“De alguma coisa me hão-de valer as cicatrizes de defensor
incansável do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a
passagem de qualquer homem por este mundo.” (Miguel Torga, Diário, Coimbra, 9 de
Dezembro de 1993)
“Trôpego, o Tafona já não chegava às perdizes da Cumieira.
Por isso, arrastava-se até Pedralva e caçava de espera. Caíam rolas no cedo,
uma lebre ou outra pelo ano adiante, e coelhos quase sempre. No defeso,
fornecia a casa e a barriga sem fundo do compadre Frederico; no tempo da
permissão, vendia-lhe a Joana Benta as cabeças na Vila.
- Veja vossemecê... - dizia ele, a contratar o preço.
- Eu sei lá!... Com
oitenta e cinco anos, a vida fora-lhe sempre estranha como se a não tivesse
conhecido. Casara, tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro. Virgem e
selvagem na alma, continuava a caçar, e só embrenhado entre giestas e urgueiras
é que ouvia, se ouvia, os clamores da mulher e o ganido das crias. Saía cedo,
sempre supersticioso das menstruações da Camila, a vizinha do lado, que lhe
mudavam a direcção do chumbo, e regressava altas horas da noite, colado ao
granito das paredes, e assim escondido dos olhos curiosos da povoação.
- Por
onde andaste? A pobre da Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar
naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas
vinham tão vagas, tão distantes, que se atirou às leiras e deixou o homem às
carquejas. Não era que ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse
conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a cegueira com que
galgava os montes é que o impediam à noite de relatar o trajecto seguido. Se
quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros
que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés e rasgados no
meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação, com alguns ramos
vistos em pormenor, por neles pousar inquieto um pombo bravo ou se aninhar,
disfarçada, uma perdiz. Ás vezes até se admirava, ao regressar a casa, de tanta
bruma e tanta luz lhe terem enchido simultaneamente os olhos. Serras a que
trepara sem dar conta, abismos onde descera alheado, e um toco, um raio de sol,
o rabo de um bicho, que todo o dia lhe ficavam na retina. É claro que nem
sempre as horas eram assim. Algumas havia de perfeita consciência, em que
nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas,
aqui de granito, ali de xisto. Mas, mesmo nessas ocasiões, qualquer coisa o
fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da solidão contemplada,
despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe
uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão absoluta deles, que
os olhos como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão.
Simplesmente, essa diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía
uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma espécie de percepção
interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de identificar o panasco
de Alcaria pelo cheiro ou pelo tacto. A caça fora a maneira de se encontrar com
as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora
desviá-lo desse caminho. A meninice começara-lhe aos grilos e aos pardais, a
juventude e a maioridade passara-as atrás de bichos de pêlo e pena, e agora,
velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de cartuchos que, sentado, ia
esvaziando no que aparecia. E a vida, a de todos os dias e de toda a gente, com
lágrimas e alegrias, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado, vestida
de uma realidade que que não conseguia ver. A aldeia formigava de questões e de
raivas, e ele coava-lhe apenas a agitação de longe, vendo-a fumegar na
distância, ao anoitecer, e acariciando-a então num cansaço doce e
contemplativo.
- Casou a Dulce...
- Ah, sim?...
Ouvira, de facto, imprecisamente, a voz do sino grande chegar repenicada e
festiva ao Falição, mas o seu espírito não pudera nesse momento, nem podia
agora, descer da nuvem de abstracção que o envolvia.
- Muito bonita ia o
demónio da rapariga! Humana, mulher, a Catarina tentava chamá-lo a uma consciência que reanimasse
fogueiras mortas, sonhos desfeitos. Nada. O pensamento dele não estava ali:
perdia-se nos projectos do dia seguinte, já cheio do rumor alvoroçado do bando
de perdizes que sabia ir levantar da cama ao romper da manhã.
- Morreu a
Palhaça...
- Ah, morreu?
E continuava a dar à manivela do rebordador, encontrando no cartucho, túmido
como uma semente, não sabia que verdade mais profunda e mais transcendente do
que aquela morte.
A velhice e o reumatismo tentaram com toda a brutalidade metê-lo noutros varai.
Mas ele lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a
sonhar.
Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar
como dantes. A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um
alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a
mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em
casa, à noite, a mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que
ele vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia.
-
Os Canedos berraram...
- Eu vi...
- A cunhada chamou curta à Ana... O que ouvira eram gritos, evidentemente,
insultos, com toda a certeza, mas nomes assim... E uma tristeza muda
apertava-lhe o coração.
- Um roubo em casa do Antunes...
- Bem me pareceu...
- Batatas, trigo, muita roupa, um presunto...
Quase que surpreendera o Rodrigo e a mulher com a boca na botija, e sabia que
não, que o que esconderam na mina velha, e pudera examinar à vontade, era uma
sombra daquilo.
De maneira que cada vez se metia mais consigo, com medo do
vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma
coisa sabia ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe
empeçonhara a alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com
ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que
mortalmente, o dedo premia o gatilho.
E quando, a seguir, a lebre esperneava ou
a codorniz gemia, a sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia
aveludada. Entre o sangue de perdiz morta - que através do cotim da calça,
morno, lhe acordava a consciência da pele - e o seu próprio sangue, não havia o
muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante
uma ressurreição dentro dele. Mas a aleluia do formigueiro humano que o rodeava
era outra.
- A Rosária a flara em moralidade! Se reparasse na filha...
- A Matilde? Que fez ela?
- Nem tu sabes!
Palavra, que não sabia. Atravessara os anos como um duende, puro, alheio à
raiva e à ganância, inocente, pronto a comover-se diante da primeira flor. Uma
virtude, sobre todas, conservara sempre: a da lisa naturalidade. E por isso, no
meio da incapacidade que sentia para entender o tecido de razões com que era
feito o mundo que o cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se
debatiam forças e gestos de amor. O cio, a brisa de sémen que agitava todos os
seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda
sagrada. Então, oleava e arrumava a arma, e os seus olhos, de caçador ainda,
seguiam a revoada do casal de melros, o trajecto de um coelho, as pegadas da
raposa, mas para os acompanharem comovidos naquela dádiva sensual e
procriadora.
Infelizmente, só ele é que entendia de uma maneira assim inocente as coisas que
tinham intimidade de ninho e calor de seiva. Porque a aldeia, que olhava
compreensivamente as reses alevantadas, diante de uma rapariga cega de amores
erguia-se como se visse um crime.
- Ela e o Avelino parecem cães à cainça.
- E que mal há nisso? Maiores e vacinados, que tinha que ver o mundo com o que
o corpo lhes pedia? Mas os pais, aqui-del-rei que os enforcavam se olhassem
sequer um para o outro, e a terra inteira aplaudia. Acontecia ainda que o
Travassos, todo lá da mãe da rapariga, punha em semelhante martírio a sombra de
uma perseguição.
De fora, mas infelizmente não de tão longe como desejava, o Tafona assistia à
cena. Sentado à sombra da nogueira molar, e perto da poça onde vinham beber,
esperava as rolas. E lá em baixo, na veiga, o seu olhar cansado ia acompanhando
a comédia. A cachopa, de molho à cabeça, a passar na Silveirinha; o rapaz a
deixar a rabiça na lavrada e a sair-lhe ao caminho; e o esqueleto do
Travassos, abelhudo e ciumento, a correr a avisar as famílias.
Via e ficava a malucar naquilo, no contra-senso de tudo e de todos. Pois não
seria melhor, mais justo, mais humano, deixá-los juntarem-se livremente, à lei
da natureza? Contudo, daí a nada, a rapariga ia a toque de caixa pelo Teixo
abaixo, e o rapaz retomava o arado a ouvir berros do pai.
- Uma pouca
vergonha... - recomeçava a Catarina à noite, depois do caldo.
- O quê?
- O que há-de ser? A Matilde e o Avelino... Se não o Travassos...
Calou-se como de costume. Decididamente, cada vez entendia menos tal mundo. Mas
as pernas atraiçoavam-no miseravelmente, e embora quisesse fugir para muito
longe, tinha de se resignar às leis da idade e caçar de emboscada coelhos
pacatos na vinha velha do prior.
Era um Setembro puro. Videiras que pareciam cedros e cachos com bagos como
bugalhos. Manco, o Tafona, foi-se arrastando e ainda a tarde vinha a cair
além-Doiro já ele estava no seu posto, sentado, imóvel e silencioso, com a arma
engatilhada sobre a coxa.
Como habitualmente, quase nem respirava. Por muito inocentes que fossem os
láparos, farejavam ruído a cem léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos,
apertava os pulmões.
A espera nunca lhe dava inteira paz de espírito. Forçava-o a uma espécie de
compromisso com a parte traiçoeira da vida, estremando os campos do agredido e
do agressor. Entre ele e o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro
encontro, um embate de forças. Tudo se passava sem alegria e sem eco, choque
abafado, como o de uma pinha aberta a cair no musgo. Subitamente começou a
sentir sons indistintos. Prestou atenção. Passos. Passos de gente, e
grande.
- Bolas! - disse, sem abrir a boca. De facto, perdera o tempo. Para que tudo
retomasse a quietude inicial e os coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca,
seriam precisas horas, e então já não teria luz.
Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um bardo e a sumir-se na
vinha.
- É boa!... - murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom. Mas ainda o seu
espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o
meio da ramagem.
Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho,
enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu
dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.
Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles, de nariz no rasto,
numa perseguição de rafeiro, o Travassos que, por acaso, caminhava direito à
arma do caçador.
O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde
atrás do esconderijo.
O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.
- Alto lá! - ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.
O Travassos estacou, apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:
- Sou eu, ó ti Zé!
- Bem sei. Mas não te mexas.
- O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!
A tremer e de olhos esgazeados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber.
Mas o Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém
da aldeia confiava na alma solitária do caçador.
- Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor...“
Torga, Miguel, Novos contos da montanha, 13ª edição,
s.e., Coimbras., pp. 53-63
Transcrição de Luís Paiva