Á quarta,enganei o bácoro!
Tudo começou há quatro dias
atrás, nunca um bácoro me tinha feito perder tanto tempo! Como ia dizendo, comecei
a ver umas grandes fuçadelas perto do meu hortejo, muito gramudo, carunchoso e
muito minhocudo na vala húmida q´o atravessa e que por sua vez tem um grande
manchão de mato á volta do dito e meu próprio e bem trabalhado hortejo... E
aprontei-me p’ra esperar o bicho numa noite de lua, como mandam agora a gente
fazer nos tempos modernos... Lá fui.
Lá chegado, prendi o Mariano á
porteira da horta e fui-me prantar numa rochinha á meia barreira donde
conseguia ver o fundo do barranco e pouco mais,... mas sabia q´o crenço dele
era ali mesmo, por o fundo... e como ocês sabem, a ventania teve d´arrepio e
soprava-me as pontas dos bigodes dum lado pró outro... Vamos lá ver s´o bicho
aparece, pensei eu todo arrepiado. E fez-se noite quando tive impressão d´ouvir
um ronco assim ao de leve... E passou-se algum tempo, já tava ficando com as
nalgas dormentes e de bácoro nada! É quando o burricalho começou a zurrar... Eu
pensei logo: o animal tá zurrando, tá sentindo o bacoro! (nã sei s´ocês sabem
mas os Marianos são muito sentidos, dão logo sinal quando ventejam, barruntam
ou veêm um bicho bravo) Ainda nã tinha acabado de pensar isto, faltava p´raí um
segundo pra acabar, ouvi os arames do meu saboroso hortejo esticarem todos e
com força... O Mariano tinha dado sinal q´ele andava ali, mas o bicho foi rápido
a fintar-me sem eu o barruntar... e nisto, ele barruntou-me! Arrancou fazendo
faísca nos bolegos e foi sair do outro lado da horta, num bocado que tá sem
muro e o vosso amigo velhote atou-lhe uns arames mandongos, mal atados... Rebentou-me
com aquilo tudo e foi-se sacudindo... Filho daquele cabrão! Hás-de pagar-me em
géneros alimentares da tua própria carcaça, grande estafermo! E vi logo o que
era: um dos raros javardos com castanholas de seda! Eu nem o ouvi tarraceando e
era tão grande...
Na noite seguinte, lá tava eu, cheio
de genica, prontitude e positivitude! Já tinha outro esquema pensado; hoje o
Mariano fica a vinte metros mais abaixo de mim no barranco e eu mais chegado p’ra
onde ele passou ontem á noite...assim foi! Á mesma hora, o burro zurrando
muito... cada vez mais... e de repente um reboliço que mais parecia um bácoro
saindo dum silvado á carga, lascando tudo... quando dei por isso, ouvi os
arames outra vez e quando olhei p’ra lá já nã o vi... O q´é q´eu pensei; vou
dar uma firme e robusta corrida pra ver s´ele se descuida na passagem de saída
q´eu entretanto e nesse mesmo dia tinha amanhado já com manhosice p´ra se isto
acontecesse o bicho enlear-se e atrapalhar-se um bocadinho... Olhem, parecia um
rinoceronte!!! Levou arames, bolegos, latas, tudo pela frente! Eu pensei logo
no momento e muito rápidamente, tal como m´ensinaram os budas islâmicos
radicais: t´ás amanhado comigo! Faço-t´em bifes das patas á cabeça, nã me chame
eu Velho Murtigão, o bispo papal de todos os caçarretas que tão lendo isto
muito afinadinhos e tremendo a parte traseira do pézinho tentando barruntar s´o
raio do vosso mestre, eu, pensa mesmo q´ocês são uns grandessíssimos caçarretas
e marteletas mas pronto, o q´eu penso fica pra mim porq´é um pensar muito
sublime... E alembro-me do Mariano... Nunca mais disse nada... E vou lá muito
prontamente! Lá chegado até me vieram as lágrimas aos olhos... Mariano tinha
levado uma violenta e mal intencionada sarrafada do bácoro nas pernas, derrubando-o
p´ró fundo do barranco! E o desgraçado, sofrendo dos intestinos como sofre, cagava-se
e espeidorreava-se sem destino á vista... Tive q´ir lá com um tractor
tira-lo... Coitado, ele sofrendo e eu com a fórmula mágica p´ra entalar o
javardo na minha mentalidade completamente cinegética... No dia seguinte o
burro tava como novo com umas pomadas milagrosas q´o velhote tem p´ra curar
Marianos. E lá fomos outra vez, com tempo, sol ainda alto, pensando muito, com
muita força, p´ra correr bem... E pensei assim: o burro hoje fica na porteira,
onde ficou na primeira noite... Só preciso saber sinal de Mariano pra saber s´o
bicho tá perto, e quando ele zurra, tá perto da passagem d´entrada, q´é ond´eu
vou tar d´arma á cara, preparado... E nã falhou, burro zurrou, zurrou cada vez
mais... E truz! Eu pensei logo: já foi
bater no Mariano outra vez, este sem vergonha! E nisso, ouvi o javardão sair
por o mesmo sítio de sempre, no muro caído com arames... Fui ver de Mariano, tava
caído, de olhar triste, orelhas murchas... Lá o tive levantando; tinha só um
lascão com uns trinta centímetros na perna direita provocado por as navalhas do
bácoro... Fomos p´ra casa e curei-o e pensei: este bácoro t´á dando comigo em
doido! Mas antes disso eu mato-o! E já sabia o q´havia de fazer áquele
descarado, farto de dar pazada no meu burro!
No dia seguinte, lá fomos á
labuta bacoral. Lá chegados tive atando umas latas ás pernas do burricalho
assim a fazer de conta q´era um colete á prova de navalhadas... E eu... Fui prá
saida do bicho, q´essa é certa com´ó destino q´ele vai ter comigo... E eu vou
tar muito concentradinho e rijinho p´ra parar o javardão com um tiro balístico
mesmo no meio da testa, q´é p´ra nã precisar de lhe tar rachando a cabeça p´ra assar
no forno de lenha q´eu próprio possuo em meu nome, em nome indivídual, o nome
do mestre. E lá nos prantámos outra vez. Bem dito e pensado, melhor feito... Mariano
começou zurrando muito aflito e, de repente, ouviu-se um barulho que parecia um
acidente d´automoveis!!! Vi logo, o bácoro mandou uma pazada ás latas do
burro... E o bacorão arrancou fugindo p´rá passagem d´entrada, ond´eu nã
tava... Mas inteligentemente e cinegéticamente durante o dia tinha pensado
nisso e tinha tapado aquela passagem duma maneira que nem com um tractor
"John Dias" a conseguiam abrir... O bicho deu-lhe uma cabeçada e
nada, nã furou... Deu-lhe outra e,... nada! Foi quando arrancou p´ra mim, p´rá
saída de sempre, prá saída da salvação... E eu lá, d´olho afinado (tinha tado
com "Bodi" a semana passada num afinanço rápido e simples) na fita do
meu ferro,... á espera de s´encher de gadelhas cerdísticas... Quando a fita e a
testa bacoral s´encontraram, carreguei o gatilho com tanta força q´até o
dobrei! Desviei-me e ele passou por mim adormecido e embalado num sono do qual
nunca mais havia d´acordar neste mundo em crise... E assim foi, quatro noites
pra enganar um animal feroz, terrível, sem vergonha e com castanholas de seda
cujas próprias castanholas servem de cabide pró casaco de vison da minha
Murtigoa... Este animal nunca pensou de tar diante do velhote mais implacável, perspicaz,
cinegético, audaz, venenoso, certeiro e sementaleiro q´há notícia por estas
bandas... Bem, fui ver Mariano, t´ava bem e quando o desamarrei da porteira
foi-se por o bácoro morto e arrimou-lhe um valente par de coices no cachaço de
vingança, com o meu consentimento... Carregámos o bicho e casa, fatachar,
estaçalhar e amanhar a carne q´amanhã temos trabalho, temos q´ir cuidar da
horta javardeira!
Texto da autoria de Sua Santidade Velho Mestre Murtigão, em honra da qual foi erigido o Santuário Bacoral de Santo Alêxo, local de peregrinação e de encontro dos marteleiros muito devotos a Santo Huberto e na arte da erração
Aguarela "Javali Navalheiro", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)