19 de março de 2014

O Bácoro das Castanholas de Seda

Á quarta,enganei o bácoro!
Tudo começou há quatro dias atrás, nunca um bácoro me tinha feito perder tanto tempo! Como ia dizendo, comecei a ver umas grandes fuçadelas perto do meu hortejo, muito gramudo, carunchoso e muito minhocudo na vala húmida q´o atravessa e que por sua vez tem um grande manchão de mato á volta do dito e meu próprio e bem trabalhado hortejo... E aprontei-me p’ra esperar o bicho numa noite de lua, como mandam agora a gente fazer nos tempos modernos... Lá fui.
Lá chegado, prendi o Mariano á porteira da horta e fui-me prantar numa rochinha á meia barreira donde conseguia ver o fundo do barranco e pouco mais,... mas sabia q´o crenço dele era ali mesmo, por o fundo... e como ocês sabem, a ventania teve d´arrepio e soprava-me as pontas dos bigodes dum lado pró outro... Vamos lá ver s´o bicho aparece, pensei eu todo arrepiado. E fez-se noite quando tive impressão d´ouvir um ronco assim ao de leve... E passou-se algum tempo, já tava ficando com as nalgas dormentes e de bácoro nada! É quando o burricalho começou a zurrar... Eu pensei logo: o animal tá zurrando, tá sentindo o bacoro! (nã sei s´ocês sabem mas os Marianos são muito sentidos, dão logo sinal quando ventejam, barruntam ou veêm um bicho bravo) Ainda nã tinha acabado de pensar isto, faltava p´raí um segundo pra acabar, ouvi os arames do meu saboroso hortejo esticarem todos e com força... O Mariano tinha dado sinal q´ele andava ali, mas o bicho foi rápido a fintar-me sem eu o barruntar... e nisto, ele barruntou-me! Arrancou fazendo faísca nos bolegos e foi sair do outro lado da horta, num bocado que tá sem muro e o vosso amigo velhote atou-lhe uns arames mandongos, mal atados... Rebentou-me com aquilo tudo e foi-se sacudindo... Filho daquele cabrão! Hás-de pagar-me em géneros alimentares da tua própria carcaça, grande estafermo! E vi logo o que era: um dos raros javardos com castanholas de seda! Eu nem o ouvi tarraceando e era tão grande...
Na noite seguinte, lá tava eu, cheio de genica, prontitude e positivitude! Já tinha outro esquema pensado; hoje o Mariano fica a vinte metros mais abaixo de mim no barranco e eu mais chegado p’ra onde ele passou ontem á noite...assim foi! Á mesma hora, o burro zurrando muito... cada vez mais... e de repente um reboliço que mais parecia um bácoro saindo dum silvado á carga, lascando tudo... quando dei por isso, ouvi os arames outra vez e quando olhei p’ra lá já nã o vi... O q´é q´eu pensei; vou dar uma firme e robusta corrida pra ver s´ele se descuida na passagem de saída q´eu entretanto e nesse mesmo dia tinha amanhado já com manhosice p´ra se isto acontecesse o bicho enlear-se e atrapalhar-se um bocadinho... Olhem, parecia um rinoceronte!!! Levou arames, bolegos, latas, tudo pela frente! Eu pensei logo no momento e muito rápidamente, tal como m´ensinaram os budas islâmicos radicais: t´ás amanhado comigo! Faço-t´em bifes das patas á cabeça, nã me chame eu Velho Murtigão, o bispo papal de todos os caçarretas que tão lendo isto muito afinadinhos e tremendo a parte traseira do pézinho tentando barruntar s´o raio do vosso mestre, eu, pensa mesmo q´ocês são uns grandessíssimos caçarretas e marteletas mas pronto, o q´eu penso fica pra mim porq´é um pensar muito sublime... E alembro-me do Mariano... Nunca mais disse nada... E vou lá muito prontamente! Lá chegado até me vieram as lágrimas aos olhos... Mariano tinha levado uma violenta e mal intencionada sarrafada do bácoro nas pernas, derrubando-o p´ró fundo do barranco! E o desgraçado, sofrendo dos intestinos como sofre, cagava-se e espeidorreava-se sem destino á vista... Tive q´ir lá com um tractor tira-lo... Coitado, ele sofrendo e eu com a fórmula mágica p´ra entalar o javardo na minha mentalidade completamente cinegética... No dia seguinte o burro tava como novo com umas pomadas milagrosas q´o velhote tem p´ra curar Marianos. E lá fomos outra vez, com tempo, sol ainda alto, pensando muito, com muita força, p´ra correr bem... E pensei assim: o burro hoje fica na porteira, onde ficou na primeira noite... Só preciso saber sinal de Mariano pra saber s´o bicho tá perto, e quando ele zurra, tá perto da passagem d´entrada, q´é ond´eu vou tar d´arma á cara, preparado... E nã falhou, burro zurrou, zurrou cada vez mais... E truz!  Eu pensei logo: já foi bater no Mariano outra vez, este sem vergonha! E nisso, ouvi o javardão sair por o mesmo sítio de sempre, no muro caído com arames... Fui ver de Mariano, tava caído, de olhar triste, orelhas murchas... Lá o tive levantando; tinha só um lascão com uns trinta centímetros na perna direita provocado por as navalhas do bácoro... Fomos p´ra casa e curei-o e pensei: este bácoro t´á dando comigo em doido! Mas antes disso eu mato-o! E já sabia o q´havia de fazer áquele descarado, farto de dar pazada no meu burro!
No dia seguinte, lá fomos á labuta bacoral. Lá chegados tive atando umas latas ás pernas do burricalho assim a fazer de conta q´era um colete á prova de navalhadas... E eu... Fui prá saida do bicho, q´essa é certa com´ó destino q´ele vai ter comigo... E eu vou tar muito concentradinho e rijinho p´ra parar o javardão com um tiro balístico mesmo no meio da testa, q´é p´ra nã precisar de lhe tar rachando a cabeça p´ra assar no forno de lenha q´eu próprio possuo em meu nome, em nome indivídual, o nome do mestre. E lá nos prantámos outra vez. Bem dito e pensado, melhor feito... Mariano começou zurrando muito aflito e, de repente, ouviu-se um barulho que parecia um acidente d´automoveis!!! Vi logo, o bácoro mandou uma pazada ás latas do burro... E o bacorão arrancou fugindo p´rá passagem d´entrada, ond´eu nã tava... Mas inteligentemente e cinegéticamente durante o dia tinha pensado nisso e tinha tapado aquela passagem duma maneira que nem com um tractor "John Dias" a conseguiam abrir... O bicho deu-lhe uma cabeçada e nada, nã furou... Deu-lhe outra e,... nada! Foi quando arrancou p´ra mim, p´rá saída de sempre, prá saída da salvação... E eu lá, d´olho afinado (tinha tado com "Bodi" a semana passada num afinanço rápido e simples) na fita do meu ferro,... á espera de s´encher de gadelhas cerdísticas... Quando a fita e a testa bacoral s´encontraram, carreguei o gatilho com tanta força q´até o dobrei! Desviei-me e ele passou por mim adormecido e embalado num sono do qual nunca mais havia d´acordar neste mundo em crise... E assim foi, quatro noites pra enganar um animal feroz, terrível, sem vergonha e com castanholas de seda cujas próprias castanholas servem de cabide pró casaco de vison da minha Murtigoa... Este animal nunca pensou de tar diante do velhote mais implacável, perspicaz, cinegético, audaz, venenoso, certeiro e sementaleiro q´há notícia por estas bandas... Bem, fui ver Mariano, t´ava bem e quando o desamarrei da porteira foi-se por o bácoro morto e arrimou-lhe um valente par de coices no cachaço de vingança, com o meu consentimento... Carregámos o bicho e casa, fatachar, estaçalhar e amanhar a carne q´amanhã temos trabalho, temos q´ir cuidar da horta javardeira!

Texto da autoria de Sua Santidade Velho Mestre Murtigão, em honra da qual foi erigido o Santuário Bacoral de Santo Alêxo, local de peregrinação e de encontro dos marteleiros muito devotos a Santo Huberto e na arte da erração

Aguarela "Javali Navalheiro", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)

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