Umas palavras minhas a falar de caça? E porque se lembrariam
do meu nome? Por ser um caçador da velha guarda, como vulgarmente se diz,
certamente depois daquela que em Waterloo morria mas não arriava? Por ter
escrito o livro de poemas «É El-Rei Que Vai à Caça»? E melhor caçador que
poeta, vá lá... Não interessa a razão e escreva umas palavras.
Como a Nau Catrineta, um caçador velho tem sempre muito que
contar.
Caçador de perdiz, desde o luzir da mocidade, fale da
perdiz.
Quando nasci, o vício da caça andava-me no sangue, e nem
admira.
O meu avô paterno fora caçador de coelho. De perdiz, o
paterno, e dos melhores aqui das redondezas. Outros avós teria assim? Tarde já
para que o apure, mas ponto de fé meu que tive. Muito bago de chumbo talvez
pisei por estes montes das bacamartadas que despejaram.
Menino, comecei a atirar aos pardais com a espingardinha de
pressão. Rapazote com a Flobert de calibre 22, já de pólvora. E pelos quinze ou
dezasseis anos já me atrevia à serra com a 12 de dois canos, a velha Jamin
inesquecível, porque se afeiçoa o caçador à espingardas, tanto ou mais que aos
seus cães, e limpá-las e cuidá-las é um dos seus maiores prazeres, como se já a
apontá-las e dispará-las a um perdigão dos sabidos, matando pela imaginação o vício
da caça.
Quando matei a minha primeira perdiz, apareci em casa mais
orgulhoso do que se tivera prendido o Gungunhana. Aqui pelas serras, ao tempo,
a grande novidade era ainda a da prisão do Gungunhana, e iam passados vinte
anos...
Minha mãe, ao vê-la, entristeceu-se – ela que, ainda agora,
me não perdoa a crueldade de caçar –, e censurou-me com aspereza por assim
matar, impiedoso e glorioso, a inofensiva perdizinha, mas eu não podia sofrear
a irresistível tentação, e, na véspera da abertura – então no primeiro de
Setembro –, nem conseguia adormecer. Cada qual é para o que nasce, diz o povo.
Estava escrito: tinha de ser caçador de perdiz. E, para a perdiz, um galgo...
Para o coelho, um manco...
Tenho umas pernas de aço – umas pernas de galgo – e o coração
bate-me ainda sossegado. Hoje ainda, e já na casa dos sessenta, sou bem capaz
de calcorrear, da alvorada à noitinha, uns trinta ou quarenta quilómetros pelas
vertentes íngremes do meu Douro recobertas de matos fechados, bravias de estevas
e carrasqueiras, ou pelas Terras do Demo de Aquilino, só fraguedo e calhaus. Com
mais de quarenta anos de caça, quando me viro a deitar contas, acho nas pernas
umas boas dezenas de milhares de quilómetros.
Rapaz, fui caçador solitário. Merenda a tiracolo, na bolsa já
herdada, cantil à cinta (que a sede queima e o suor cai em bagas), deitava-me à
toa por montes e vales, por tojais e vinhas, assim o Gama ou o Cabral ao
descobrimento de mundos. E que surpresas, que novidades para o caçador
aprendiz! Pastores e rebanhos... Riachos límpidos e serenos, que se diriam de
cristal... Povoléus desterrados pelo horizonte... Que o poeta e caçador não os
pode dissociar... E o gosto da solidão e o esquecermo-nos do tempo...
Que ele vai à caça só por desfastio,
Por entrar na barca, por passar o rio,
E ao fitar as águas com os céus no fundo
Esquecer as mágoas com que fere o mundo...
Que ele vai á caça para recolher
Imagens de versos que há-de conceber...
Para como os lobos se embrenhar nos matos
E dar ao seu corpo os mais duros tratos
Quando a voz maldita do diabo tenta
A sua alma sempre só de Deus sedenta...
Vou hoje sempre com outros caçadores, e, mal entramos no
monte, vá de formar ala: todos em fila, à distância de um tiro, os de cima
atrasados e os fundeiros adiantados.
Em linha a caçada será mais frutuosa, mas não tão emotiva,
presos todos os companheiros, sem liberdade de acção. Porque não é um qualquer
que se mete ao monte para enfeitar o cinte de perdizes como quem vai aos
frangos à capoeira ou colher o cacho de uvas à parreira do quintal... Que a
perdiz obriga às suas regras, à sua técnica, e é preciso ser duro, de reflexos
prontos, de sentidos apurados. E ter a queda, o instinto, o conhecimento do
terreno, e sabê-la bater, e calcular-lhe as revoadas, medir-las. Que a perdiz é
a ave mais arisca e astuta que sei e só pelo uso chegamos a dar-lhe com as
manhas. Como poucas se defende, e ainda bem, pois, se não fora assim, e de
cobiçada que é, já se lhe teria extinguido a raça. Mas que seria do caçador,
poderia até haver caçadores, sem o cão, sem um bom cão? Sem o amigo?Amigo dos
Amigos, vai o cão ao ponto de morrer com saudades do dono. De paixão e fome,
por não querer comer, oiço que morreu o perdigueiro dum meu tio-avô, tão bom
padre como bom caçador. E um já vi, em plena cheia do Douro e arriscando a
vida, atirar-se a abocanhar uma perdiz que levava a corrente.
São os caçadores muito mentirosos – dizem – mas eu não
minto. Os caçadores não mentem, estilizam. Cães bons, porém, são raros como os
bons caçadores. Mestres caçadores, hoje, numas tantas léguas à roda, podem
apontar-se a dedo. No Freixo, o Zé do Álvaro... O João de Tourais, na Régua...
O Norberto, em Lamego... E, nas minhas terras em Armamar, o Acácio da Rapada,
meu companheiro de ala por dúzias e dúzias de vezes...
Ai as perdizes! Poucas são as pessoas que, ao trincá-las e
saboreá-las, tão apetitosas a derreterem-se na boca, saibam imaginar as
canseiras que nos dão. Soubessem-no, e a peso de oiro é que as pagavam. Que,
para matar uma perdiz, é preciso suá-la. Das dizimadas aos centos nas batidas
como bandos de pardais, não falo. Nem nessas que à traição matam os esperistas,
dando ao fole do chamariz e alvejando-as no chão, às duas e três, às carreiras
de meia dúzia, de enfiada.
Bem gostava, como Turgeneff, de escrever as narrativas, ou
melhor, as memórias de um caçador. E agora me salta à lembrança o livro do
nosso rei D. Duarte, Da Arte de bem Cavalgar toda Sela. Pois não haverá aí quem
decida escrever uma Arte de Bem Caçar a Perdiz?
A perdiz! A mais linda ave que conheço, que em lindeza
nenhuma se lhe compara! Mais linda que os pintassilgos mais lindos...
Como o senhor bispo, o bom bispo velho,
Calça meia fina de cetim vermelho;
O colar de penas que lhe adorna o peito
Lembra-me a corola de um amor-perfeito...
Fausto José
in Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo, n.º 20,
Dezembro de 1966
César Luís de Carvalho (2003). Fausto José, Poeta de
Portugal. Câmara Municipal de Armamar. Tipografia Voz de Lamego, Lda.