22 de março de 2014

Divagações

Umas palavras minhas a falar de caça? E porque se lembrariam do meu nome? Por ser um caçador da velha guarda, como vulgarmente se diz, certamente depois daquela que em Waterloo morria mas não arriava? Por ter escrito o livro de poemas «É El-Rei Que Vai à Caça»? E melhor caçador que poeta, vá lá... Não interessa a razão e escreva umas palavras.
Como a Nau Catrineta, um caçador velho tem sempre muito que contar.
Caçador de perdiz, desde o luzir da mocidade, fale da perdiz.
Quando nasci, o vício da caça andava-me no sangue, e nem admira.
O meu avô paterno fora caçador de coelho. De perdiz, o paterno, e dos melhores aqui das redondezas. Outros avós teria assim? Tarde já para que o apure, mas ponto de fé meu que tive. Muito bago de chumbo talvez pisei por estes montes das bacamartadas que despejaram.
Menino, comecei a atirar aos pardais com a espingardinha de pressão. Rapazote com a Flobert de calibre 22, já de pólvora. E pelos quinze ou dezasseis anos já me atrevia à serra com a 12 de dois canos, a velha Jamin inesquecível, porque se afeiçoa o caçador à espingardas, tanto ou mais que aos seus cães, e limpá-las e cuidá-las é um dos seus maiores prazeres, como se já a apontá-las e dispará-las a um perdigão dos sabidos, matando pela imaginação o vício da caça.
Quando matei a minha primeira perdiz, apareci em casa mais orgulhoso do que se tivera prendido o Gungunhana. Aqui pelas serras, ao tempo, a grande novidade era ainda a da prisão do Gungunhana, e iam passados vinte anos...
Minha mãe, ao vê-la, entristeceu-se – ela que, ainda agora, me não perdoa a crueldade de caçar –, e censurou-me com aspereza por assim matar, impiedoso e glorioso, a inofensiva perdizinha, mas eu não podia sofrear a irresistível tentação, e, na véspera da abertura – então no primeiro de Setembro –, nem conseguia adormecer. Cada qual é para o que nasce, diz o povo. Estava escrito: tinha de ser caçador de perdiz. E, para a perdiz, um galgo... Para o coelho, um manco...
Tenho umas pernas de aço – umas pernas de galgo – e o coração bate-me ainda sossegado. Hoje ainda, e já na casa dos sessenta, sou bem capaz de calcorrear, da alvorada à noitinha, uns trinta ou quarenta quilómetros pelas vertentes íngremes do meu Douro recobertas de matos fechados, bravias de estevas e carrasqueiras, ou pelas Terras do Demo de Aquilino, só fraguedo e calhaus. Com mais de quarenta anos de caça, quando me viro a deitar contas, acho nas pernas umas boas dezenas de milhares de quilómetros.
Rapaz, fui caçador solitário. Merenda a tiracolo, na bolsa já herdada, cantil à cinta (que a sede queima e o suor cai em bagas), deitava-me à toa por montes e vales, por tojais e vinhas, assim o Gama ou o Cabral ao descobrimento de mundos. E que surpresas, que novidades para o caçador aprendiz! Pastores e rebanhos... Riachos límpidos e serenos, que se diriam de cristal... Povoléus desterrados pelo horizonte... Que o poeta e caçador não os pode dissociar... E o gosto da solidão e o esquecermo-nos do tempo...

Que ele vai à caça só por desfastio,
Por entrar na barca, por passar o rio,
E ao fitar as águas com os céus no fundo
Esquecer as mágoas com que fere o mundo...
Que ele vai á caça para recolher
Imagens de versos que há-de conceber...
Para como os lobos se embrenhar nos matos
E dar ao seu corpo os mais duros tratos
Quando a voz maldita do diabo tenta
A sua alma sempre só de Deus sedenta...

Vou hoje sempre com outros caçadores, e, mal entramos no monte, vá de formar ala: todos em fila, à distância de um tiro, os de cima atrasados e os fundeiros adiantados.
Em linha a caçada será mais frutuosa, mas não tão emotiva, presos todos os companheiros, sem liberdade de acção. Porque não é um qualquer que se mete ao monte para enfeitar o cinte de perdizes como quem vai aos frangos à capoeira ou colher o cacho de uvas à parreira do quintal... Que a perdiz obriga às suas regras, à sua técnica, e é preciso ser duro, de reflexos prontos, de sentidos apurados. E ter a queda, o instinto, o conhecimento do terreno, e sabê-la bater, e calcular-lhe as revoadas, medir-las. Que a perdiz é a ave mais arisca e astuta que sei e só pelo uso chegamos a dar-lhe com as manhas. Como poucas se defende, e ainda bem, pois, se não fora assim, e de cobiçada que é, já se lhe teria extinguido a raça. Mas que seria do caçador, poderia até haver caçadores, sem o cão, sem um bom cão? Sem o amigo?Amigo dos Amigos, vai o cão ao ponto de morrer com saudades do dono. De paixão e fome, por não querer comer, oiço que morreu o perdigueiro dum meu tio-avô, tão bom padre como bom caçador. E um já vi, em plena cheia do Douro e arriscando a vida, atirar-se a abocanhar uma perdiz que levava a corrente.
São os caçadores muito mentirosos – dizem – mas eu não minto. Os caçadores não mentem, estilizam. Cães bons, porém, são raros como os bons caçadores. Mestres caçadores, hoje, numas tantas léguas à roda, podem apontar-se a dedo. No Freixo, o Zé do Álvaro... O João de Tourais, na Régua... O Norberto, em Lamego... E, nas minhas terras em Armamar, o Acácio da Rapada, meu companheiro de ala por dúzias e dúzias de vezes...
Ai as perdizes! Poucas são as pessoas que, ao trincá-las e saboreá-las, tão apetitosas a derreterem-se na boca, saibam imaginar as canseiras que nos dão. Soubessem-no, e a peso de oiro é que as pagavam. Que, para matar uma perdiz, é preciso suá-la. Das dizimadas aos centos nas batidas como bandos de pardais, não falo. Nem nessas que à traição matam os esperistas, dando ao fole do chamariz e alvejando-as no chão, às duas e três, às carreiras de meia dúzia, de enfiada.
Bem gostava, como Turgeneff, de escrever as narrativas, ou melhor, as memórias de um caçador. E agora me salta à lembrança o livro do nosso rei D. Duarte, Da Arte de bem Cavalgar toda Sela. Pois não haverá aí quem decida escrever uma Arte de Bem Caçar a Perdiz?
A perdiz! A mais linda ave que conheço, que em lindeza nenhuma se lhe compara! Mais linda que os pintassilgos mais lindos...

Como o senhor bispo, o bom bispo velho,
Calça meia fina de cetim vermelho;
O colar de penas que lhe adorna o peito
Lembra-me a corola de um amor-perfeito...

Fausto José
in Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo, n.º 20, Dezembro de 1966

César Luís de Carvalho (2003). Fausto José, Poeta de Portugal. Câmara Municipal de Armamar. Tipografia Voz de Lamego, Lda.

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