Eu não sei se Vossenhorias sabem que esta Serra de Bornes,
noutros tempos, era a melhor coutada da província. Da província? Do reino todo,
quanto mais da província! Hoje não. Hoje, três vezes nove vinte-sete. Mas
naquele tempo... Assucedeu isto no tempo da guerra, já lá vão mais de cinquenta
anos, num lugar da serra que lhe chamam a Carvalheira. Andava eu e o meu
compadre Sabastião, que morreu há dois anos pelos Santos, tolhidinho do reumático
assim como eu, que mal se alevantava já. Pois saibam que naquele tempo não
havia nada que se nos metesse à frente. Quem diria os cacos a que haveríamos de
chegar... Caçada em que não calcorreássemos vinte quilómetros e não trouxéssemos
uma dúzia de perdizes à cinta não era caçada.
Mas, nem de propósito, naquele dia em que tal caso
assucedeu, as perdizes andavam esquivas. Quem lhe punha a vista em cima? Os cães
bem fusgavam o mato, a farar, a farar, que pareciam a máquina do combóio. Pois
sim. Deixá-los farar. Parecia que tinha passado por ali um furacão e não ficara
raça de perdiz. De repente, grita o Sabastião, que ia a dobrar um cabeceiro,
para mim, que andava mais abaixo, a meia encosta:
- Eh, Zeferino, parece que já dei nelas! Anda daí, homem,
que, pelo barulho, handem ser para cima de vinte perdizes. Ouvi agora mesmo
rotar o bando, ali atrás do alto. Chegam para ti e para mim, e ainda hadem
sobrar perdizes!
À sede com que lhe andava, botei a correr como um cavalo,
encosta acima, ao encontro dele. E com efeito, quando estava a chegar pertinho,
rota o bando segunda vez: brrrrrrrr!
- Ah, compadre, até que enfim vamos a fazer o gostinho ao
dedo. Já não era sem tempo. Estas perdizes são nossas, nem que tênhamos de ir
atrás delas até Soeima, e nem Santo António lhe vale! Hemos de as levar de
afeito!
E aí vamos nós, a mata-cavalo, a dobrar o altinho, para ver
se ainda víamos onde é que o bando ia pousar, para lhe cairmos em cima. Mas
dobremos o alto, e perdizes – que é delas?
Olhemos um para o outro, assaranpantados. Quenquera o diz.
Tinhamos ouvido tão bem o bando a alevantar voo – onde estava o bando carvalho?
Nisto, ouvimos outra vez, ali pertinho, à nossa mão esquerda: brrrrrrrr!, como
se o bando se tivesse alevantado ali mesmo a dois passos. Viremos a cabeça – e o
que vai ser? Não adivinham... Um burro, com licença de Vossenhorias! Um burro,
sim senhor, que ali estava preso à corda, a pastar com toda a pachorra um
fenanco, ementes o dono andava mais
abaixo, a cavar uma horteca. Um burro, pergunta Vossenhoria. Um burro pois!
Nunca ouviu espirrar um burro? Pois fazem assim, brrrrrrrr!, sem tirar nem pôr,
tal e qual como um bando de perdizes quando abre as asas e deita a voar.
Assim à primeira, o Sabastião e eu fiquemos a olhar um para o outro, como quem diz: “O
estupor do burro!” E então impecemos a rir, a rir como perdidos, em tão altas
gargalhadas que até o dono do burro parou de cavar e se pôs a olhar para nós
muito espantado.
Dali em diante, quando andávamos no monte e calhava de
vermos um jumento, dizia logo o primeiro que as visse:
- Olha o bando da Carvalheira, compadre! Fogo nele!
- É verdade! Lá vai ele!
Aí têm Vossenhorias a história do bando da Carvalheira, tal
e qual como assucedeu. Há-de haver para cima de cinquenta anos, e ainda tal não
me esqueceu.
António Manuel Pires Cabral (2009). Páginas de Caça (pp.
106-108). Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros e Âncora Editora.
Aguarela "Perdiz", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)