preciso, ao citar-se a luminosidade do Sol,
dizer-se que este é um foco de luz, ou, quanto ao espelho da ribeira corrente,
que a água é cristalina? Debuxar o que foi a venatória através das idades para
que se saiba que estava molecularmente, digamos, associada à vida do homem não
é igualmente redundância? Quem não era caçador, era um zero; espúrio da comu-
nidade. A própria Igreja consentia que o clérigo caçasse, do mesmo modo que
pescasse na ribeira, «bem embora tais funções se conciliassem mal com a
brandura e mansidão que requer o estado eclesiástico», mas que o não fizesse de
ofício.
Era, de ordinário, no clero que a cinegética rural ia recrutar as suas boas espingardas. Ainda me foi dado ter relações e mesmo intimidade com alguns destes portentos. Engrolavam a missinha com a alva, como depois o almoço, posto que substancial, e de polvorinho e chumbeira bem providos, assobiando aos cães mais jubilosamente que garganteando o Salutaris, partiam a montear. Só voltavam com as estrelas, à cinta tão imponente pendural de perdizes, coelhos e lebres, que ao outro dia lhe doíam as cruzes. As cruzes eram a região lombar, que não as cruzes da via sacra ou as que a teologia denomina a árvore da redenção. Posto que honrados e dignos homens, davam num bando de perdizes e, uma a uma, alevante após alevante, era para eles ponto de honra não despedir sem abater a todas. A perseguir uma lebre pelas neves, embora tal caça não enalteça o caçador, não viravam cara enquanto a não fossem descobrir, acachapada em cascos de rolha, para dar-lhe o pontapé e, responsando-a, acertar-lhe com um grão de chumbo detrás da orelha, excelente faena, em vez de lhe cravejar a culatra. Para fazerem dar o batecu a um coelho, não havia como esses padres do fim do século XIX, princípios do século XX. Nem um goal do Coluna. A alguns ergui nas páginas dos meus livros um hino passageiro e mal silabado, como antes muito bem o fizeram Camilo e Bulhão Pato.
Era, de ordinário, no clero que a cinegética rural ia recrutar as suas boas espingardas. Ainda me foi dado ter relações e mesmo intimidade com alguns destes portentos. Engrolavam a missinha com a alva, como depois o almoço, posto que substancial, e de polvorinho e chumbeira bem providos, assobiando aos cães mais jubilosamente que garganteando o Salutaris, partiam a montear. Só voltavam com as estrelas, à cinta tão imponente pendural de perdizes, coelhos e lebres, que ao outro dia lhe doíam as cruzes. As cruzes eram a região lombar, que não as cruzes da via sacra ou as que a teologia denomina a árvore da redenção. Posto que honrados e dignos homens, davam num bando de perdizes e, uma a uma, alevante após alevante, era para eles ponto de honra não despedir sem abater a todas. A perseguir uma lebre pelas neves, embora tal caça não enalteça o caçador, não viravam cara enquanto a não fossem descobrir, acachapada em cascos de rolha, para dar-lhe o pontapé e, responsando-a, acertar-lhe com um grão de chumbo detrás da orelha, excelente faena, em vez de lhe cravejar a culatra. Para fazerem dar o batecu a um coelho, não havia como esses padres do fim do século XIX, princípios do século XX. Nem um goal do Coluna. A alguns ergui nas páginas dos meus livros um hino passageiro e mal silabado, como antes muito bem o fizeram Camilo e Bulhão Pato.
Por que sendas
lógicas a caça era, segundo os antigos, um veículo de virtudes, salta à vista.
Não era caçador quem queria, longe do que hoje sucede.
O caçador
tinha que ser forte, corajoso, valente, solidário com o seu companheiro e ainda
por cima frugal. Porfiando, robustecia-se à força de treino; se punha brio em
fazer cinto, tinha que apurar bem os sentidos, lúzio preclaro, orelha sete
ouvidos, botas de sete léguas. O pensamento, que é um gerifalte indócil, tinha
que o trazer sempre à trela, a bem da atenção concentrada; se monteava o urso,
requeria-se que fosse bom calção e ter braço teso; às duas por três, o cavalo,
cobrando-se de pânico, tomava o freio nos dentes; se caçava de volataria, tinha
que desdobrar-se entre o açor ou falcão e a ave perseguida. Adestrando-se deste
modo, estava implicitamente apto para a guerra, como hoje não fará melhor em
Tancos. De permeio com este exercício cheio de nobreza, posto que
estereotipado, com seus riscos, devoção, glórias, medrava o parasita lucilante,
que era e é o caçador furtivo.
O caçador
furtivo ainda hoje pega da moca ou do sacho de longo cabo e cata uma légua de
terreno como um revisor às gralhas duma página de jornal. Se não topar dois,
três coelhos enleados no sono, será um milagre de Santo Huberto que deve
abominar semelhantes fautores de sacrilégio. Arma o laço à perdiz ou a boiz; pega-a
no ninho, se está no fim da postura, ou vai-lhe tirando os ovos, que
imola in loco ou em fritada com chouriço, substituindo-os por
bugalhos. A pobre ave não dá conta? Não dá. A pressa com que se insinua no
gineceu, sete olhos à direita e à esquerda, inibe-a de atentar e exercer o
sentido do tacto, mercê do qual se aperceberia, embora se interponha a almofada
das penas, da aspereza das infames nozes de galha, a que os bandoleiros muitas
vezes não se dão sequer ao trabalho de aparar as protuberâncias. É possível
também que o quinto sentido seja menos vivo nelas como menos necessário. O
mesmo sucede com as galinhas que aceitam logo à primeira o endes – índex – em
vez do ovo verdadeiro. Já as Ordenações previam este vandalismo,
cominando aqueles que lhes quebravam os ovos, caçavam ao candeio ou de cevadoiro.
A perdiz e mais pássaros caem nas armadilhas, como o coelho e a raposa nos
ferros de serrilhas, a lebre nos fios e o lobo nos fojos. Aos coelhos vai pela
calada do crepúsculo armar no toural, ou, como se diz para o Sul, no
gastadouro. O toural, cuja etimologia eu nunca penetrei, parecendo-me
que poderá vir do latim toral, manta de cama, é o lugar onde os coelhos
costumam vir de noite aliviar a tripa. A lebre exerce esta função onde lhe dá a
gana; o coelho, ou porque é mais sedentário, tem aqueles lugares da sua
predilecção, em regra na limpaça duma tapada, à beira dos córregos, num pequeno
tortelão do terreno. É ali que o caçador furtivo arma, sob uma ligeira camada
de terra, tendo o cuidado de lhe dar a aparência primitiva, o terrível engenho
de mandíbulas de aço. A operação requer a maior astúcia e destreza, porque se
em cima do prato incide maior pressão do que aquela que comporta a escápula do
chincadoiro, desfecha e pode apanhar-lhe a mão e trincar-lhe os dedos e até
partir-lhe o pulso.
Em Portugal,
por desleixo ou ignorância, a mão é que trabalha. Em França é com uma colher.
Resulta daí, por um lado, diminuir os riscos, por outro, como os coelhos são
dotados dum olfacto apuradíssimo, se vêm ao toral no princípio da noite,
farejam o odor que não deixará de ter largado a mão do homem e desarvoram.
Sempre me
tolhi de empregar estes embustes. Mas comecei por eles. A primeira vez que
cacei um laparoto nestas condições, era eu rapazito, experimentei a emoção
bárbara do triunfo e exaltação, que acompanham os lances felizes da vida, que é
uma banca de azar. Tinha já passado a noite em insomne devaneio com aquele
meu empreendimento. De manhã, parti com o lusco-fusco, para prevenir o
latrocínio, praticado por alguém mais madrugador ou a raposa que sai de manhã em
ameijoada. Lá estava o gordo láparo, desses que os serranos
chamam nabucos, inteiriçado com o codo, filado pela suã.
Esta
inebriação, que tem suas raízes no instinto da espécie, senti-a ainda quando
deitei abaixo com um tiro a primeira ave. Tinha furtado a espingarda de meu pai
e mal conhecia o seu manejo. Pois saltou-me uma noitibó e matei a pobre ave
crepuscular, que gosta de frequentar as bermas dos caminhos e se ergue bruscamente,
encandeada pela luz dos automóveis. Os seus olhos, batidos pelo revérbero,
parecem pequeninas empolas eléctricas. Em repouso o canto tem o seu que do
rasgar da chita e a última nota em esmorzo dum canto ao longe. Engoulevent
lhe chamam os Franceses e, de facto, mercê das cordas vocais, boca muito
rasgada, é cólio, mais que tudo, o que há de mavioso na sua voz.
Nunca me
perdoei aquele assassínio e sempre que nos encontramos na estrada faço
uma embardée com o carro para a não calcar. À parte o germinadoiro do
remorso póstumo, estas duas proezas instruíram-me do que era a caça, como acto
de empolgamento pessoal, com a sua ralé, estímulo e prazer inaudito de prear.
O caçador
furtivo, às lebres, arma-lhes laços de arame amarelo, extremamente corredios,
nos passeadoiros costumados. Fio que não se enferruja e resiste melhor ao empuxão.
A lebre é lasciva e desesperada com o cio que a atrai a quilómetros de
distância. Então larga de rota batida, sem resguardo no mundo nocturnal. Também
irá de expedição à horta famosa, lá longe, onde a couve troncha é um manjar
regalado. Fora disso, dotada de alma poética, bastante abstracta, vai pelas
demarcações de leira para leira, como nós vamos pelos Campos Elíseos, gozando a
paisagem. É aí que o homem matreiro armou os fios. Se os encontra na sua
jornada, basta que meta a cabeça para estar perdida. O leve impulso da marcha
provoca a constrição do laço. Ela, mal sente aquele cingidoiro, quer sacudi-lo,
e mais se aperta nele. Acontece levar de rojo a pedra de fixação, deixando
assim atrás de si a rasteira denunciadora. A geada pela noite velha cai, penetra
a terra, arrefece-lhe o sangue, e a lebre adquire a rigidez pétrea de corpo embalsamado.
Uma lebre, surpreendida no covil, olhos castanhos oblíquos tão abertos que,
parecendo velar, dorme, bigodes dos antigos guardas municipais, orelhas
deitadas para o lombo, recalcada sobre si, samarra de pelúcia aleonada, com
salpicos negros, é uma linda coisa da madre natura. Fuzilá-la ali é um
crime contra a beleza. Um estalido com a língua e ei-la tornada em péla
saltante. O caçador que se preza segue-a com a mira e só dispara à altura
regulamentar. Um grão na nuca ou na região do coração, calculados segundo os
dados empíricos da balística cinegética, será a sorte gloriosa. Mandar-lhe a
chumbada ao traseiro, ao sac à plomb, é de pechotes e as mais
das vezes para vê-la ir.
Uma lebre
adulta dá carne para uma malhada. Quem for entendido na arte de Brillat Savarin
tira dela bifes, almôndegas e um arroz, podendo aproveitar-se-lhe o sangue, que
é de comer e morrer por mais. A lebre é omnívora e quando lhe acontece cevar-se
nas entranhas dum burro, cavalo, carneiro mortos, a sua carne é
saborosíssima.
Tive a prova.
Certo dia, recebo um convite do abade de Peravelha, mais duma vez meu
companheiro de monte, para uma arrozada de lebre. Fui ao bródio, de caminho
dando o meu tiro, gozando a natureza no facies outonal. A orvalhada da noite
perla as fibrilhas nadas dos centeios e os panascais, de coma construída a
riscos de guache, e, se lhes acerta o sol, é uma joalheria estranha que se
ilumina diante de nossos olhos. Emigraram todas as aves, menos as indígenas, e
dessas, as que são palradoras, tal o gaio, grazinam e berram para os soitos por
todos os foles, como senhores que são da Honra. O vapor do nosso hálito vai
adiante de nós, e o frio da atmosfera traz-nos com a sua impregnação uma
agilidade singular.
O abade tinha
lá bom vinho e a cozinheira era de truz. Celebrámos a arrozada e o
abade disse, rindo para o professor MeIo, que era anojadiço:
- Matei esta
lebre no caminho para Moimenta, numa encosta, antes de chegar à Serrinha. Dias
antes um burro quebrara ali uma perna ao passar o pontão. Era do moleiro da
Paiva, e, lá porque quisesse tirar-lhe a pele, chamou um samarreiro que começou
por abrir-lhe a aorta. Durante dias foi um fartote para os cães da aldeia.
Deviam ter vindo ainda os lobos, mas muito de afogadilho, porque o lugar era
exposto e susceptível de emboscada. O asno de regular corpulência forneceu
lauto festim. Quando ficou só a carcaça e umas farripas de carne entre as
vértebras, disse para mim: chegou a vez das lebres. Depois, reduzido o begueiro
a um cangalho de calcáreo branco, está ali o cortiço ideal para o primeiro
enxame que deserte da colmeia. Noutros tempos, os ossos eram ainda aproveitados
para refinar o açúcar, tenho ouvido dizer. Hoje, não sei que mistela lhe
associam. Mas, como ia dizendo, o burro estava na fase leporídea e palpitou-me,
quando subi o cabeço de dedo no gatilho, que me ia saltar lebre. Como de facto,
saltou-me um lebrão, mais ensanguentado que um carniceiro da vila. Foi ele que
forneceu o arroz que os meus amigos, inclusive o senhor professor MeIo, acharam
excelente.
Rimos todos.
Observei eu:
- O abade
leu isso no Pentateuco?
- Meu
menino, o Pentateuco, posto que um código universal, é omisso em
matéria de caça. Os Hebreus eram um ramo da família semita, nómada por
excelência, e a caça obedecia às contingências do pastoreio. Não havia
dissociação.
- Li
algures que conheciam 200 receitas quanto a cozinhar o nosso bacalhau...
perdão, as codornizes...
Este abade de
Pera Velha era uma das espingardas de fama da serra da Nave. Quando começava a
caçar, benzia-se como quando abria o breviário. Não era sôfrego nem
precipitado, por isso errar ele um tiro era coisa para se espantarem os homens na
Terra e os anjos no Céu. No encalço dum bando de perdizes, torneando à direita
e torneando à esquerda, guiado pelo ultracatedrático Piloto, ninguém o excedia.
Ao rezar o De profundis à última perdiz do bando, tirava então o
alcobaça do bolso e limpava o cachaço que de pelagem crescida e ensilvada
parecia um panascal debaixo do orvalho numa manhã de céu sem nuvens.
Este
eclesiástico, Padre Sebastião de Magalhães, era o centro do meu grupo
cinegético e um caçador a toda a prova. Irrepreensível na sua vida particular,
ninguém o superava no bom humor e disposição. Fisicamente era um homem baixo,
reforçado de ombros e peito, sobre o gordo, mas duma gordura que estava ali
para bom funcionamento dos tendões, e não como uma reserva de adipes.
Às vezes no
cerco a uma tapada de urgueiral, com os cães por entre o mato em animada
fanfarra, sucedia que o abade, ao embrulhar o kentucki, deixasse escapar o
coelho por uma vereda mais escusa. Quando se refazia, já o bicho ia fora
de tiro, dando pinotes, a borboletinha branca do rabo a luzir por entre as
urzes:
- Agora,
abade, atire-lhe com um kyrie-eleison! - exclamava o Dr. Malaquias irreverente
e malcriado, tido por ganho às ideias novas.
- Empresta cá
a foice e o martelo que ainda o alcanço!
- Vai a
mostrar-lhe os dez mandamentos...
- Não será
O Capital de Marx, seu bacharel das dúzias!?
Deitavam todos
a rir. A caça criava um espírito de liberdade e de despreconcebimento para lá
de todas as restrições. Ar livre, aventura, jogo, faculdades fixas num
objectivo, e lá se ia a permeabilidade à intolerância.
Havia outro
eclesiástico na nossa sociedade, também bom atirador, mas ciumento dos bons
tiros dos parceiros. Um dia pegou-se com o MeIo que primava no tiro de chofre:
- Para outra
vez, se o senhor persiste em disparar sobre caça que me rompe dos pés e que, em
bom direito, me pertence, malho-lhe o tiro de que me privou!
- A
caça é de quem lhe atira primeiro. Vá lá dar leis na sacristia.
Passado o
repente da inveja, era o melhor dos homens. Tinha sempre cães muito finos, e
chamava-se ter perna. Um coelho a chiar no meio, dum bastio, apanhado pelos
cães, que com poucos segundos o chamariam ao estreito, e ele a pular por cima
de giestas e urgueiras como num steeple-chase para o arrancar à fauce
devorante.
Estas caçadas
ao coelho em volta da mata, cada espingarda em ponto alto, caladas e atentas,
com os cães a fungar e a maticar a espaços, até desfechar em filarmónica pegada
de requintas, é um dos números da venatória nortenha. Atrás de um coelho,
levantam-se dez; de envolta, não raro, salta a raposa e até o lobo. Mas estes
rapaces de grande pé e maior astúcia conhecem de qualquer bosque, que conte, as
seitas especiais (seita do latim seco, seguir caminho) e quando os
caçadores mal se precatam tocam o bendito lá longe. E era de contar com a
graçola, se eram presentes o abade Magalhães e o Dr. Malaquias:
- Ó abade,
response-o à Senhora da Esgueira!
Os coelhos, a
tanto alarido, tanta celeuma, a tanta parte cantante, acabam paralisados. Um ou
outro caçador apanhava-os aos pés, nem beliscados por um grão de chumbo.
Estas são as
manchas escuras da caça, como se encontram aliás em tudo.
Outro caçador
curioso era o José Nectário, lindo nome celebrado algures por Anatole France.
Calçado de tamancos e equipado de espingarda reiuna, o seu tiro fazia roda como
o jacto de água dum borrifador (...)
Não gostava de
queimar pólvora a pardais e só pelo seguro, que a sua escopeta precisava de
muito alimento para cevar-se. Primava pelo ardil e sortes correlativas. O
coelho a saltar fora das matas, baldeado pelos cães e ele a romper em alta
cantata, ao passo que caminhava para ele:
- Ó
ladrãozinho, não te vás embora, espera aí por mim! Vê lá, não me faças a
desfeita de dar às de vila Diogo! Olari-Iarilolé e olari-Iarilolá, meu bem!
O pobre bicho
habituado ao babaréu dos pastores, rebolantes, assobiantes, cantarolantes,
inocentemente faunescos, deixava aproximar o monstro. E só desfechava quando
errar o tiro naquele alvo era mais piramidal que errar uma casa. O caçapo passava à
bita eterna (ad vitam aeternam) segundo a sua fraseologia, reduzido a
grude. O Nectário embrulhava-o num lenço e metia-o no alforge da algibeira,
para que se não perdesse cibalho.
Outro, não
menos patusco, chamavam-no o senhor Fatalmente. Também de socos,
lazarina, polvorinho e chumbeira a tiracolo, era o arreburrinho da malta.
Aquela palavra, que acabara por tornar-se alcunha, era um estribilho necessário
na sua boca como o diabo na boca de outros. Este confeccionava a pólvora em
casa, com carvões de vide, que levantava mais fumo que barrela a lenha verde.
Quando no horizonte se erguia subitamente uma nuvem negra sobre os cerros,
sabia-se que era o Fatalmente que descarregava o canhão. Tinha olhos
de lince e o seu forte era enxergar a caça no covil. Com este, a caça recuava
aos primórdios das armas de fogo e do batedor utilitário dos montes. Caçava de
encomenda e para adubar a panela.
O bando ia,
deste modo, da hammerless, canos de aço, pólvora inglesa, à escopeta
de carregar pela boca, canos longos de colubrina. Ás vezes acontecia estes
bacamartes, alguns a pedir pederneira, darem um «bigode» - o termo é do calão
cinegético - às belas armas de fogo central. Seguia-se grande assuada. O
caçador das serras ignora o que seja curialidade e muito menos discreção. Tudo
tem que decorrer no plano elementar da franca natureza.
Ao meio-dia a
malta procurava a sombra de uma carvalha ou de um castanheiro, se no Outono se
prolongavam os calmuços do Verão. Tiravam os cintos, que iam pendurar
estudadamente nas vergônteas altas onde não chegavam os cães agatunados e
puxavam dos farnéis. Era à hora confraternal do ágape. Fazia-se mesa comum e a
cabaça andava à roda, se é que, havendo taverneiro próximo, não vinha o cântaro
com o palhete e copos para os mais pestinheiros, o abade, o bacharel, o professor,
etc. E entre palitar os dentes e fumar uma cigarrada, rompiam as anedotas.
«O Gil
Sapateiro, na sua qualidade de atirador de cara e Ioquaz por índole, era o
discursador incontroverso:
- Uma vez -
contava ele - acabou-se-me o chumbo. Tinha dado num bando de perdizes, ariscas
com o suão, e era vê-las tocar guizos para lá do campo de tiro e desaparecer
detrás dos cabeços. Carga a carga, quando dei conta não tinha bago na
chumbeira. O diabo foi que a certa altura vejo avançar uma lebre, aos
saltinhos, tep-tep, tep-tep, furtada aos cães, de que se ouvia a maticada ao
longe. Raio de azar! E agora? Eu estava num pinhal, e ponho-me por vício a
escarafunchar nos bolsos quando descubro um prego no meio do cotão. Ora, atiro
com ele, um destes pregos caibrais maiores que os que crucificaram a Cristo,
para dentro da espingarda e, quando a lebre ia a atravessar, aponto, escondido
atrás de uma giesta, disparo... olho, lá estava a lebre, caramba! Uma
lebre grande como um chibo. O mais bonito, querem vocês saber, é que ficou
cravada pelas orelhas contra um pinheiro. Dava salto que nem corça!...
Os mais
imaginativos ficaram de boca aberta admirados e cândidos; os incréus riam. O
Quim da Bezerra comentava com ar sisudo:
- Sucedeu uma
áfrica parecida com o meu avô Bezerra. Vocês conheceram-no: Tinha uma dentuça
que nem um fidalgo. dois dentes eram de oiro. Arranjou-a no Brasil. Pois andava
à caça e vê vir uma lebre. Não trazia grão de chumbo e que faz ele? Leva
os dedos à boca e arranca um dente chumbado que lhe andava a abanar. Carregou a
espingarda e, pumba, atravessou a lebre como se fosse um zagalote.
«O Gil
Sapateiro hesitou se devia indignar-se, se rir. Saíu-se pela porta da
velhacaria:
- Podeis
acreditar que foi verdade. Também lho ouvi contar com estes que a terra há-de
comer.
- Pois
seria. Agora lá a do prego é que me cheira a escova - dizia um mais sério.
- Assim
Deus me salve, como falo verdade. Na caça, amigos, sucedem destas maravilhas.
Vós ainda haveis de comer muita rasa de sal para sairdes da cepa torta do
laparoto trucidado no tojo e da rola assassinada no galho de um pinheiro.
Façanhas e
anedotas com caçadores sucediam-se de cambulhada como as cerejas. Era ainda ele
quem contava como, num dia de Verão, voltando da feira de bicicleta, onde fora
comprar pez para as linhas, uma lebre se esbarrara com ele. Atirou-lhe com a
bola do pez, que se lhe colou no focinho ao que ia de mole. Vai, descia uma
segunda, o macho, do outeiro de Santo Antão tão cega com o cio que veio mesmo
marrar com a outra e lá ficaram as duas coladas, tão coladinhas, que foi só
deitar-lhes os galfarros e pô-las à cinta.
Os cépticos
respondiam com vaias e gracejos. Os sisudos benziam-se. Ele jurava por sua alma
e a de sua avó que fora assim mesmo. E acabava de ficar tão convicto da patranha
forjada, que puxava para o Quim da Bezerra, que se permitia duvidar.»
«- Hoje é que
vocemecê há-de vender o Vaivém...
O Vaivém era
um podengo, atravessado de navarro, que pertencia ao Gil e ao Alonso Vendeiro.
Andava de cá para lá, da fome para a vontade de comer, do pontapé para a
trancada, por isso lhe deram aquele bonito e dinâmico nome. Como buscava muito
bem de ferido e trazia à mão, começavam a requestar-lho os caçadores de posses.
- Vendo.
Quanto dás por ele? - respondeu Gil para o Bezerra, mais que tudo alanzoeiro.
- Dou-lhe cem
paus, mas há-de-me garantir que não furta a caça chumbada para a imolar...
- Bem sabes
que não tem os teus vícios. Ficou curado de vez.
- Hum!
- Nem um nem
dois!
A receita com
que o curei já me tem dado bom dinheirinho a ganhar. Nem uma botica!
Ainda a semana passada um cagaréu de Aveiro escarrou vinte escudos...
- Diga
lá...
- E baguinho?
- Pago um
quartilho...
- Um
quartilho precisavas tu mas era de rosalgar!
- Escusa de
estar com panos quentes que eu conheço-lhe a receita como os meus dedos. Não?
Eu andava com as vacas no lameiro quando lha vi aplicar ao pobre
do Vaivém. Mas é uma grande brutalidade. Vi, homem! Não acredita...?
Então oiça. Vossemecê estava em cima da parede quando o coelho se lhe chegou ao
campo de tiro. Pum! - Foi-se embora o excomungado! Rai's parta a
pólvora que anda falsificada! - desatou vossemecê, enraivecido. Pôs-se a
carregar a espingarda e, vai senão quando, ouviu chiar para o meio das giestas.
Correu lá... Por modos o Vaivém estava a acabar de engolir a peça...
- Lá isso é
verdade. Só tinha as pernas de fora.
- É para que
veja que não estou a inventar. O cão fugiu-lhe com o caçapo...
- Caçapo?
Era um nabuco de coelho como há muito não pego. Ali, naqueles
matagais, a caça é bem medrada.
- Seria, seria
um coelhão. O cachorro a correr e vossemecê atrás dele: Vaivém, boca aqui,
Vaivém! Larga, Vaivém! Ah, ladrão, que mas pagas! Aqui para nós que
ninguém nos ouve, se vossemecê deitasse o caldo aos cães lá lhe não assucediam
destas partes. Vossemecê fá-Ios jejuar os quarenta dias da Quaresma por si,
pela mulher, pelos quatro filhos, e lá se vai em dieta o ano todo.
- Safa safado,
eu não deitarei de comer aos cães? Se o há primeiro comem eles do que
eu! Se o não há, não há. Assim Deus me salve!
- Adiante que
é festa - prosseguiu o Bezerra impiedosamente facecioso. - Vossemecê foi pilhar
o Vaivém à beira mesmo do Paiva. O palerma ali deixou-se agarrar.
Sujeitou-o pelo cachaço com uma mão, a outra deitou-a aos pernis do coelho, que
era quanto se lhe via fora da bocarra. E rompeu a puxar vossemecê para uma
banda, ele para a outra. Disse para comigo que o mais provável era o coelho
estroncar. Qual, não estroncou. Vossemecê foi-se ao rio sem largar as patas do
coelho, com o cão de rastos como por uma trela, e lá teve jeitos de apanhar um
gogo mesmo ao fio de água. É assim ou não é assim?
- É
assim. Agora, havia de eu ver que me estavas a espreitar que te mandava
uma chumbada pelos olhos. Eu já sabia que andas por cima dos telhados a
escogitar o que faz a gente honrada em sua casa.
- Não herdei
as suas manhas. O que se enxerga a céu aberto não é segredo. Mas quer ouvir o
resto ou não quer?
- Conta, conta
lá, homem! - incitaram muitas vozes a um tempo.
- Pois aí
rompe o tio Gil com o gogo a esfregar a goela do animal, zape que zape, ora na
água da ribeira ora no coirão do pobre cãozinho, até que ele se pôs a ganir e
aos pulos. Mesmo assim não largava o coelho, tal a fomaça que trazia, ou então
o coelho tinha-se-lhe agarranchado ao bucho, sabe-se lá com que fateixas. Mas
vossemecê teimou com a medicina e afinal o desgraçado lá revessou o coelho
inteirinho. Que o pusesse à cinta, não reparei! Pelo menos, não lho vi
ajoujar...
- Faltava só
essa, Então havia de pôr à cinta o coelho trincado e mastigado!? Tua mãe é que,
morrem as pitas, vai pela calada, apanha-as e papa-as e dá-tas a papar. - Vi o
cão recessar o coelho, vi vossemecê pegar nele, mas não lho vi pôr à cinta, a verdade
manda Deus que se diga.
- Peguei nele
a estudar o tiro, maldito do Senhor!
- O Vaivém, coitado,
vomitou o coelho, vomitou tudo quanto lá tinha dentro. Não vomitou a cama
das tripas porque é cão.
- Mas
ficou curado.
- Diz
vossemecê que sim e eu acredito. Mas por pouco que não deu o cadilho. Vocês não
viram? A ferida na garganta ganhou chostra. Metia nojo. Lá arribou. Aqui tendes
a medicina do tio Gil que vale a botica do Heitor de Barrelas! Ah, ah, ah!
- Hás-de
ir dar lições aos porcos do Alentejo. A mim não mas dás tu. Esfreguei com um
calhau a gola do animal, esfreguei, mas as palavras com que acompanho
a operação não as sabes tu. O que vos digo é que melhor mezinha até hoje não se
inventou para curar a voracidade dos cães. Podeis deixar o Vaivém com
qualquer peça de caça, mesmo esfolada, nem olha para ela. Queres
ver? Vaivém!
O podengo veio
a abanar o rabo, na máscara de dragão japonês, o sorriso afável mais
bonacheirão deste mundo. Chegou-lhe o coelho à venta bicúspide.
Virou a cara para a banda, desdenhoso e superior, mais que bem
lembrado.»
O abade, gordo
e perna lépida, deitara-se de papo para o ar com o tabaqueiro vermelho em cima
da cara por causa das moscas. Não ouvia até fim o rosário das anedotas. A certa
altura ressonava. Repercutia aquele órgão de sé a um quilómetro de distância.
O Fatalmente secundava-o com solo de pífaro. Estava o concerto
armado.
Todos
estimavam o abade, e erguiam-se devagarinho para o não acordar. E iam para
baixo doutra carvalha jogar a bisca samarreira que o Nectário não dava um passo
fora de casa sem trazer o livro das quarenta folhas.
A caça
evolui como tudo neste mundo, a começar pelo instinto de conservação e ralé dos
animaizinhos do monte. Conheci a perdiz de voo regular e poiso ao sabor do
vento ou lançada pelas devesas de pé ligeiro e cabeça artola quando não havia
perigo imediato. A noite passava-a com o bando num refolho da encosta entre
arbustos, não tão altos que se não divisasse o lombo da raposa, nem tão baixos
que a sua presença entreluzisse ao falcão ou peneireiro de olhos de lince, que
passeia pela terra, do alto céu, olhos de pirata. Ao presente dormem empoleiradas
nas árvores. Dormem iguahnente a sesta ocultas nos ramos dum amieiro ou
salgueiro. Quando andam nas searas e buscam o grão perdido ou os insectos que
lhe dão gosto, põem sentinelas nas monticulações do terreno, de preferência nos
rochedos, se ali os há, ou na parede. Comportam-se em matéria de vigilância
como os estorninhos. Sabem o que é uma espingarda, que distinguem perfeitamente
da aguilhada do boieiro ou do cajado do pastor. Quem as ensinou? Mas decerto
que não tiveram mestre. É a memória da espécie que fixou aquele facto e o
inscreveu no instinto como noção prima a atender na defesa. Entre outras
circunstâncias da sua reconformação, notei que se espalham em leque, cada uma
para seu lado, as vezes que ergue voo ao aproximar-se inimigo. O perdigão,
quando a fêmea está no choco, é que não aprendeu outro modo de embalá-la senão
erguendo-lhe aquele entusiástico epitalâmio que ecoa vibrantemente na natureza
adormecida. Nem tão-pouco sabe melhor solfa quando se trata de escolher
noiva.
Jamais, como
nos tempos actuais, é perseguida a perdiz e apreciada pelos gastrónomos, que se
multiplicaram menos que as espingardas, a sua carne, de tão esquisito sabor.
Este tributo é a primeira causa da guerra que lhe movem.
Que é,
porventura, a ave mais linda de Portugal, irá jurá-lo quem tenha o sentido das
proporções e das cambiantes no jogo das cores. Em atenção àquele seu porte tão
donoso, manto dum cinzento-claro com arrebiques ondeados de azul-celeste nas
asas e no colo, uma suspeita de vermelho, que se torna carmim-encarniçado no
círculo ocular, bico e pés, tocando tintináculos de prata, seria caso de
sagrá-la a ave reginal dos nossos montes, e poupá-la para regalo dos olhos.
Também elas são insectívoras, pelo menos no estado de perdigotos, e podiam
invocar esse serviço prestado aos homens para que as deixassem em paz. Põe-se
de parte a alegação que poderiam apresentar no tribunal biológico: a nossa
existência para nós não é tão preciosa como a vossa para vós, em
tanto que incongruento e absurdo à face do direito que elaborámos para nosso
uso e está em vigor. E firmes nas nossas prerrogativas continua a matança
anual, nem sempre segundo os ditames da boa ética venatória.
Parece dever
considerar-se um postulado que, melhor que a perdiz, sabem os roedores e as
feras iludir a guerra que lhes fazem. A lebre, muito antes de chegar o galgo ou
o podengo, com o dono, à cauda, de espingarda aperrada, deu fé e pôs-se em
França. O mesmo fazem os coelhos que se refugiam nas casamatas subterrâneas ou
no tojal intrincado onde facilmente zombam dos cães.
E não se fala
de lobos e raposas que aventam o cerco, rompem por uma porta falsa, e buscam
lugar seguro a trinta, quarenta quilómetros de distância, depois de passar
senha a seus irmãos. As aparatosas batidas, organizadas a largo prazo como
expedições, redundam em acabadíssimos fiascos. Se cai um para amostra, é que se
quis suicidar, ou a idade provecta, óbice fatal de todos os viventes, o privou
dos meios oportunos de fuga.
Esta evolução,
que se dá na inteligência dos animais e se lhes vai radicando no instinto,
corresponde aos progressos que houve nas armas de fogo e, análise feita, na
arte da caça. Onde está o arcabuz de um cano, reiuna ou lazarina, de carregar pela
boca, à orça, com pólvora dos fogueteiros, musgo por bucha, para não ir mais
longe? A espingarda de repetição, Mauser ou Remington, é leve como uma
pena e comporta cinco cartuchos na recâmara. Não se abate a peça de caça com um
tiro, ou dois, quando se errou o primeiro, abate-se a uma rajada de
metralhadora.
Salta aos
olhos da cara que a arte da caça, dados os recursos novos, tenha feito
progressos muito maiores na ofensiva que os bichos monteses na defensiva. E
pois que assim é, mercê dos admiráveis inventos dos espingardeiros, das batidas
sistemáticas, das coutadas reservadas que fazem o vácuo venatório no agro em
redondo, e, depois com batedores e espingardas atentas e bem munidas, dão
lugar à hecatomhe sem glória, como a espera às rolas na passagem e o
tiro aos pombos de engorda, as espécies extinguir-se-ão mais depressa do que
está no ritmo da lei biológica.
Segundo parece
aos sábios, está a caminho de desaparecimento a grande família dos
pássaros, e já a sua rarefação é notória de década para década.
Folheio
a Cinegética de Xenofonte e tenho a impressão de que abro a meus
olhos um tratado de caça para uso dos caçadores do Norte de
Portugal. Falta-lhe o que respeita a espingardaria, mas no resto, cães,
batedores, bichos, armadilhas, laços, inclusive os montes e plainos da Ática
que lembram a terra beiroa ou minhota com os acidentes tão pronunciados do
solo, é tal qual. Mas querem ver como sai sublimada da sua pena a arte da
caça? Basta segui-la nas origens. «ApoIo fez presente a Chironte dos
apetrechos de caçador para o recompensar pelo seu espírito de justiça. E
ele, quando se apercebeu da natureza e importância do dom, deu largas a seu
júbilo. Depois, Esculápio, demiurgo, revelou tanta paixão no exercício da
caça e tanto carinho e humanidade na maneira com que tratava os animais que
recebeu por seu turno, em galardão, a ciência de curar.» Após este
preâmbulo de enaltecimento, ensina Xenofonte como se tecem as redes de espécie
vária. De passagem vai advertindo que semelhante prática requer qualidades
especiais da juventude, agilidade, robustez, coragem a toda a prova, e que se
saiba o grego. Que se soubesse o grego, porque implicava elevação o seu
conhecimento. Em seguida instrui quanto aos cães. Olhe-se-lhes antes de
mais nada para a cabeça. Deve ser pequena e móvel, nervosa e curta, com rugas
abaixo da testa, olhos negros e brilhantes, orelhas grandes e delgadas sem
pêlo no reverso, e alegres de expressão. Os
lebréus - parece que não conhecia os nossos galgos - apenas são
bons com pêlos debaixo do queixo. Em concordância também lá diz o
ditado: Quando no teu cão o pêlo é só um, vale um
pirum; dois, vale uns bois; com três ou mais de três, não o vendas
nem o dês.
Querem caçar a
lebre? Considerem que o seu rasto é longo no Inverno, dada a lonjura das noites,
e curto no Estio pela razão oposta. Nas manhãs de geada não trates mal o teu
cão porque não tem faro; o códão condensou em si o odor da caça de alevante.
Para dormir, a lebre retrai os quadris dianteiro para debaixo da ilharga; junta
à frente as pernas estendidas e repousa o queixal sobre as mãos; as orelhas
reclinam-se sobre as omoplatas e servirão de cachecol às partes
melindrosas do pescoço. O seu pêlo espesso é o seu melhor cobertor. Agora
atenção: se pestaneja, é que está vigilante; se os seus olhos estão fixos e
abertos a toda a luz, parecendo que está acordada, é que dorme.
Ensina ainda
como se tratam os cães e as crias, se armam os laços, mas na sua didáctica não
alcança ao falcão nem ao açor. As armas limitavam-se ao dardo, à faca de mato e
à lança para o javali e o lobo.
A Arte da
Caça por Diogo F. Fernandes faz parte da história pregressa de Portugal.
Falcoeiro de D. Sebastião, acabou ali, com este rei, a altanaria. A fim de
exercerem a seu cómodo semelhante actividade, os reis dispunham em torno da
capital duma coutada, chamada a Coutada Nova, que seria já velha para D.
Sancho. De relance afigura-se que é pequena tal reserva quando em realidade era
bem espaçosa e povoadíssima das várias espécies. «E pessoa alguma de
qualquer qualidade que não cace, nem mate perdizes com açor, gavião, nem com
armadilha, nem a corricão, na coutada nova de Lisboa, que começa da estrada que
vai dela para Benfica, e de Benfica a São Marcos, e de São
Marcos a Oeiras, e daí direito ao mar. Nem cace, nem mate na dita
coutada lebres com galgos, redes, bésta, espingarda, nem com outra
alguma armadilha. E quem o contrário fizer, sendo fidalgo, seja
preso, e da prisão pague por cada vez cinquenta cruzados. E sendo de
menor qualidade, seja preso, e da prisão pague vinte cruzados, e
percam as aves,
cães, e instrumentos com que caçarem, a metade para nossa câmara, e a
outra para quem acusar.»
Lê-se isto
nas Ordenações, recompiladas em 1603, devendo portanto semelhante
legislação vir de longe. Era já aquela a coutada real, campo de façanhas
cinegético-judiciais de Pedro, o Cru, que no monte ministrava justiça, e para
D. Sebastião, que monteando se exercitava para a guerra. Ursos e cervos brilhavam
pela ausência. Em tanto que monarcas, caçavam onde lhes desse a gana. Outras
coutadas se haviam eles talhado no reino, mas prevenidas de menores resguardos,
não falando no termo de Sintra e Cascais, em Coimbra, Évora, Arraiolos, e mais
lugares favoritos, nunca devendo o fabiano caçar ali perdizes ao candeio, com
redes de cevadoiro, perdigão cantante ou chamariz.
O nosso autor,
a quem não era estranho Xenofonte, celebra também a caça como escola dos
«homens ágeis, fortes e robustos, desprezadores das delícias». E vai mesmo mais
longe que o grego, tendo porventura em mente o seu real amo: conserva a
castidade. «Foi por isso que Diana, para guardar a pureza, fugiu à conversação
com os homens e se fez caçadora.»
Assim não
admira vermo-lo confessar que, se cometeu compor esta obrinha, é porque o
exercício da caça é «sem pecado e passatempo de príncipes, utilíssimo à saúde
do corpo e da alma». Diogo Ferreira prelecciona-nos dos preceitos e regras a
observar quanto a adestrar aves de rapina para a caça, os esmeros que exigem,
qual o seu preço nos países de origem, Dinamarca e Noruega - que os nativos
eram fraca fazenda, a maneira de curá-las, se bem que tal matéria constitua um
capítulo à parte da cetraria. E fá-lo com tal cópia de noções e conhecimentos
que ficamos capacitados que tornar apto um bom açor de modo a ser digno de
poisar na alcândora real e um esmerilhão no punho duma princesa - se é que a
corte portuguesa criava de tais amazonas - era mais complicado
que ordenar um filho padre.
Diogo
Fernandes Ferreira foi o último mestre falcoeiro de Portugal. Os Filipes
caçavam longe, lá para a Serra Morena. Os fidalgos rezavam ou vinham
descoroçoados com a vida do cativeiro em Marrocos. VoItara-se, para nunca mais,
uma página na história da cinegética.
Aquilino Ribeiro
Caricatura: Aquilino Ribeiro visto por Rebelo
Carlos Eurico da Costa (1963). A Caça em Portugal, Tomo I. Editorial Estampa
Caricatura: Aquilino Ribeiro visto por Rebelo
Carlos Eurico da Costa (1963). A Caça em Portugal, Tomo I. Editorial Estampa