Deste deslumbrante trabalho de José Maria Souza Guedes, através do qual percorremos poemas e contos, diz-nos Guida Morais e Castro que quando as palavras de um poeta subtilmente se transformam numa melodia de imagens, sons e emoções, transportando os nossos sentidos para mundos desconhecidos e longínquos, que porém se tornam tão familiares e tão cerca, sucede um milagre: a nossa alma dança.
Vitor da Rocha acrescenta-nos que, ambos, poemas e contos, respondem bem pela sua paternidade, denunciando cumplicemente a sua origem, da mesma postura perante a vida, num misto de melancolia e ternura pelos seres e coisas mais insignificantes, uma suave angústia perante os dentes do tempo, que, impavidamente, no encaminha, ora a bem, ora a mal, para a ladeira derradeira - o que, aliás, é logo denunciado pelo próprio título da obra. Um livro fascinante, de regresso ao húmus, mas também à corrente límpida das palavras, que, tal como os cenários e seres que descreve e recria, se nos revelam em toda a inocência de um texto que pode e deve ser lido por todos e para todos.
Galinhola
Nesta gaiola...
Ave rara aqui na feira, onde toda a gente diz que este bico
não é de perdiz.
Estou exausta, cansada, mal consigo distinguir entre a balbúrdia
e o zunir desta gente, ou as ondas permanentes do oceano sem fim que acabei de
atravessar.
Vim de longe, muito longe... Do lado de lá do nascente...
Mas toda a gente insiste que sou diferente... O feirante diz
à gente que eu sou um gavião, uma espécie única vinda do oriente... Outro mais
entendido diz que não... Que não...
Que sou apenas um faisão. Mas o feirante insiste que sou um
falcão, uma ave especial que veio do Japão, um papagaio diferente, porque o
bico cresceu, e o meu falar é único.
Deixa muda toda a gente.
- Têm de ouvir! Têm de ouvir!
Apregoa agora entusiasmado que valho 100 euros.
Uma velha agoirenta fitou-me com olhos baços, apontou-me os
dedos trémulos e disse à multidão que eu era o tira-olhos, o tira-olhos autêntico.
Cada vez chega mais gente.
O feirante, radiante, encheu a gaiola de trigo centeio e ração,
e um miúdo sorrateiro tentou cortar-me o bico de corta-unhas em riste.
Estou confusa. O barulho é imenso.
Ontem ao chegar tive azar. Caí esgotada, mal cheguei à
costa.
Mesmo ali na praia, acho que as ondas ainda me empurraram
para terra. Depois, pouco me lembro... Sei que acordei dentro desta gaiola.
Já não era a primeira vez que tinha feito esta travessia
desde os gelos glaciares até aqui, dias e noites sem fim.
Quantas vezes nos confins do oceano sonhava com estas
paragens cálidas e serenas, com o balir suave das ovelhas a pastarem, com o
riacho calmo ao pé das folhas caídas dos carvalhos seculares da serra de
Montemuro, lá em Carvalhosa.
Quantas e quantas vezes consegui enganar a cadela do P. Chamava-se
Tua.
Essa cadela que eu conheço tão bem... Linda, de traços
finos, com ar altivo e decidido. Uma pointer, uma pointer pura. Acho que até
havia uma espécie de pacto entre nós. Ela, parada, estática, com a pata
levantada e a cauda hirta, completamente esticada, e eu imóvel, numa tensão de
nervos e angústia quase a explodirem.
Até à última. Quando por fim levantava, olhava fixamente os
olhos dela, e o P. Apontava a velha Francotte de canos paralelos e coronha
inglesa, corria a mão, seguia-me, e fingia premir o gatilho.
E eu lá ia... Pousava cem metros adiante, e à pata, entre as
giestas e o musgo, chegava até ao pequeno ribeiro, refrescava-me, e pouco
depois lá estava a Tua e o P.
Passávamos horas e horas nisto, como um jogo nunca visto. Não
sei. Não faço ideia porque me quis poupar, pois segundo algumas colegas, era o
caçador mais famoso e temido aqui das serranias. Contavam que até tinha um
casaco largo e velho, quase roto, onde no forro, junto ao peito, pendurava a
caça, para que ninguém soubesse as paragens por onde andávamos.
Quanto chegava, sozinho mais a Tua, toda a serra ficava de
sobreaviso, num alvoroço contínuo. Era único...
Não estou longe de Montemuro.
Daqui da feira consigo divisar ao longe os moinhos de vento.
Já não é cedo.
O povo vai indo em debanda, e o feirante começou a guardar
as gaiolas, as plantas e os tristes peixes indiferentes...
Em frente a mim, mei dúzia de pessoas ainda discutiam que eu
era, quando perplexo e desconfiado, o feirante olhou para alguém que indignado
disse:
- Não tem o direito de ter uma galinhola presa.
Fiquei radiante. Alguém sabia quem eu era.
Uma galinhola.
As lágrimas vieram-me aos olhos.
Era o P.
O feirante continuava a afirmar que eu era uma ave rara, uma
arara, um falcão do oriente, um papagaio diferente...
- Não. Não tem o direito de ter uma galinhola presa.
Vi-o pegar na carteira, numa nota de cem euros, tirou-me com
cuidado da gaiola e, perante o pasmo total do feirante e toda a gente, ergueu o
braço, e no ar, abriu a mão de contente.
E eu voei, voei...
P.S. Isto aconteceu na feira de 3/XI/2008.
Em finais de Dezembro, algures, na serra de Montemuro, lá
nos encontrámos. A Tua, o P. e eu Galinhola.
Obrigado, P.
José Maria Souza Guedes (2011). Cortando Traços ao Tempo
(pp. 54-56). Mosaico de Palavras, Editora.