Desde o paleolítico bife de “auroch” até ao guérardiano
navarin de faisão, a caça tem acompanhado o homem no atravessar de milénios. Alimento
assistencial desde a primeira hora omnívora, recolheu a atenção primeira dos
nossos antepassados.
É impossível debruçar-mo-nos sobre a aurora do homem sem que
nos apareçam, a todo o momento, os sinais do homem caçador.
Como única garantia de vida, a caça está presente nos restos
de comida que nos chegam até hoje, nas pedras e utensílios para o seu abate, na
utilização de peles para agasalho, no uso de ossos e dentes para armas e
enfeites, na representação portentosa dos seus corpos e movimentos, em toda a
arte rupestre.
Toda a estrutura económica da sociedade estava baseada na
caça que fornecia tudo o que era essencial para a vida. Foi a partir dela que
nasceu a técnica, que deu origem aos primeiros instrumentos, e foi a partir
dela que o homem desenvolveu as suas faculdades de astúcia, que lhes eram
essenciais numa luta desigual com animais superiores em tamanho, em força e em
número.
Foi também a caça que deu os primeiros deuses aos homens,
elegendo cada clã ou cada horda um símbolo totémico animal que, em forma de
alegoria, protegia os homens da sua mais directa preocupação: a fome.
Instituídas em figuras de protecção e agradecimento, logo se
transformam em objectos de devoção que, mais tarde, dariam origem ao
deus-animal que tão comum haveria de ser nas civilizações proto-egipcías e em
quase todas as regiões onde houve uma ligação intima e estreita entre os povos
e a sua caça.
Apesar de transformados em símbolos de veneração , os
animais de caça escolhidos para deuses ou totens, não eram subtraídos à dieta
alimentar dos povos que os deificaram. (Nota Breve Sobre a Caça na Cozinha, pp. 59-60)
Galinhola Real
Barre a galinhola com uma massa feita de alho, sal e salsa e
envolva-a em papel de alumínio, antes de a levar ao forno onde deve estar cerca
de trinta e cinco minutos.
Com o fígado, a tripa e duas gemas de ovo, faça uma massa
que deve passar por duas colheres de sopa de manteiga e um cálice de armagnac. Deixe
fazer este molho durante três minutos, ao fim dos quais deverá juntar uma
colher de sopa de mostarda de muito boa qualidade. Passe o molho por um
passador e retire a galinhola do forno. Passe toda a ave pelo molho que acabou
de fazer e sirva de imediato. (pp. 95-96)
Um verdadeiro livro de caça e de receitas, que todo o
caçador deve possuir.
Na primeira parte acedemos a uma perspectiva histórica da
caça e da relação do homem com os alimentos - muito interessante e muito bem
conseguida pelo autor, que a faz desde os primórdios até à actualidade, e na
segunda metade usufruímos de belíssimas receitas tradicionais de caça, que vão
desde o pequeno tordo até ao poderoso javali ou majestoso veado, sem esquecer o
coelho, a lebre, a codorniz, a galinhola ou a perdiz, entre outras espécies do
nosso calendário venatório.
Alfredo Saramago (1997). A Caça - Perspectiva Histórica e Receitas Tradicionais. Colares Editora.