Antologia de excertos da obra aquiliniana nos quais se
descrevem mais de 60 aves selvagens, seus habitats e relação com o Homem. A
compilação é de Ana Isabel Queiroz, que no ensaio introdutório traça o
percurso da descrição de aves desde os primeiros "bestiários" até à
literatura científica de hoje, passando pela cultura clássica grega, pela
tradição popular e pela literatura portuguesa, na qual Aquilino se destaca como
verdadeiro naturalista amador. Desperto pela riqueza e variedade das vocalizações
das aves e dotado de um ouvido musical que lhe permitiu verter foneticamente as
frases escutadas neste processo de comunicação, o escritor revisita na sua obra
a produção acústica da vida selvagem, dando-lhe notoriedade.
A acompanhar o livro, ilustrado por dezenas de aguarelas do biólogo e artista
plástico Maico (Carlos Pimenta), um CD áudio regista a leitura de 25
desses excertos por Fernando Alves, enriquecidos por gravações de aves do
projecto"Paisagens Acústicas Naturais de Portugal" e separados
por 16 peças musicais originais de José Eduardo Rocha.
Mais informação em: http://www.boca.pt/guia-das-aves.html
Mais informação em: http://www.boca.pt/guia-das-aves.html
Um dos excertos, que podemos encontrar no livro em questão, sobre a Galinhola...
O Caifaz trouxe-me duas galinholas que fuzilou ontem nos
urgueirais da Nave. De ordinário, o camponês não sabe apreciar esta ave migratória,
de carne mais perfumada que o faisão. Corta-lhe o bico para espevitar o cerume
dos ouvidos – em algumas farmácias vendiam-se ainda recentemente dentro dos boiões
de cor a par com as escovas de dentes e zaragatoas – estripa-a, e panela com
ela a adubar o caldinho.
Ora para uma espécie desta natureza, que vem lá do Norte,
dos países civilizados, carregada de civilização, impõe-se uma receita
condigna. Chamei o pessoal a capítulo:
- Como vai vossemecê arranjar as galinholas, Maria
Chimborgas?
- Ora como há-de ser?! Depeno-as muito bem depenadas,
cato-lhe a penugem muito bem catada, passo-as pela chama...
- E estripa-as muito bem estripadas e atafulha-as no púcaro
com um trancanaz de presunto, muito bem apresuntadas... Ora, ora, não ponha
mais na carta. Tal qual como para um frango ou qualquer outra relice de
capoeira, não é? Minha santa, a galinhola é galinhola, e requer um preparo idóneo,
um preparo pelo menos faisanesco, faraónico para quem sabe...
- Faça favor de dizer...
- Antes de mais nada deixa-as macerar duas a três semanas.
- Que horror! Depois não é caça, é um pedaço de carne em
putrefacção – atalhou a dona de casa. – E os gusanos? E a vérmina da vareja?
- Não lhe tiram a tripa...
- Adiante, não se lhe tira a tripa, mas extrai-se a moela
que retém os restos não assimilados do cibato.
- Dobram-se as asas em forma de triângulo, como de resto
para todo o bicho que voa ou desaprendeu de voar; o bico crava-se-lhes de coxa
para coxa; cobre-se com uma peliça de toucinho – não é ave dos países frios? –
e assa-se a fogo lento no espeto.
- Trata-se, estamos a ver, como os frades de Tarouca e
Alcobaça faziam com os bois em seus assadores monumentais. E mirmiton a reverter-lhe para a carcaça o
pingue que vai escorrendo, não? Ah! ah! Pois se uma galinhola é uma galinhola,
cabe na cova de um dente!
- Uma galinhola, está certo, não é nenhuma adem, mas podem
associar-se para comê-la seis pontos. O melhor, porém, é que sejam só três. Três,
isto é, a pessoa que a come, ela galinhola, a bem cozinhada, e uma garrafa do Dão.
A galinhola cuja carne seca e quente é geradora de bom
sangue, segundo afirma José da Fonseca Henriques, médico do Calígula lusitano,
senhor D. João V, na Âncora Medicinal,
foi temperada e forjicada ao estilo da lei e não gostaram. A uns cheirava mal;
outros tinham presente a imundície acumulada na cloaca; outros paralisava-os o
medo de se envenenarem com os possíveis vermes peçonhentos que a ave passara ao
estreito, desanichados do toro das urzes, no chão alagadiço e contaminado de
anofeles, miasmas, e outros infinitos animálculos que restam para estudo, de
modo a que os sábios tenham sempre que fazer. O mais curioso é que a podenga se
recusou a comer dela. Acabou por banquetear-se à tripa-forra o gato meio
angora, meio maltês, malandrim na quinta casa, que dá pelo nome de Malhadinhas.
Aldeia – Terra, gente e bichos 283-285