24 de março de 2014

Taça de Portugal Compak Sporting 2014 - Paulo Cleto vencedor absoluto

O Clube Desportivo de Tiro de S. Miguel foi o anfitrião da Taça de Portugal de Compak Sporting, edição de 2014.
As provas (com um total de 200 pratos) decorreram nos dias 22 e 23 de março, no nosso campo de tiro em Santana, Vila de Rabo de Peixe, com o apoio indispensável da Câmara Municipal da Ribeira Grande e da Direção Regional do Desporto.
Com um total de 34 atiradores, entre os quais figuraram as figuras maiores desta modalidade de tiro do país, as provas decorreram sem incidentes e dentro dos horários previstos.
A meteorologia açoriana, inconstante nesta época do ano, resolveu ser solidária, tendo a maioria das oito contagens de 25 pratos decorrido dentro de condições atmosféricas adequadas ao bom desempenho dos atiradores.
Os almoços e as pausas foram momentos de agradável convívio entre os atiradores, oriundos de várias regiões do país. Esta é a maneira de receber própria das nossas gentes, com as refeições, coordenadas pelo incansável Paulo Cruz, à base de pratos de raiz tradicional, a fazerem o regalo de todos os participantes.
Para corolário da festa, ganhámos a competição. Com 191 pratos partidos, num total de 200 pratos de prova, o nosso atleta maior, Paulo Cleto, consagrou-se como vencedor absoluto.
Assim, em 2015, temos novamente a obrigação e o orgulho de voltar a organizar esta prova que, esperamos, irá trazer a esta Região Autónoma ainda mais entusiastas do tiro com armas de caça.
Com esta vitória, os Açores marcam presença, pelas melhores razões, no mapa do tiro desportivo nacional.

O Presidente da Direção

João Lima

23 de março de 2014

Olho Mirolho P’ra Matar a Passarada

Dizia Aquilino Ribeiro que os piores inimigos dos pássaros são os rapazes (Geografia Sentimental). Já o disse há uns anos, num texto passageiro, que as mossas infligidas pela canalha, no mundo das pequenas aves, era incomparavelmente menor ao poder devastador da química.
Há cinquenta anos não havia parque público, latadas de videiras, arbustos de jardins, que não estivessem cheios de ninhos de serzinas e verdilhões, macieiras onde não habitassem ferreirinhas e, quando calhava algum terreno ficar em pousio, ruidosas bandadas de pintassilgos. De pardais, nem se fala. Faziam nuvens quando se erguiam no céu de qualquer recanto onde tinham topado comedoiro. Nas árvores de recolha eram, por vezes, mais bastos que as folhas. O meu querido conterrâneo Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, fez um belo relato disso que também já abordei noutro texto, igualmente passageiro.
Os rapazes, os desses anos, sem televisões que os prendessem aos ecrans, sem computadores que os enredassem, tinham ratoeiras, fisgas, visgo, andavam aos ninhos e davam argumentos ao bom Mestre da Soutosa. Há uma cantiga do Zeca Afonso que só pode ser escutada e sorvida, na sua plenitude, pelos que comeram desse pão:

Andei ao licranço
Andei ao lacrau
...............
Vibra à carocha
Ao corujão cego

Então, eu tinha a minha molhadinha de ratoeiras com que entretinha os domingos e, algumas vezes, com parceiros das malasartes, também armei redes nos poços, por noites de invernia. Alguns poços, mais antigos e desprezados, criavam nas paredes interiores arbustos, vegetação vária, e a pardalada, confiada, escolhiam-nos para dormitório. Assim os surpreendíamos e quase sempre a safra era generosa. Mas, se havia sonho, se havia coisa que eu desejava era uma espingarda de pressão de ar. Alguns companheiros ganhavam-me à palma exibindo as suas, de que eram extremamente ciosos... Eu bem me roía, prometia mundos e fundos, mas os meus pais não estavam para aí virados.
Até que um dia, não sei quando nem em honra de que santo, caíram em me dar uma. Já eu era, então, espigadote, com boa idade para não dar mais razões ao Aquilino... Mesmo assim, a Diana 27 foi uma coisa do outro mundo, o instrumento que me permitiu dominar o reino da passarada, por todos os meus domínios.
Eram anos despreocupados em que eu lia, por vezes noite fora, indiferente às horas, alheio ao sono, com a janela do quarto escancarada para espantar o perfume dos primeiros cigarros. Em muitas dessas noites em que devorava Camilo ou Júlio Dinis, subia até ao meu quarto o canto dos rouxinóis que moravam junto a uma presa, num frondoso cômoro de loureiros. E eu adorava o seu canto que, não raro, me suspendia a leitura.
Eram anos despreocupados em que eu pegava na espingardinha e ia, de árvore em árvore, atirando aos pardais. E tudo me servia, tudo contava para a molhada. Uma velha empregada da casa, sempre que a molhada aparecia composta, comentava:
- O menino tem olho mirolho p’ra matar a passarada!
Mas um dia o tal “olho mirolho” deu mesmo para o torto. Num caminho, próximo da minha casa, então de terra batida e ladeado de oliveiras, disparei a Diana para um tal pardal, que estava camuflado pelas folhas, e o pardal caiu apenas ferido. Corri a apanhá-lo e, o pardal, era um rouxinol...
Passaram os anos, as décadas, e a espingardinha de pressão de ar jazeu sempre em telheiro de minha casa, a madeira minada pelo caruncho, o cano desfigurado pela ferrugem. Na sua podridão progressiva foi utilizada apenas para atirar às ratazanas que por vezes apareciam nos currais.
Desapareceram as bandadas de pintassilgos, são raras as serzininhas e raros os verdilhões. Há pássaros familiares da minha infância que já só encontro nos terrenos onde caço às perdizes e onde ninguém recorre à química para o seu cultivo.
Orgulhosa, talvez, do menino, a velha criada gabava o olho mirolho sem imaginar que havia coisas que matavam muito mais e às cegas. Eu também precisei de alguns anos para o saber. Quanto ao autor do Romance da Raposa, morreu há exactamente cinquenta anos sem sequer o suspeitar. (pp. 51-53)

Sérgio Paulo Silva (2013). O Bando e outras Penas de Caça. Edição do autor, fora do mercado com 50 exemplares

22 de março de 2014

Divagações

Umas palavras minhas a falar de caça? E porque se lembrariam do meu nome? Por ser um caçador da velha guarda, como vulgarmente se diz, certamente depois daquela que em Waterloo morria mas não arriava? Por ter escrito o livro de poemas «É El-Rei Que Vai à Caça»? E melhor caçador que poeta, vá lá... Não interessa a razão e escreva umas palavras.
Como a Nau Catrineta, um caçador velho tem sempre muito que contar.
Caçador de perdiz, desde o luzir da mocidade, fale da perdiz.
Quando nasci, o vício da caça andava-me no sangue, e nem admira.
O meu avô paterno fora caçador de coelho. De perdiz, o paterno, e dos melhores aqui das redondezas. Outros avós teria assim? Tarde já para que o apure, mas ponto de fé meu que tive. Muito bago de chumbo talvez pisei por estes montes das bacamartadas que despejaram.
Menino, comecei a atirar aos pardais com a espingardinha de pressão. Rapazote com a Flobert de calibre 22, já de pólvora. E pelos quinze ou dezasseis anos já me atrevia à serra com a 12 de dois canos, a velha Jamin inesquecível, porque se afeiçoa o caçador à espingardas, tanto ou mais que aos seus cães, e limpá-las e cuidá-las é um dos seus maiores prazeres, como se já a apontá-las e dispará-las a um perdigão dos sabidos, matando pela imaginação o vício da caça.
Quando matei a minha primeira perdiz, apareci em casa mais orgulhoso do que se tivera prendido o Gungunhana. Aqui pelas serras, ao tempo, a grande novidade era ainda a da prisão do Gungunhana, e iam passados vinte anos...
Minha mãe, ao vê-la, entristeceu-se – ela que, ainda agora, me não perdoa a crueldade de caçar –, e censurou-me com aspereza por assim matar, impiedoso e glorioso, a inofensiva perdizinha, mas eu não podia sofrear a irresistível tentação, e, na véspera da abertura – então no primeiro de Setembro –, nem conseguia adormecer. Cada qual é para o que nasce, diz o povo. Estava escrito: tinha de ser caçador de perdiz. E, para a perdiz, um galgo... Para o coelho, um manco...
Tenho umas pernas de aço – umas pernas de galgo – e o coração bate-me ainda sossegado. Hoje ainda, e já na casa dos sessenta, sou bem capaz de calcorrear, da alvorada à noitinha, uns trinta ou quarenta quilómetros pelas vertentes íngremes do meu Douro recobertas de matos fechados, bravias de estevas e carrasqueiras, ou pelas Terras do Demo de Aquilino, só fraguedo e calhaus. Com mais de quarenta anos de caça, quando me viro a deitar contas, acho nas pernas umas boas dezenas de milhares de quilómetros.
Rapaz, fui caçador solitário. Merenda a tiracolo, na bolsa já herdada, cantil à cinta (que a sede queima e o suor cai em bagas), deitava-me à toa por montes e vales, por tojais e vinhas, assim o Gama ou o Cabral ao descobrimento de mundos. E que surpresas, que novidades para o caçador aprendiz! Pastores e rebanhos... Riachos límpidos e serenos, que se diriam de cristal... Povoléus desterrados pelo horizonte... Que o poeta e caçador não os pode dissociar... E o gosto da solidão e o esquecermo-nos do tempo...

Que ele vai à caça só por desfastio,
Por entrar na barca, por passar o rio,
E ao fitar as águas com os céus no fundo
Esquecer as mágoas com que fere o mundo...
Que ele vai á caça para recolher
Imagens de versos que há-de conceber...
Para como os lobos se embrenhar nos matos
E dar ao seu corpo os mais duros tratos
Quando a voz maldita do diabo tenta
A sua alma sempre só de Deus sedenta...

Vou hoje sempre com outros caçadores, e, mal entramos no monte, vá de formar ala: todos em fila, à distância de um tiro, os de cima atrasados e os fundeiros adiantados.
Em linha a caçada será mais frutuosa, mas não tão emotiva, presos todos os companheiros, sem liberdade de acção. Porque não é um qualquer que se mete ao monte para enfeitar o cinte de perdizes como quem vai aos frangos à capoeira ou colher o cacho de uvas à parreira do quintal... Que a perdiz obriga às suas regras, à sua técnica, e é preciso ser duro, de reflexos prontos, de sentidos apurados. E ter a queda, o instinto, o conhecimento do terreno, e sabê-la bater, e calcular-lhe as revoadas, medir-las. Que a perdiz é a ave mais arisca e astuta que sei e só pelo uso chegamos a dar-lhe com as manhas. Como poucas se defende, e ainda bem, pois, se não fora assim, e de cobiçada que é, já se lhe teria extinguido a raça. Mas que seria do caçador, poderia até haver caçadores, sem o cão, sem um bom cão? Sem o amigo?Amigo dos Amigos, vai o cão ao ponto de morrer com saudades do dono. De paixão e fome, por não querer comer, oiço que morreu o perdigueiro dum meu tio-avô, tão bom padre como bom caçador. E um já vi, em plena cheia do Douro e arriscando a vida, atirar-se a abocanhar uma perdiz que levava a corrente.
São os caçadores muito mentirosos – dizem – mas eu não minto. Os caçadores não mentem, estilizam. Cães bons, porém, são raros como os bons caçadores. Mestres caçadores, hoje, numas tantas léguas à roda, podem apontar-se a dedo. No Freixo, o Zé do Álvaro... O João de Tourais, na Régua... O Norberto, em Lamego... E, nas minhas terras em Armamar, o Acácio da Rapada, meu companheiro de ala por dúzias e dúzias de vezes...
Ai as perdizes! Poucas são as pessoas que, ao trincá-las e saboreá-las, tão apetitosas a derreterem-se na boca, saibam imaginar as canseiras que nos dão. Soubessem-no, e a peso de oiro é que as pagavam. Que, para matar uma perdiz, é preciso suá-la. Das dizimadas aos centos nas batidas como bandos de pardais, não falo. Nem nessas que à traição matam os esperistas, dando ao fole do chamariz e alvejando-as no chão, às duas e três, às carreiras de meia dúzia, de enfiada.
Bem gostava, como Turgeneff, de escrever as narrativas, ou melhor, as memórias de um caçador. E agora me salta à lembrança o livro do nosso rei D. Duarte, Da Arte de bem Cavalgar toda Sela. Pois não haverá aí quem decida escrever uma Arte de Bem Caçar a Perdiz?
A perdiz! A mais linda ave que conheço, que em lindeza nenhuma se lhe compara! Mais linda que os pintassilgos mais lindos...

Como o senhor bispo, o bom bispo velho,
Calça meia fina de cetim vermelho;
O colar de penas que lhe adorna o peito
Lembra-me a corola de um amor-perfeito...

Fausto José
in Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo, n.º 20, Dezembro de 1966

César Luís de Carvalho (2003). Fausto José, Poeta de Portugal. Câmara Municipal de Armamar. Tipografia Voz de Lamego, Lda.

21 de março de 2014

Cortando Traços ao Tempo

Deste deslumbrante trabalho de José Maria Souza Guedes, através do qual percorremos poemas e contos, diz-nos Guida Morais e Castro que quando as palavras de um poeta subtilmente se transformam numa melodia de imagens, sons e emoções, transportando os nossos sentidos para mundos desconhecidos  e longínquos, que porém se tornam tão familiares e tão cerca, sucede um milagre: a nossa alma dança.
Vitor da Rocha acrescenta-nos que, ambos, poemas e contos, respondem bem pela sua paternidade, denunciando cumplicemente  a sua origem, da mesma postura perante a vida, num misto de melancolia e ternura pelos seres e coisas mais insignificantes, uma suave angústia perante os dentes do tempo, que, impavidamente, no encaminha, ora a bem, ora a mal, para a ladeira derradeira - o que, aliás, é logo denunciado pelo próprio título da obra. Um livro fascinante, de regresso ao húmus, mas também à corrente límpida das palavras, que, tal como os cenários e seres que descreve e recria, se nos revelam em toda a inocência de um texto que pode e deve ser lido por todos e para todos.

Galinhola

Nesta gaiola...
Ave rara aqui na feira, onde toda a gente diz que este bico não é de perdiz.
Estou exausta, cansada, mal consigo distinguir entre a balbúrdia e o zunir desta gente, ou as ondas permanentes do oceano sem fim que acabei de atravessar.
Vim de longe, muito longe... Do lado de lá do nascente...
Mas toda a gente insiste que sou diferente... O feirante diz à gente que eu sou um gavião, uma espécie única vinda do oriente... Outro mais entendido diz que não... Que não...
Que sou apenas um faisão. Mas o feirante insiste que sou um falcão, uma ave especial que veio do Japão, um papagaio diferente, porque o bico cresceu, e o meu falar é único.
Deixa muda toda a gente.
- Têm de ouvir! Têm de ouvir!
Apregoa agora entusiasmado que valho 100 euros.
Uma velha agoirenta fitou-me com olhos baços, apontou-me os dedos trémulos e disse à multidão que eu era o tira-olhos, o tira-olhos autêntico.
Cada vez chega mais gente.
O feirante, radiante, encheu a gaiola de trigo centeio e ração, e um miúdo sorrateiro tentou cortar-me o bico de corta-unhas em riste.
Estou confusa. O barulho é imenso.
Ontem ao chegar tive azar. Caí esgotada, mal cheguei à costa.
Mesmo ali na praia, acho que as ondas ainda me empurraram para terra. Depois, pouco me lembro... Sei que acordei dentro desta gaiola.
Já não era a primeira vez que tinha feito esta travessia desde os gelos glaciares até aqui, dias e noites sem fim.
Quantas vezes nos confins do oceano sonhava com estas paragens cálidas e serenas, com o balir suave das ovelhas a pastarem, com o riacho calmo ao pé das folhas caídas dos carvalhos seculares da serra de Montemuro, lá em Carvalhosa.
Quantas e quantas vezes consegui enganar a cadela do P. Chamava-se Tua.
Essa cadela que eu conheço tão bem... Linda, de traços finos, com ar altivo e decidido. Uma pointer, uma pointer pura. Acho que até havia uma espécie de pacto entre nós. Ela, parada, estática, com a pata levantada e a cauda hirta, completamente esticada, e eu imóvel, numa tensão de nervos e angústia quase a explodirem.
Até à última. Quando por fim levantava, olhava fixamente os olhos dela, e o P. Apontava a velha Francotte de canos paralelos e coronha inglesa, corria a mão, seguia-me, e fingia premir o gatilho.
E eu lá ia... Pousava cem metros adiante, e à pata, entre as giestas e o musgo, chegava até ao pequeno ribeiro, refrescava-me, e pouco depois lá estava a Tua e o P.
Passávamos horas e horas nisto, como um jogo nunca visto. Não sei. Não faço ideia porque me quis poupar, pois segundo algumas colegas, era o caçador mais famoso e temido aqui das serranias. Contavam que até tinha um casaco largo e velho, quase roto, onde no forro, junto ao peito, pendurava a caça, para que ninguém soubesse as paragens por onde andávamos.
Quanto chegava, sozinho mais a Tua, toda a serra ficava de sobreaviso, num alvoroço contínuo. Era único...
Não estou longe de Montemuro.
Daqui da feira consigo divisar ao longe os moinhos de vento.
Já não é cedo.
O povo vai indo em debanda, e o feirante começou a guardar as gaiolas, as plantas e os tristes peixes indiferentes...
Em frente a mim, mei dúzia de pessoas ainda discutiam que eu era, quando perplexo e desconfiado, o feirante olhou para alguém que indignado disse:
- Não tem o direito de ter uma galinhola presa.
Fiquei radiante. Alguém sabia quem eu era.
Uma galinhola.
As lágrimas vieram-me aos olhos.
Era o P.
O feirante continuava a afirmar que eu era uma ave rara, uma arara, um falcão do oriente, um papagaio diferente...
- Não. Não tem o direito de ter uma galinhola presa.
Vi-o pegar na carteira, numa nota de cem euros, tirou-me com cuidado da gaiola e, perante o pasmo total do feirante e toda a gente, ergueu o braço, e no ar, abriu a mão de contente.
E eu voei, voei...
P.S. Isto aconteceu na feira de 3/XI/2008.
Em finais de Dezembro, algures, na serra de Montemuro, lá nos encontrámos. A Tua, o P. e eu Galinhola.
Obrigado, P.

José Maria Souza Guedes (2011). Cortando Traços ao Tempo (pp. 54-56). Mosaico de Palavras, Editora.

20 de março de 2014

O Bando da Carvalheira

Eu não sei se Vossenhorias sabem que esta Serra de Bornes, noutros tempos, era a melhor coutada da província. Da província? Do reino todo, quanto mais da província! Hoje não. Hoje, três vezes nove vinte-sete. Mas naquele tempo... Assucedeu isto no tempo da guerra, já lá vão mais de cinquenta anos, num lugar da serra que lhe chamam a Carvalheira. Andava eu e o meu compadre Sabastião, que morreu há dois anos pelos Santos, tolhidinho do reumático assim como eu, que mal se alevantava já. Pois saibam que naquele tempo não havia nada que se nos metesse à frente. Quem diria os cacos a que haveríamos de chegar... Caçada em que não calcorreássemos vinte quilómetros e não trouxéssemos uma dúzia de perdizes à cinta não era caçada.
Mas, nem de propósito, naquele dia em que tal caso assucedeu, as perdizes andavam esquivas. Quem lhe punha a vista em cima? Os cães bem fusgavam o mato, a farar, a farar, que pareciam a máquina do combóio. Pois sim. Deixá-los farar. Parecia que tinha passado por ali um furacão e não ficara raça de perdiz. De repente, grita o Sabastião, que ia a dobrar um cabeceiro, para mim, que andava mais abaixo, a meia encosta:
- Eh, Zeferino, parece que já dei nelas! Anda daí, homem, que, pelo barulho, handem ser para cima de vinte perdizes. Ouvi agora mesmo rotar o bando, ali atrás do alto. Chegam para ti e para mim, e ainda hadem sobrar perdizes!
À sede com que lhe andava, botei a correr como um cavalo, encosta acima, ao encontro dele. E com efeito, quando estava a chegar pertinho, rota o bando segunda vez: brrrrrrrr!
- Ah, compadre, até que enfim vamos a fazer o gostinho ao dedo. Já não era sem tempo. Estas perdizes são nossas, nem que tênhamos de ir atrás delas até Soeima, e nem Santo António lhe vale! Hemos de as levar de afeito!
E aí vamos nós, a mata-cavalo, a dobrar o altinho, para ver se ainda víamos onde é que o bando ia pousar, para lhe cairmos em cima. Mas dobremos o alto, e perdizes – que é delas?
Olhemos um para o outro, assaranpantados. Quenquera o diz. Tinhamos ouvido tão bem o bando a alevantar voo – onde estava o bando carvalho? Nisto, ouvimos outra vez, ali pertinho, à nossa mão esquerda: brrrrrrrr!, como se o bando se tivesse alevantado ali mesmo a dois passos. Viremos a cabeça – e o que vai ser? Não adivinham... Um burro, com licença de Vossenhorias! Um burro, sim senhor, que ali estava preso à corda, a pastar com toda a pachorra um fenanco, ementes o dono  andava mais abaixo, a cavar uma horteca. Um burro, pergunta Vossenhoria. Um burro pois! Nunca ouviu espirrar um burro? Pois fazem assim, brrrrrrrr!, sem tirar nem pôr, tal e qual como um bando de perdizes quando abre as asas e deita a voar.
Assim à primeira, o Sabastião e eu fiquemos  a olhar um para o outro, como quem diz: “O estupor do burro!” E então impecemos a rir, a rir como perdidos, em tão altas gargalhadas que até o dono do burro parou de cavar e se pôs a olhar para nós muito espantado.
Dali em diante, quando andávamos no monte e calhava de vermos um jumento, dizia logo o primeiro que as visse:
- Olha o bando da Carvalheira, compadre! Fogo nele!
- É verdade! Lá vai ele!
Aí têm Vossenhorias a história do bando da Carvalheira, tal e qual como assucedeu. Há-de haver para cima de cinquenta anos, e ainda tal não me esqueceu.

António Manuel Pires Cabral (2009). Páginas de Caça (pp. 106-108). Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros e Âncora Editora.

Aguarela "Perdiz", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)

19 de março de 2014

O Bácoro das Castanholas de Seda

Á quarta,enganei o bácoro!
Tudo começou há quatro dias atrás, nunca um bácoro me tinha feito perder tanto tempo! Como ia dizendo, comecei a ver umas grandes fuçadelas perto do meu hortejo, muito gramudo, carunchoso e muito minhocudo na vala húmida q´o atravessa e que por sua vez tem um grande manchão de mato á volta do dito e meu próprio e bem trabalhado hortejo... E aprontei-me p’ra esperar o bicho numa noite de lua, como mandam agora a gente fazer nos tempos modernos... Lá fui.
Lá chegado, prendi o Mariano á porteira da horta e fui-me prantar numa rochinha á meia barreira donde conseguia ver o fundo do barranco e pouco mais,... mas sabia q´o crenço dele era ali mesmo, por o fundo... e como ocês sabem, a ventania teve d´arrepio e soprava-me as pontas dos bigodes dum lado pró outro... Vamos lá ver s´o bicho aparece, pensei eu todo arrepiado. E fez-se noite quando tive impressão d´ouvir um ronco assim ao de leve... E passou-se algum tempo, já tava ficando com as nalgas dormentes e de bácoro nada! É quando o burricalho começou a zurrar... Eu pensei logo: o animal tá zurrando, tá sentindo o bacoro! (nã sei s´ocês sabem mas os Marianos são muito sentidos, dão logo sinal quando ventejam, barruntam ou veêm um bicho bravo) Ainda nã tinha acabado de pensar isto, faltava p´raí um segundo pra acabar, ouvi os arames do meu saboroso hortejo esticarem todos e com força... O Mariano tinha dado sinal q´ele andava ali, mas o bicho foi rápido a fintar-me sem eu o barruntar... e nisto, ele barruntou-me! Arrancou fazendo faísca nos bolegos e foi sair do outro lado da horta, num bocado que tá sem muro e o vosso amigo velhote atou-lhe uns arames mandongos, mal atados... Rebentou-me com aquilo tudo e foi-se sacudindo... Filho daquele cabrão! Hás-de pagar-me em géneros alimentares da tua própria carcaça, grande estafermo! E vi logo o que era: um dos raros javardos com castanholas de seda! Eu nem o ouvi tarraceando e era tão grande...
Na noite seguinte, lá tava eu, cheio de genica, prontitude e positivitude! Já tinha outro esquema pensado; hoje o Mariano fica a vinte metros mais abaixo de mim no barranco e eu mais chegado p’ra onde ele passou ontem á noite...assim foi! Á mesma hora, o burro zurrando muito... cada vez mais... e de repente um reboliço que mais parecia um bácoro saindo dum silvado á carga, lascando tudo... quando dei por isso, ouvi os arames outra vez e quando olhei p’ra lá já nã o vi... O q´é q´eu pensei; vou dar uma firme e robusta corrida pra ver s´ele se descuida na passagem de saída q´eu entretanto e nesse mesmo dia tinha amanhado já com manhosice p´ra se isto acontecesse o bicho enlear-se e atrapalhar-se um bocadinho... Olhem, parecia um rinoceronte!!! Levou arames, bolegos, latas, tudo pela frente! Eu pensei logo no momento e muito rápidamente, tal como m´ensinaram os budas islâmicos radicais: t´ás amanhado comigo! Faço-t´em bifes das patas á cabeça, nã me chame eu Velho Murtigão, o bispo papal de todos os caçarretas que tão lendo isto muito afinadinhos e tremendo a parte traseira do pézinho tentando barruntar s´o raio do vosso mestre, eu, pensa mesmo q´ocês são uns grandessíssimos caçarretas e marteletas mas pronto, o q´eu penso fica pra mim porq´é um pensar muito sublime... E alembro-me do Mariano... Nunca mais disse nada... E vou lá muito prontamente! Lá chegado até me vieram as lágrimas aos olhos... Mariano tinha levado uma violenta e mal intencionada sarrafada do bácoro nas pernas, derrubando-o p´ró fundo do barranco! E o desgraçado, sofrendo dos intestinos como sofre, cagava-se e espeidorreava-se sem destino á vista... Tive q´ir lá com um tractor tira-lo... Coitado, ele sofrendo e eu com a fórmula mágica p´ra entalar o javardo na minha mentalidade completamente cinegética... No dia seguinte o burro tava como novo com umas pomadas milagrosas q´o velhote tem p´ra curar Marianos. E lá fomos outra vez, com tempo, sol ainda alto, pensando muito, com muita força, p´ra correr bem... E pensei assim: o burro hoje fica na porteira, onde ficou na primeira noite... Só preciso saber sinal de Mariano pra saber s´o bicho tá perto, e quando ele zurra, tá perto da passagem d´entrada, q´é ond´eu vou tar d´arma á cara, preparado... E nã falhou, burro zurrou, zurrou cada vez mais... E truz!  Eu pensei logo: já foi bater no Mariano outra vez, este sem vergonha! E nisso, ouvi o javardão sair por o mesmo sítio de sempre, no muro caído com arames... Fui ver de Mariano, tava caído, de olhar triste, orelhas murchas... Lá o tive levantando; tinha só um lascão com uns trinta centímetros na perna direita provocado por as navalhas do bácoro... Fomos p´ra casa e curei-o e pensei: este bácoro t´á dando comigo em doido! Mas antes disso eu mato-o! E já sabia o q´havia de fazer áquele descarado, farto de dar pazada no meu burro!
No dia seguinte, lá fomos á labuta bacoral. Lá chegados tive atando umas latas ás pernas do burricalho assim a fazer de conta q´era um colete á prova de navalhadas... E eu... Fui prá saida do bicho, q´essa é certa com´ó destino q´ele vai ter comigo... E eu vou tar muito concentradinho e rijinho p´ra parar o javardão com um tiro balístico mesmo no meio da testa, q´é p´ra nã precisar de lhe tar rachando a cabeça p´ra assar no forno de lenha q´eu próprio possuo em meu nome, em nome indivídual, o nome do mestre. E lá nos prantámos outra vez. Bem dito e pensado, melhor feito... Mariano começou zurrando muito aflito e, de repente, ouviu-se um barulho que parecia um acidente d´automoveis!!! Vi logo, o bácoro mandou uma pazada ás latas do burro... E o bacorão arrancou fugindo p´rá passagem d´entrada, ond´eu nã tava... Mas inteligentemente e cinegéticamente durante o dia tinha pensado nisso e tinha tapado aquela passagem duma maneira que nem com um tractor "John Dias" a conseguiam abrir... O bicho deu-lhe uma cabeçada e nada, nã furou... Deu-lhe outra e,... nada! Foi quando arrancou p´ra mim, p´rá saída de sempre, prá saída da salvação... E eu lá, d´olho afinado (tinha tado com "Bodi" a semana passada num afinanço rápido e simples) na fita do meu ferro,... á espera de s´encher de gadelhas cerdísticas... Quando a fita e a testa bacoral s´encontraram, carreguei o gatilho com tanta força q´até o dobrei! Desviei-me e ele passou por mim adormecido e embalado num sono do qual nunca mais havia d´acordar neste mundo em crise... E assim foi, quatro noites pra enganar um animal feroz, terrível, sem vergonha e com castanholas de seda cujas próprias castanholas servem de cabide pró casaco de vison da minha Murtigoa... Este animal nunca pensou de tar diante do velhote mais implacável, perspicaz, cinegético, audaz, venenoso, certeiro e sementaleiro q´há notícia por estas bandas... Bem, fui ver Mariano, t´ava bem e quando o desamarrei da porteira foi-se por o bácoro morto e arrimou-lhe um valente par de coices no cachaço de vingança, com o meu consentimento... Carregámos o bicho e casa, fatachar, estaçalhar e amanhar a carne q´amanhã temos trabalho, temos q´ir cuidar da horta javardeira!

Texto da autoria de Sua Santidade Velho Mestre Murtigão, em honra da qual foi erigido o Santuário Bacoral de Santo Alêxo, local de peregrinação e de encontro dos marteleiros muito devotos a Santo Huberto e na arte da erração

Aguarela "Javali Navalheiro", da autoria de Francisco Charneca (https://www.facebook.com/francisco.charneca)

18 de março de 2014

A Dádiva Sagrada

“De alguma coisa me hão-de valer as cicatrizes de defensor incansável do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a passagem de qualquer homem por este mundo.” (Miguel Torga, Diário, Coimbra, 9 de Dezembro de 1993)

“Trôpego, o Tafona já não chegava às perdizes da Cumieira. Por isso, arrastava-se até Pedralva e caçava de espera. Caíam rolas no cedo, uma lebre ou outra pelo ano adiante, e coelhos quase sempre. No defeso, fornecia a casa e a barriga sem fundo do compadre Frederico; no tempo da permissão, vendia-lhe a Joana Benta as cabeças na Vila. 
- Veja vossemecê... - dizia ele, a contratar o preço.
- Eu sei lá!... Com oitenta e cinco anos, a vida fora-lhe sempre estranha como se a não tivesse conhecido. Casara, tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro. Virgem e selvagem na alma, continuava a caçar, e só embrenhado entre giestas e urgueiras é que ouvia, se ouvia, os clamores da mulher e o ganido das crias. Saía cedo, sempre supersticioso das menstruações da Camila, a vizinha do lado, que lhe mudavam a direcção do chumbo, e regressava altas horas da noite, colado ao granito das paredes, e assim escondido dos olhos curiosos da povoação.
- Por onde andaste? A pobre da Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão distantes, que se atirou às leiras e deixou o homem às carquejas. Não era que ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a cegueira com que galgava os montes é que o impediam à noite de relatar o trajecto seguido. Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação, com alguns ramos vistos em pormenor, por neles pousar inquieto um pombo bravo ou se aninhar, disfarçada, uma perdiz. Ás vezes até se admirava, ao regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido simultaneamente os olhos. Serras a que trepara sem dar conta, abismos onde descera alheado, e um toco, um raio de sol, o rabo de um bicho, que todo o dia lhe ficavam na retina. É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas, aqui de granito, ali de xisto. Mas, mesmo nessas ocasiões, qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão absoluta deles, que os olhos como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão. Simplesmente, essa diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de identificar o panasco de Alcaria pelo cheiro ou pelo tacto. A caça fora a maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho. A meninice começara-lhe aos grilos e aos pardais, a juventude e a maioridade passara-as atrás de bichos de pêlo e pena, e agora, velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de cartuchos que, sentado, ia esvaziando no que aparecia. E a vida, a de todos os dias e de toda a gente, com lágrimas e alegrias, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado, vestida de uma realidade que que não conseguia ver. A aldeia formigava de questões e de raivas, e ele coava-lhe apenas a agitação de longe, vendo-a fumegar na distância, ao anoitecer, e acariciando-a então num cansaço doce e contemplativo.
- Casou a Dulce...
- Ah, sim?...
Ouvira, de facto, imprecisamente, a voz do sino grande chegar repenicada e festiva ao Falição, mas o seu espírito não pudera nesse momento, nem podia agora, descer da nuvem de abstracção que o envolvia.
- Muito bonita ia o demónio da rapariga! Humana, mulher, a Catarina tentava chamá-lo a uma consciência que reanimasse fogueiras mortas, sonhos desfeitos. Nada. O pensamento dele não estava ali: perdia-se nos projectos do dia seguinte, já cheio do rumor alvoroçado do bando de perdizes que sabia ir levantar da cama ao romper da manhã.
- Morreu a Palhaça...
- Ah, morreu?
E continuava a dar à manivela do rebordador, encontrando no cartucho, túmido como uma semente, não sabia que verdade mais profunda e mais transcendente do que aquela morte.
A velhice e o reumatismo tentaram com toda a brutalidade metê-lo noutros varai. Mas ele lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar.
Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes. A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia.
- Os Canedos berraram...
- Eu vi...
- A cunhada chamou curta à Ana... O que ouvira eram gritos, evidentemente, insultos, com toda a certeza, mas nomes assim... E uma tristeza muda apertava-lhe o coração.
- Um roubo em casa do Antunes...
- Bem me pareceu...
- Batatas, trigo, muita roupa, um presunto...
Quase que surpreendera o Rodrigo e a mulher com a boca na botija, e sabia que não, que o que esconderam na mina velha, e pudera examinar à vontade, era uma sombra daquilo.
De maneira que cada vez se metia mais consigo, com medo do vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma coisa sabia ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que mortalmente, o dedo premia o gatilho.
E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia aveludada. Entre o sangue de perdiz morta - que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele - e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele. Mas a aleluia do formigueiro humano que o rodeava era outra.
- A Rosária a flara em moralidade! Se reparasse na filha...
- A Matilde? Que fez ela?
- Nem tu sabes!
Palavra, que não sabia. Atravessara os anos como um duende, puro, alheio à raiva e à ganância, inocente, pronto a comover-se diante da primeira flor. Uma virtude, sobre todas, conservara sempre: a da lisa naturalidade. E por isso, no meio da incapacidade que sentia para entender o tecido de razões com que era feito o mundo que o cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se debatiam forças e gestos de amor. O cio, a brisa de sémen que agitava todos os seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda sagrada. Então, oleava e arrumava a arma, e os seus olhos, de caçador ainda, seguiam a revoada do casal de melros, o trajecto de um coelho, as pegadas da raposa, mas para os acompanharem comovidos naquela dádiva sensual e procriadora.
Infelizmente, só ele é que entendia de uma maneira assim inocente as coisas que tinham intimidade de ninho e calor de seiva. Porque a aldeia, que olhava compreensivamente as reses alevantadas, diante de uma rapariga cega de amores erguia-se como se visse um crime.
- Ela e o Avelino parecem cães à cainça.
- E que mal há nisso? Maiores e vacinados, que tinha que ver o mundo com o que o corpo lhes pedia? Mas os pais, aqui-del-rei que os enforcavam se olhassem sequer um para o outro, e a terra inteira aplaudia. Acontecia ainda que o Travassos, todo lá da mãe da rapariga, punha em semelhante martírio a sombra de uma perseguição.
De fora, mas infelizmente não de tão longe como desejava, o Tafona assistia à cena. Sentado à sombra da nogueira molar, e perto da poça onde vinham beber, esperava as rolas. E lá em baixo, na veiga, o seu olhar cansado ia acompanhando a comédia. A cachopa, de molho à cabeça, a passar na Silveirinha; o rapaz a deixar a rabiça na lavrada e a sair-lhe ao caminho; e o esqueleto do Travassos, abelhudo e ciumento, a correr a avisar as famílias.
Via e ficava a malucar naquilo, no contra-senso de tudo e de todos. Pois não seria melhor, mais justo, mais humano, deixá-los juntarem-se livremente, à lei da natureza? Contudo, daí a nada, a rapariga ia a toque de caixa pelo Teixo abaixo, e o rapaz retomava o arado a ouvir berros do pai.
- Uma pouca vergonha... - recomeçava a Catarina à noite, depois do caldo.
- O quê?
- O que há-de ser? A Matilde e o Avelino... Se não o Travassos...
Calou-se como de costume. Decididamente, cada vez entendia menos tal mundo. Mas as pernas atraiçoavam-no miseravelmente, e embora quisesse fugir para muito longe, tinha de se resignar às leis da idade e caçar de emboscada coelhos pacatos na vinha velha do prior.
Era um Setembro puro. Videiras que pareciam cedros e cachos com bagos como bugalhos. Manco, o Tafona, foi-se arrastando e ainda a tarde vinha a cair além-Doiro já ele estava no seu posto, sentado, imóvel e silencioso, com a arma engatilhada sobre a coxa.
Como habitualmente, quase nem respirava. Por muito inocentes que fossem os láparos, farejavam ruído a cem léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos, apertava os pulmões.
A espera nunca lhe dava inteira paz de espírito. Forçava-o a uma espécie de compromisso com a parte traiçoeira da vida, estremando os campos do agredido e do agressor. Entre ele e o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro encontro, um embate de forças. Tudo se passava sem alegria e sem eco, choque abafado, como o de uma pinha aberta a cair no musgo. Subitamente começou a sentir sons indistintos. Prestou atenção. Passos. Passos de gente, e grande.
- Bolas! - disse, sem abrir a boca. De facto, perdera o tempo. Para que tudo retomasse a quietude inicial e os coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca, seriam precisas horas, e então já não teria luz.
Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um bardo e a sumir-se na vinha.
- É boa!... - murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom. Mas ainda o seu espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.
Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.
Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles, de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o Travassos que, por acaso, caminhava direito à arma do caçador.
O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.
O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.
- Alto lá! - ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.
O Travassos estacou, apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:
- Sou eu, ó ti Zé!
- Bem sei. Mas não te mexas.
- O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!
A tremer e de olhos esgazeados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber. Mas o Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia confiava na alma solitária do caçador.
- Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor...“

Torga, Miguel, Novos contos da montanha, 13ª edição, s.e., Coimbras., pp. 53-63
Transcrição de Luís Paiva

17 de março de 2014

A Arte da Caça - Por Aquilino Ribeiro

Divina – lhe chamam Xenofonte, Diogo Fernandes Ferreira, e todos os sequazes de Nenrode, caçador tão formidável que o Eterno exclamou do alto, contemplando as suas inconcebíveis façanhas: aquele salafrário dá-me cabo da Criação!
Bárbara - contesta qualquer sócio da Protectora e, antes, os filósofos sofistas e platónicos.
Afinal de contas, tanto lhe cabe o conceito de divina como de bárbara: depende do ângulo em que se coloca o observador. Nós, que somos no terreno da competição pelo tiro aos pratos contra o tiro aos pombos de gaiola, pela batida às perdizes pedibus calcantibus em vez de ir o "fogueteiro" ocupar uma porta nas coutadas, mantidas na roda do ano sob a égide da G. R., pela caça da lebre procurada pelas devezas e encostas soalheiras em vez de perseguida a cavalo - de corricão lhe chamavam os antigos - e com galgos que só comem e bebem e são bonitos para tal fim, diremos, dentro da lei da relatividade das coisas, que será isso e mais uma coisa: humana.
A caça, mesmo que considerada em tanto que ablação da vida a seres vertebrados, coloca-se num plano incomparavelmente superior àquele em que se processa a matança quotidiana, praticada nos animais domésticos a bem da nossa conservação, sempre a frio, quer pelos magarefes, quer pela cozinheira de faca e alguidar. Não que o vitelinho loiro, mamoto, de olhos inocentes, o cabritinho saltador que executa, sem ninguém lhe ensinar, toda a espécie de gambiarras de alta ginástica, o franganito que ensaia a sua solfa de cantador e já arrasta a asa, sejam menos respeitáveis e interessantes sob o ponto de vista de beleza e como máquinas de viver dotadas de uma relojoaria autónoma, mais perfeita que o mais perfeito produto das nossas fábricas. Em face do direito à existência não lhes assiste menos sufrágio a uns do que aos outros. Em tudo, porém, quem dá leis é o mais forte. 
O mundo está bem, está mal construído, é também uma questão de critério. Com certeza que eu o faria melhor... para mim. O filantropo da Sociedade Protectora pode garantir-nos que está mal. Um tomista, pelo contrário, não deixa de proclamar: Nada mais admirável que a obra da natureza no todo e na parte. Saiu da mão de Deus, que é o artífice perfeito. Mas vejamos:
A venatória, é intuitivo, nasceu com o homem e representa por conseguinte uma necessidade. Não digo como o pão para a boca, pois que in imo não havia entre nós tal adjuvante, mas como a água que se bebe. O homem armava seus engodos aos animaizinhos mais fracos, mas mais lestos do que ele, a lebre, o coelho, a perdiz, ou atacava-os de frente como o javali e o auroque, e fazia deles, crus ou assados, um pastel ou muitos pastéis. Sempre assim foi, com mais escabeche ou menos escabeche, à moca, a laço, à flecha, a pólvora piroxilada. Fatalidade da orgânica terrestre. A natureza animal não é mais que uma roda girante e contínua de navallhas, ou se quiserem, de dentes, que tal é o occídio dumas espécies pelas outras. As superiores, como é lógico, levam sempre a melhor, e na maneira de exercerem a sua força se inscreve a caça como actividade regular. Os seres nutrem-se uns dos outros, a partir de aIfa para ómega, e os de ómega, são por sua vez vítimas dos microrganismos, porventura espécies que hajam remontado à vida e que a biologia, cujos minutos são os nossos milénios, ainda não classificou ou de cuja existência está insegura. Encarada a esta cronometria, a vida é um gorgulhar constante de seres, uns que vingam, outros que se afundam e extinguem, como se vê pelo filme fantástico dos fósseis. Nascimento, meio-dia, ocaso são fases multimilenárias essas que os nossos sentidos não abarcam e todavia se têm como alpodras infalíveis no renovamento da vida cósmica.
Se subsistir implica, portanto, esta luta no mundo organizado, podia a caça ser havida como uma prática condenável? Pelo contrário, pois que exige do caçador qualidades particulares, tenacidade, paciência, destreza, manha, dom este que constituía o fundo do carácter de Ulisses e o cronista João de Barros se aprazia em celebrar nos descobridores do seu tempo, só podia conferir dignificação a quem se ilustrasse no seu exercício.
Os Gregos, que amassaram os seus deuses do barro comum, fizeram daqueles que simbolizavam o lado naturalista da vida caçadores de marca. Foram-no ApoIo, Ceres e todos os demiurgos de fama. Hércules era grande caçador, até de leões. Aquiles apanhava o veado na carreira e Ulisses sabia mandar uma seta veloz à garça que os seus marujinhos, pouco depois, lhe apresentavam, na nau côncava, condimentada e assadinha nas brasas. A caça, entre outras razões que a justificavam, impunha-se como aprendizado da guerra, condição tirânica das sociedades. O magala faz-se soldado batendo o passo na parada, o archeiro do tempo do rei que rabiou fazia-se no monte. Antes de se ter inventado a pólvora, não se compreenderia que um herói celebrado nas batalhas, fosse bem embora à volta de Santa Ilion ou nas lutas tribais, não começasse primeiro por firmar o braço a abater o urso e a caçar o cervo.
Na Idade Média veio a caça com falcão, o açor e o esmerilhão, para que havia mestres exímios, tão abertos do entendimento como este Diogo F. Ferreira que deixou o livro Arte da Caça de Altanaria. Não era mais complicado fazer dum filho de morgado de Entre Douro e Minho bacharel in utroque jure que dum falcão um caçador de garças e perdizes, digno de príncipe. Saber conduzir-se com um destes bichos sábios primava a saber ler e escrever e dançar. A sua educação começava dali. Depois vinha a filosofia, a gramática e a geometria, que ensinavam o quantum satis da cartilha moral e a ciência das proporções para reinar. Não digo governar; governavam-se os cavalos e aos homens davam-se ordens. Em Xenofonte, na Ciropédia, lá encontramos bem assinalado este aspecto da cinegética, vista como disciplina na formação dum monarca. O tempo tudo abastarda, é certo. D. Pedro, o Cru, era grande batedor de montes e fragoeiro; igualmente D. João lI, D. Manuel e D. Sebastião; já com D. Henrique, esse de quem contavam:

D. Henrique está no Inferno 
No Inferno há muitos anos,
Porque deixou Portugal
Em testamento aos Castelhanos

Não podia, se é que alguma vez soube, na sua manifesta decadência física, caçar um coelho manso. Mas atavam-lhe um cervo a um tronco e ele ali lhe ia despejar o trabuco, forma ainda de ser rei. Mas é preciso, ao citar-se a luminosidade do Sol, dizer-se que este é um foco de luz, ou, quanto ao espelho da ribeira corrente, que a água é cristalina? Debuxar o que foi a venatória através das idades para que se saiba que estava molecularmente, digamos, associada à vida do homem não é igualmente redundância? Quem não era caçador, era um zero; espúrio da comu- nidade. A própria Igreja consentia que o clérigo caçasse, do mesmo modo que pescasse na ribeira, «bem embora tais funções se conciliassem mal com a brandura e mansidão que requer o estado eclesiástico», mas que o não fizesse de ofício.
Era, de ordinário, no clero que a cinegética rural ia recrutar as suas boas espingardas. Ainda me foi dado ter relações e mesmo intimidade com alguns destes portentos. Engrolavam a missinha com a alva, como depois o almoço, posto que substancial, e de polvorinho e chumbeira bem providos, assobiando aos cães mais jubilosamente que garganteando o Salutaris, partiam a montear. Só voltavam com as estrelas, à cinta tão imponente pendural de perdizes, coelhos e lebres, que ao outro dia lhe doíam as cruzes. As cruzes eram a região lombar, que não as cruzes da via sacra ou as que a teologia denomina a árvore da redenção. Posto que honrados e dignos homens, davam num bando de perdizes e, uma a uma, alevante após alevante, era para eles ponto de honra não despedir sem abater a todas. A perseguir uma lebre pelas neves, embora tal caça não enalteça o caçador, não viravam cara enquanto a não fossem descobrir, acachapada em cascos de rolha, para dar-lhe o pontapé e, responsando-a, acertar-lhe com um grão de chumbo detrás da orelha, excelente faena, em vez de lhe cravejar a culatra. Para fazerem dar o batecu a um coelho, não havia como esses padres do fim do século XIX, princípios do século XX. Nem um goal do Coluna. A alguns ergui nas páginas dos meus livros um hino passageiro e mal silabado, como antes muito bem o fizeram Camilo e Bulhão Pato.
Por que sendas lógicas a caça era, segundo os antigos, um veículo de virtudes, salta à vista. Não era caçador quem queria, longe do que hoje sucede.
O caçador tinha que ser forte, corajoso, valente, solidário com o seu companheiro e ainda por cima frugal. Porfiando, robustecia-se à força de treino; se punha brio em fazer cinto, tinha que apurar bem os sentidos, lúzio preclaro, orelha sete ouvidos, botas de sete léguas. O pensamento, que é um gerifalte indócil, tinha que o trazer sempre à trela, a bem da atenção concentrada; se monteava o urso, requeria-se que fosse bom calção e ter braço teso; às duas por três, o cavalo, cobrando-se de pânico, tomava o freio nos dentes; se caçava de volataria, tinha que desdobrar-se entre o açor ou falcão e a ave perseguida. Adestrando-se deste modo, estava implicitamente apto para a guerra, como hoje não fará melhor em Tancos. De permeio com este exercício cheio de nobreza, posto que estereotipado, com seus riscos, devoção, glórias, medrava o parasita lucilante, que era e é o caçador furtivo.
O caçador furtivo ainda hoje pega da moca ou do sacho de longo cabo e cata uma légua de terreno como um revisor às gralhas duma página de jornal. Se não topar dois, três coelhos enleados no sono, será um milagre de Santo Huberto que deve abominar semelhantes fautores de sacrilégio. Arma o laço à perdiz ou a boiz; pega-a no ninho, se está no fim da postura, ou vai-lhe tirando os ovos, que imola in loco ou em fritada com chouriço, substituindo-os por bugalhos. A pobre ave não dá conta? Não dá. A pressa com que se insinua no gineceu, sete olhos à direita e à esquerda, inibe-a de atentar e exercer o sentido do tacto, mercê do qual se aperceberia, embora se interponha a almofada das penas, da aspereza das infames nozes de galha, a que os bandoleiros muitas vezes não se dão sequer ao trabalho de aparar as protuberâncias. É possível também que o quinto sentido seja menos vivo nelas como menos necessário. O mesmo sucede com as galinhas que aceitam logo à primeira o endes – índex – em vez do ovo verdadeiro. Já as Ordenações previam este vandalismo, cominando aqueles que lhes quebravam os ovos, caçavam ao candeio ou de cevadoiro. A perdiz e mais pássaros caem nas armadilhas, como o coelho e a raposa nos ferros de serrilhas, a lebre nos fios e o lobo nos fojos. Aos coelhos vai pela calada do crepúsculo armar no toural, ou, como se diz para o Sul, no gastadouro. O toural, cuja etimologia eu nunca penetrei, parecendo-me que poderá vir do latim toral, manta de cama, é o lugar onde os coelhos costumam vir de noite aliviar a tripa. A lebre exerce esta função onde lhe dá a gana; o coelho, ou porque é mais sedentário, tem aqueles lugares da sua predilecção, em regra na limpaça duma tapada, à beira dos córregos, num pequeno tortelão do terreno. É ali que o caçador furtivo arma, sob uma ligeira camada de terra, tendo o cuidado de lhe dar a aparência primitiva, o terrível engenho de mandíbulas de aço. A operação requer a maior astúcia e destreza, porque se em cima do prato incide maior pressão do que aquela que comporta a escápula do chincadoiro, desfecha e pode apanhar-lhe a mão e trincar-lhe os dedos e até partir-lhe o pulso.
Em Portugal, por desleixo ou ignorância, a mão é que trabalha. Em França é com uma colher. Resulta daí, por um lado, diminuir os riscos, por outro, como os coelhos são dotados dum olfacto apuradíssimo, se vêm ao toral no princípio da noite, farejam o odor que não deixará de ter largado a mão do homem e desarvoram.
Sempre me tolhi de empregar estes embustes. Mas comecei por eles. A primeira vez que cacei um laparoto nestas condições, era eu rapazito, experimentei a emoção bárbara do triunfo e exaltação, que acompanham os lances felizes da vida, que é uma banca de azar. Tinha já passado a noite em insomne devaneio com aquele meu empreendimento. De manhã, parti com o lusco-fusco, para prevenir o latrocínio, praticado por alguém mais madrugador ou a raposa que sai de manhã em ameijoada. Lá estava o gordo láparo, desses que os serranos chamam nabucos, inteiriçado com o codo, filado pela suã. 
Esta inebriação, que tem suas raízes no instinto da espécie, senti-a ainda quando deitei abaixo com um tiro a primeira ave. Tinha furtado a espingarda de meu pai e mal conhecia o seu manejo. Pois saltou-me uma noitibó e matei a pobre ave crepuscular, que gosta de frequentar as bermas dos caminhos e se ergue bruscamente, encandeada pela luz dos automóveis. Os seus olhos, batidos pelo revérbero, parecem pequeninas empolas eléctricas. Em repouso o canto tem o seu que do rasgar da chita e a última nota em esmorzo dum canto ao longe. Engoulevent lhe chamam os Franceses e, de facto, mercê das cordas vocais, boca muito rasgada, é cólio, mais que tudo, o que há de mavioso na sua voz. 
Nunca me perdoei aquele assassínio e sempre que nos encontramos na estrada faço uma embardée com o carro para a não calcar. À parte o germinadoiro do remorso póstumo, estas duas proezas instruíram-me do que era a caça, como acto de empolgamento pessoal, com a sua ralé, estímulo e prazer inaudito de prear.
O caçador furtivo, às lebres, arma-lhes laços de arame amarelo, extremamente corredios, nos passeadoiros costumados. Fio que não se enferruja e resiste melhor ao empuxão. A lebre é lasciva e desesperada com o cio que a atrai a quilómetros de distância. Então larga de rota batida, sem resguardo no mundo nocturnal. Também irá de expedição à horta famosa, lá longe, onde a couve troncha é um manjar regalado. Fora disso, dotada de alma poética, bastante abstracta, vai pelas demarcações de leira para leira, como nós vamos pelos Campos Elíseos, gozando a paisagem. É aí que o homem matreiro armou os fios. Se os encontra na sua jornada, basta que meta a cabeça para estar perdida. O leve impulso da marcha provoca a constrição do laço. Ela, mal sente aquele cingidoiro, quer sacudi-lo, e mais se aperta nele. Acontece levar de rojo a pedra de fixação, deixando assim atrás de si a rasteira denunciadora. A geada pela noite velha cai, penetra a terra, arrefece-lhe o sangue, e a lebre adquire a rigidez pétrea de corpo embalsamado. Uma lebre, surpreendida no covil, olhos castanhos oblíquos tão abertos que, parecendo velar, dorme, bigodes dos antigos guardas municipais, orelhas deitadas para o lombo, recalcada sobre si, samarra de pelúcia aleonada, com salpicos negros, é uma linda coisa da madre natura. Fuzilá-la ali é um crime contra a beleza. Um estalido com a língua e ei-la tornada em péla saltante. O caçador que se preza segue-a com a mira e só dispara à altura regulamentar. Um grão na nuca ou na região do coração, calculados segundo os dados empíricos da balística cinegética, será a sorte gloriosa. Mandar-lhe a chumbada ao traseiro, ao sac à plomb, é de pechotes e as mais das vezes para vê-la ir. 
Uma lebre adulta dá carne para uma malhada. Quem for entendido na arte de Brillat Savarin tira dela bifes, almôndegas e um arroz, podendo aproveitar-se-lhe o sangue, que é de comer e morrer por mais. A lebre é omnívora e quando lhe acontece cevar-se nas entranhas dum burro, cavalo, carneiro mortos, a sua carne é saborosíssima. 
Tive a prova. Certo dia, recebo um convite do abade de Peravelha, mais duma vez meu companheiro de monte, para uma arrozada de lebre. Fui ao bródio, de caminho dando o meu tiro, gozando a natureza no facies outonal. A orvalhada da noite perla as fibrilhas nadas dos centeios e os panascais, de coma construída a riscos de guache, e, se lhes acerta o sol, é uma joalheria estranha que se ilumina diante de nossos olhos. Emigraram todas as aves, menos as indígenas, e dessas, as que são palradoras, tal o gaio, grazinam e berram para os soitos por todos os foles, como senhores que são da Honra. O vapor do nosso hálito vai adiante de nós, e o frio da atmosfera traz-nos com a sua impregnação uma agilidade singular. 
O abade tinha lá bom vinho e a cozinheira era de truz. Celebrámos a arrozada e o abade disse, rindo para o professor MeIo, que era anojadiço:
- Matei esta lebre no caminho para Moimenta, numa encosta, antes de chegar à Serrinha. Dias antes um burro quebrara ali uma perna ao passar o pontão. Era do moleiro da Paiva, e, lá porque quisesse tirar-lhe a pele, chamou um samarreiro que começou por abrir-lhe a aorta. Durante dias foi um fartote para os cães da aldeia. Deviam ter vindo ainda os lobos, mas muito de afogadilho, porque o lugar era exposto e susceptível de emboscada. O asno de regular corpulência forneceu lauto festim. Quando ficou só a carcaça e umas farripas de carne entre as vértebras, disse para mim: chegou a vez das lebres. Depois, reduzido o begueiro a um cangalho de calcáreo branco, está ali o cortiço ideal para o primeiro enxame que deserte da colmeia. Noutros tempos, os ossos eram ainda aproveitados para refinar o açúcar, tenho ouvido dizer. Hoje, não sei que mistela lhe associam. Mas, como ia dizendo, o burro estava na fase leporídea e palpitou-me, quando subi o cabeço de dedo no gatilho, que me ia saltar lebre. Como de facto, saltou-me um lebrão, mais ensanguentado que um carniceiro da vila. Foi ele que forneceu o arroz que os meus amigos, inclusive o senhor professor MeIo, acharam excelente. 
Rimos todos. Observei eu:
- O abade leu isso no Pentateuco? 
- Meu menino, o Pentateuco, posto que um código universal, é omisso em matéria de caça. Os Hebreus eram um ramo da família semita, nómada por excelência, e a caça obedecia às contingências do pastoreio. Não havia dissociação.
- Li algures que conheciam 200 receitas quanto a cozinhar o nosso bacalhau... perdão, as codornizes... 
Este abade de Pera Velha era uma das espingardas de fama da serra da Nave. Quando começava a caçar, benzia-se como quando abria o breviário. Não era sôfrego nem precipitado, por isso errar ele um tiro era coisa para se espantarem os homens na Terra e os anjos no Céu. No encalço dum bando de perdizes, torneando à direita e torneando à esquerda, guiado pelo ultracatedrático Piloto, ninguém o excedia. Ao rezar o De profundis à última perdiz do bando, tirava então o alcobaça do bolso e limpava o cachaço que de pelagem crescida e ensilvada parecia um panascal debaixo do orvalho numa manhã de céu sem nuvens.
Este eclesiástico, Padre Sebastião de Magalhães, era o centro do meu grupo cinegético e um caçador a toda a prova. Irrepreensível na sua vida particular, ninguém o superava no bom humor e disposição. Fisicamente era um homem baixo, reforçado de ombros e peito, sobre o gordo, mas duma gordura que estava ali para bom funcionamento dos tendões, e não como uma reserva de adipes.
Às vezes no cerco a uma tapada de urgueiral, com os cães por entre o mato em animada fanfarra, sucedia que o abade, ao embrulhar o kentucki, deixasse escapar o coelho por uma vereda mais escusa. Quando se refazia, já o bicho ia fora de tiro, dando pinotes, a borboletinha branca do rabo a luzir por entre as urzes:
- Agora, abade, atire-lhe com um kyrie-eleison! - exclamava o Dr. Malaquias irreverente e malcriado, tido por ganho às ideias novas.
- Empresta cá a foice e o martelo que ainda o alcanço!
- Vai a mostrar-lhe os dez mandamentos...
- Não será O Capital de Marx, seu bacharel das dúzias!?
Deitavam todos a rir. A caça criava um espírito de liberdade e de despreconcebimento para lá de todas as restrições. Ar livre, aventura, jogo, faculdades fixas num objectivo, e lá se ia a permeabilidade à intolerância.
Havia outro eclesiástico na nossa sociedade, também bom atirador, mas ciumento dos bons tiros dos parceiros. Um dia pegou-se com o MeIo que primava no tiro de chofre:
- Para outra vez, se o senhor persiste em disparar sobre caça que me rompe dos pés e que, em bom direito, me pertence, malho-lhe o tiro de que me privou!
- A caça é de quem lhe atira primeiro. Vá lá dar leis na sacristia.
Passado o repente da inveja, era o melhor dos homens. Tinha sempre cães muito finos, e chamava-se ter perna. Um coelho a chiar no meio, dum bastio, apanhado pelos cães, que com poucos segundos o chamariam ao estreito, e ele a pular por cima de giestas e urgueiras como num steeple-chase para o arrancar à fauce devorante.
Estas caçadas ao coelho em volta da mata, cada espingarda em ponto alto, caladas e atentas, com os cães a fungar e a maticar a espaços, até desfechar em filarmónica pegada de requintas, é um dos números da venatória nortenha. Atrás de um coelho, levantam-se dez; de envolta, não raro, salta a raposa e até o lobo. Mas estes rapaces de grande pé e maior astúcia conhecem de qualquer bosque, que conte, as seitas especiais (seita do latim seco, seguir caminho) e quando os caçadores mal se precatam tocam o bendito lá longe. E era de contar com a graçola, se eram presentes o abade Magalhães e o Dr. Malaquias:
- Ó abade, response-o à Senhora da Esgueira!
Os coelhos, a tanto alarido, tanta celeuma, a tanta parte cantante, acabam paralisados. Um ou outro caçador apanhava-os aos pés, nem beliscados por um grão de chumbo.
Estas são as manchas escuras da caça, como se encontram aliás em tudo.
Outro caçador curioso era o José Nectário, lindo nome celebrado algures por Anatole France. Calçado de tamancos e equipado de espingarda reiuna, o seu tiro fazia roda como o jacto de água dum borrifador (...)
Não gostava de queimar pólvora a pardais e só pelo seguro, que a sua escopeta precisava de muito alimento para cevar-se. Primava pelo ardil e sortes correlativas. O coelho a saltar fora das matas, baldeado pelos cães e ele a romper em alta cantata, ao passo que caminhava para ele:
- Ó ladrãozinho, não te vás embora, espera aí por mim! Vê lá, não me faças a desfeita de dar às de vila Diogo! Olari-Iarilolé e olari-Iarilolá, meu bem!
O pobre bicho habituado ao babaréu dos pastores, rebolantes, assobiantes, cantarolantes, inocentemente faunescos, deixava aproximar o monstro. E só desfechava quando errar o tiro naquele alvo era mais piramidal que errar uma casa. O caçapo passava à bita eterna (ad vitam aeternam) segundo a sua fraseologia, reduzido a grude. O Nectário embrulhava-o num lenço e metia-o no alforge da algibeira, para que se não perdesse cibalho.
Outro, não menos patusco, chamavam-no o senhor Fatalmente. Também de socos, lazarina, polvorinho e chumbeira a tiracolo, era o arreburrinho da malta. Aquela palavra, que acabara por tornar-se alcunha, era um estribilho necessário na sua boca como o diabo na boca de outros. Este confeccionava a pólvora em casa, com carvões de vide, que levantava mais fumo que barrela a lenha verde. Quando no horizonte se erguia subitamente uma nuvem negra sobre os cerros, sabia-se que era o Fatalmente que descarregava o canhão. Tinha olhos de lince e o seu forte era enxergar a caça no covil. Com este, a caça recuava aos primórdios das armas de fogo e do batedor utilitário dos montes. Caçava de encomenda e para adubar a panela.
O bando ia, deste modo, da hammerless, canos de aço, pólvora inglesa, à escopeta de carregar pela boca, canos longos de colubrina. Ás vezes acontecia estes bacamartes, alguns a pedir pederneira, darem um «bigode» - o termo é do calão cinegético - às belas armas de fogo central. Seguia-se grande assuada. O caçador das serras ignora o que seja curialidade e muito menos discreção. Tudo tem que decorrer no plano elementar da franca natureza.
Ao meio-dia a malta procurava a sombra de uma carvalha ou de um castanheiro, se no Outono se prolongavam os calmuços do Verão. Tiravam os cintos, que iam pendurar estudadamente nas vergônteas altas onde não chegavam os cães agatunados e puxavam dos farnéis. Era à hora confraternal do ágape. Fazia-se mesa comum e a cabaça andava à roda, se é que, havendo taverneiro próximo, não vinha o cântaro com o palhete e copos para os mais pestinheiros, o abade, o bacharel, o professor, etc. E entre palitar os dentes e fumar uma cigarrada, rompiam as anedotas.
«O Gil Sapateiro, na sua qualidade de atirador de cara e Ioquaz por índole, era o discursador incontroverso:
- Uma vez - contava ele - acabou-se-me o chumbo. Tinha dado num bando de perdizes, ariscas com o suão, e era vê-las tocar guizos para lá do campo de tiro e desaparecer detrás dos cabeços. Carga a carga, quando dei conta não tinha bago na chumbeira. O diabo foi que a certa altura vejo avançar uma lebre, aos saltinhos, tep-tep, tep-tep, furtada aos cães, de que se ouvia a maticada ao longe. Raio de azar! E agora? Eu estava num pinhal, e ponho-me por vício a escarafunchar nos bolsos quando descubro um prego no meio do cotão. Ora, atiro com ele, um destes pregos caibrais maiores que os que crucificaram a Cristo, para dentro da espingarda e, quando a lebre ia a atravessar, aponto, escondido atrás de uma giesta, disparo... olho, lá estava a lebre, caramba! Uma lebre grande como um chibo. O mais bonito, querem vocês saber, é que ficou cravada pelas orelhas contra um pinheiro. Dava salto que nem corça!...
Os mais imaginativos ficaram de boca aberta admirados e cândidos; os incréus riam. O Quim da Bezerra comentava com ar sisudo:
- Sucedeu uma áfrica parecida com o meu avô Bezerra. Vocês conheceram-no: Tinha uma dentuça que nem um fidalgo. dois dentes eram de oiro. Arranjou-a no Brasil. Pois andava à caça e vê vir uma lebre. Não trazia grão de chumbo e que faz ele? Leva os dedos à boca e arranca um dente chumbado que lhe andava a abanar. Carregou a espingarda e, pumba, atravessou a lebre como se fosse um zagalote.
«O Gil Sapateiro hesitou se devia indignar-se, se rir. Saíu-se pela porta da velhacaria:
- Podeis acreditar que foi verdade. Também lho ouvi contar com estes que a terra há-de comer.
- Pois seria. Agora lá a do prego é que me cheira a escova - dizia um mais sério.
- Assim Deus me salve, como falo verdade. Na caça, amigos, sucedem destas maravilhas. Vós ainda haveis de comer muita rasa de sal para sairdes da cepa torta do laparoto trucidado no tojo e da rola assassinada no galho de um pinheiro.
Façanhas e anedotas com caçadores sucediam-se de cambulhada como as cerejas. Era ainda ele quem contava como, num dia de Verão, voltando da feira de bicicleta, onde fora comprar pez para as linhas, uma lebre se esbarrara com ele. Atirou-lhe com a bola do pez, que se lhe colou no focinho ao que ia de mole. Vai, descia uma segunda, o macho, do outeiro de Santo Antão tão cega com o cio que veio mesmo marrar com a outra e lá ficaram as duas coladas, tão coladinhas, que foi só deitar-lhes os galfarros e pô-las à cinta.
Os cépticos respondiam com vaias e gracejos. Os sisudos benziam-se. Ele jurava por sua alma e a de sua avó que fora assim mesmo. E acabava de ficar tão convicto da patranha forjada, que puxava para o Quim da Bezerra, que se permitia duvidar.»
«- Hoje é que vocemecê há-de vender o Vaivém... 
O Vaivém era um podengo, atravessado de navarro, que pertencia ao Gil e ao Alonso Vendeiro. Andava de cá para lá, da fome para a vontade de comer, do pontapé para a trancada, por isso lhe deram aquele bonito e dinâmico nome. Como buscava muito bem de ferido e trazia à mão, começavam a requestar-lho os caçadores de posses.
- Vendo. Quanto dás por ele? - respondeu Gil para o Bezerra, mais que tudo alanzoeiro.
- Dou-lhe cem paus, mas há-de-me garantir que não furta a caça chumbada para a imolar...
- Bem sabes que não tem os teus vícios. Ficou curado de vez.
- Hum!
- Nem um nem dois!
A receita com que o curei já me tem dado bom dinheirinho a ganhar. Nem uma botica! Ainda a semana passada um cagaréu de Aveiro escarrou vinte escudos...
- Diga lá...
- E baguinho?
- Pago um quartilho... 
- Um quartilho precisavas tu mas era de rosalgar!
- Escusa de estar com panos quentes que eu conheço-lhe a receita como os meus dedos. Não? Eu andava com as vacas no lameiro quando lha vi aplicar ao pobre do Vaivém. Mas é uma grande brutalidade. Vi, homem! Não acredita...? Então oiça. Vossemecê estava em cima da parede quando o coelho se lhe chegou ao campo de tiro. Pum! - Foi-se embora o excomungado! Rai's parta a pólvora que anda falsificada! - desatou vossemecê, enraivecido. Pôs-se a carregar a espingarda e, vai senão quando, ouviu chiar para o meio das giestas. Correu lá... Por modos o Vaivém estava a acabar de engolir a peça...
- Lá isso é verdade. Só tinha as pernas de fora.
- É para que veja que não estou a inventar. O cão fugiu-lhe com o caçapo...
- Caçapo? Era um nabuco de coelho como há muito não pego. Ali, naqueles matagais, a caça é bem medrada.
- Seria, seria um coelhão. O cachorro a correr e vossemecê atrás dele: Vaivém, boca aqui, Vaivém! Larga, Vaivém! Ah, ladrão, que mas pagas! Aqui para nós que ninguém nos ouve, se vossemecê deitasse o caldo aos cães lá lhe não assucediam destas partes. Vossemecê fá-Ios jejuar os quarenta dias da Quaresma por si, pela mulher, pelos quatro filhos, e lá se vai em dieta o ano todo. 
- Safa safado, eu não deitarei de comer aos cães? Se o há primeiro comem eles do que eu! Se o não há, não há. Assim Deus me salve! 
- Adiante que é festa - prosseguiu o Bezerra impiedosamente facecioso. - Vossemecê foi pilhar o Vaivém à beira mesmo do Paiva. O palerma ali deixou-se agarrar. Sujeitou-o pelo cachaço com uma mão, a outra deitou-a aos pernis do coelho, que era quanto se lhe via fora da bocarra. E rompeu a puxar vossemecê para uma banda, ele para a outra. Disse para comigo que o mais provável era o coelho estroncar. Qual, não estroncou. Vossemecê foi-se ao rio sem largar as patas do coelho, com o cão de rastos como por uma trela, e lá teve jeitos de apanhar um gogo mesmo ao fio de água. É assim ou não é assim? 
- É assim. Agora, havia de eu ver que me estavas a espreitar que te mandava uma chumbada pelos olhos. Eu já sabia que andas por cima dos telhados a escogitar o que faz a gente honrada em sua casa.
- Não herdei as suas manhas. O que se enxerga a céu aberto não é segredo. Mas quer ouvir o resto ou não quer?
- Conta, conta lá, homem! - incitaram muitas vozes a um tempo. 
- Pois aí rompe o tio Gil com o gogo a esfregar a goela do animal, zape que zape, ora na água da ribeira ora no coirão do pobre cãozinho, até que ele se pôs a ganir e aos pulos. Mesmo assim não largava o coelho, tal a fomaça que trazia, ou então o coelho tinha-se-lhe agarranchado ao bucho, sabe-se lá com que fateixas. Mas vossemecê teimou com a medicina e afinal o desgraçado lá revessou o coelho inteirinho. Que o pusesse à cinta, não reparei! Pelo menos, não lho vi ajoujar...
- Faltava só essa, Então havia de pôr à cinta o coelho trincado e mastigado!? Tua mãe é que, morrem as pitas, vai pela calada, apanha-as e papa-as e dá-tas a papar. - Vi o cão recessar o coelho, vi vossemecê pegar nele, mas não lho vi pôr à cinta, a verdade manda Deus que se diga.
- Peguei nele a estudar o tiro, maldito do Senhor!
- O Vaivém, coitado, vomitou o coelho, vomitou tudo quanto lá tinha dentro. Não vomitou a cama das tripas porque é cão.
- Mas ficou curado.
- Diz vossemecê que sim e eu acredito. Mas por pouco que não deu o cadilho. Vocês não viram? A ferida na garganta ganhou chostra. Metia nojo. Lá arribou. Aqui tendes a medicina do tio Gil que vale a botica do Heitor de Barrelas! Ah, ah, ah!
- Hás-de ir dar lições aos porcos do Alentejo. A mim não mas dás tu. Esfreguei com um calhau a gola do animal, esfreguei, mas as palavras com que acompanho a operação não as sabes tu. O que vos digo é que melhor mezinha até hoje não se inventou para curar a voracidade dos cães. Podeis deixar o Vaivém com qualquer peça de caça, mesmo esfolada, nem olha para ela. Queres ver? Vaivém!
O podengo veio a abanar o rabo, na máscara de dragão japonês, o sorriso afável mais bonacheirão deste mundo. Chegou-lhe o coelho à venta bicúspide. Virou  a cara para a banda, desdenhoso e superior, mais que bem lembrado.»
O abade, gordo e perna lépida, deitara-se de papo para o ar com o tabaqueiro vermelho em cima da cara por causa das moscas. Não ouvia até fim o rosário das anedotas. A certa altura ressonava. Repercutia aquele órgão de sé a um quilómetro de distância. O Fatalmente secundava-o com solo de pífaro. Estava o concerto armado.
Todos estimavam o abade, e erguiam-se devagarinho para o não acordar. E iam para baixo doutra carvalha jogar a bisca samarreira que o Nectário não dava um passo fora de casa sem trazer o livro das quarenta folhas.
A caça evolui como tudo neste mundo, a começar pelo instinto de conservação e ralé dos animaizinhos do monte. Conheci a perdiz de voo regular e poiso ao sabor do vento ou lançada pelas devesas de pé ligeiro e cabeça artola quando não havia perigo imediato. A noite passava-a com o bando num refolho da encosta entre arbustos, não tão altos que se não divisasse o lombo da raposa, nem tão baixos que a sua presença entreluzisse ao falcão ou peneireiro de olhos de lince, que passeia pela terra, do alto céu, olhos de pirata. Ao presente dormem empoleiradas nas árvores. Dormem iguahnente a sesta ocultas nos ramos dum amieiro ou salgueiro. Quando andam nas searas e buscam o grão perdido ou os insectos que lhe dão gosto, põem sentinelas nas monticulações do terreno, de preferência nos rochedos, se ali os há, ou na parede. Comportam-se em matéria de vigilância como os estorninhos. Sabem o que é uma espingarda, que distinguem perfeitamente da aguilhada do boieiro ou do cajado do pastor. Quem as ensinou? Mas decerto que não tiveram mestre. É a memória da espécie que fixou aquele facto e o inscreveu no instinto como noção prima a atender na defesa. Entre outras circunstâncias da sua reconformação, notei que se espalham em leque, cada uma para seu lado, as vezes que ergue voo ao aproximar-se inimigo. O perdigão, quando a fêmea está no choco, é que não aprendeu outro modo de embalá-la senão erguendo-lhe aquele entusiástico epitalâmio que ecoa vibrantemente na natureza adormecida. Nem tão-pouco sabe melhor solfa quando se trata de escolher noiva.
Jamais, como nos tempos actuais, é perseguida a perdiz e apreciada pelos gastrónomos, que se multiplicaram menos que as espingardas, a sua carne, de tão esquisito sabor. Este tributo é a primeira causa da guerra que lhe movem.
Que é, porventura, a ave mais linda de Portugal, irá jurá-lo quem tenha o sentido das proporções e das cambiantes no jogo das cores. Em atenção àquele seu porte tão donoso, manto dum cinzento-claro com arrebiques ondeados de azul-celeste nas asas e no colo, uma suspeita de vermelho, que se torna carmim-encarniçado no círculo ocular, bico e pés, tocando tintináculos de prata, seria caso de sagrá-la a ave reginal dos nossos montes, e poupá-la para regalo dos olhos. Também elas são insectívoras, pelo menos no estado de perdigotos, e podiam invocar esse serviço prestado aos homens para que as deixassem em paz. Põe-se de parte a alegação que poderiam apresentar no tribunal biológico: a nossa existência para nós não é tão preciosa como a vossa para vós, em tanto que incongruento e absurdo à face do direito que elaborámos para nosso uso e está em vigor. E firmes nas nossas prerrogativas continua a matança anual, nem sempre segundo os ditames da boa ética venatória.
Parece dever considerar-se um postulado que, melhor que a perdiz, sabem os roedores e as feras iludir a guerra que lhes fazem. A lebre, muito antes de chegar o galgo ou o podengo, com o dono, à cauda, de espingarda aperrada, deu fé e pôs-se em França. O mesmo fazem os coelhos que se refugiam nas casamatas subterrâneas ou no tojal intrincado onde facilmente zombam dos cães. 
E não se fala de lobos e raposas que aventam o cerco, rompem por uma porta falsa, e buscam lugar seguro a trinta, quarenta quilómetros de distância, depois de passar senha a seus irmãos. As aparatosas batidas, organizadas a largo prazo como expedições, redundam em acabadíssimos fiascos. Se cai um para amostra, é que se quis suicidar, ou a idade provecta, óbice fatal de todos os viventes, o privou dos meios oportunos de fuga.
Esta evolução, que se dá na inteligência dos animais e se lhes vai radicando no instinto, corresponde aos progressos que houve nas armas de fogo e, análise feita, na arte da caça. Onde está o arcabuz de um cano, reiuna ou lazarina, de carregar pela boca, à orça, com pólvora dos fogueteiros, musgo por bucha, para não ir mais longe? A espingarda de repetição, Mauser ou Remington, é leve como uma pena e comporta cinco cartuchos na recâmara. Não se abate a peça de caça com um tiro, ou dois, quando se errou o primeiro, abate-se a uma rajada de metralhadora.
Salta aos olhos da cara que a arte da caça, dados os recursos novos, tenha feito progressos muito maiores na ofensiva que os bichos monteses na defensiva. E pois que assim é, mercê dos admiráveis inventos dos espingardeiros, das batidas sistemáticas, das coutadas reservadas que fazem o vácuo venatório no agro em redondo, e, depois com batedores e espingardas atentas e bem munidas, dão lugar à hecatomhe sem glória, como a espera às rolas na passagem e o tiro aos pombos de engorda, as espécies extinguir-se-ão mais depressa do que está no ritmo da lei biológica. 
Segundo parece aos sábios, está a caminho de desaparecimento a grande família dos pássaros, e já a sua rarefação é notória de década para década. 
Folheio a Cinegética de Xenofonte e tenho a impressão de que abro a meus olhos um tratado de caça para uso dos caçadores do Norte de Portugal. Falta-lhe o que respeita a espingardaria, mas no resto, cães, batedores, bichos, armadilhas, laços, inclusive os montes e plainos da Ática que lembram a terra beiroa ou minhota com os acidentes tão pronunciados do solo, é tal qual. Mas querem ver como sai sublimada da sua pena a arte da caça? Basta segui-la nas origens. «ApoIo fez presente a Chironte dos apetrechos de caçador para o recompensar pelo seu espírito de justiça. E ele, quando se apercebeu da natureza e importância do dom, deu largas a seu júbilo. Depois, Esculápio, demiurgo, revelou tanta paixão no exercício da caça e tanto carinho e humanidade na maneira com que tratava os animais que recebeu por seu turno, em galardão, a ciência de curar.» Após este preâmbulo de enaltecimento, ensina Xenofonte como se tecem as redes de espécie vária. De passagem vai advertindo que semelhante prática requer qualidades especiais da juventude, agilidade, robustez, coragem a toda a prova, e que se saiba o grego. Que se soubesse o grego, porque implicava elevação o seu conhecimento. Em seguida instrui quanto aos cães. Olhe-se-lhes antes de mais nada para a cabeça. Deve ser pequena e móvel, nervosa e curta, com rugas abaixo da testa, olhos negros e brilhantes, orelhas grandes e delgadas sem pêlo no reverso, e alegres de expressão. Os lebréus - parece que não conhecia os nossos galgos - apenas são bons com pêlos debaixo do queixo. Em concordância também lá diz o ditado: Quando no teu cão o pêlo é só um, vale um pirum; dois, vale uns bois; com três ou mais de três, não o vendas nem o dês.
Querem caçar a lebre? Considerem que o seu rasto é longo no Inverno, dada a lonjura das noites, e curto no Estio pela razão oposta. Nas manhãs de geada não trates mal o teu cão porque não tem faro; o códão condensou em si o odor da caça de alevante. Para dormir, a lebre retrai os quadris dianteiro para debaixo da ilharga; junta à frente as pernas estendidas e repousa o queixal sobre as mãos; as orelhas reclinam-se sobre as omoplatas e servirão de cachecol às partes melindrosas do pescoço. O seu pêlo espesso é o seu melhor cobertor. Agora atenção: se pestaneja, é que está vigilante; se os seus olhos estão fixos e abertos a toda a luz, parecendo que está acordada, é que dorme.
Ensina ainda como se tratam os cães e as crias, se armam os laços, mas na sua didáctica não alcança ao falcão nem ao açor. As armas limitavam-se ao dardo, à faca de mato e à lança para o javali e o lobo.
A Arte da Caça por Diogo F. Fernandes faz parte da história pregressa de Portugal. Falcoeiro de D. Sebastião, acabou ali, com este rei, a altanaria. A fim de exercerem a seu cómodo semelhante actividade, os reis dispunham em torno da capital duma coutada, chamada a Coutada Nova, que seria já velha para D. Sancho. De relance afigura-se que é pequena tal reserva quando em realidade era bem espaçosa e povoadíssima das várias espécies. «E pessoa alguma de qualquer qualidade que não cace, nem mate perdizes com açor, gavião, nem com armadilha, nem a corricão, na coutada nova de Lisboa, que começa da estrada que vai dela para Benfica, e de Benfica a São Marcos, e de São Marcos a Oeiras, e daí direito ao mar. Nem cace, nem mate na dita coutada lebres com galgos, redes, bésta, espingarda, nem com outra alguma armadilha. E quem o contrário fizer, sendo fidalgo, seja preso, e da prisão pague por cada vez cinquenta cruzados. E sendo de menor qualidade, seja preso, e da prisão pague vinte cruzados, e 
percam as aves, cães, e instrumentos com que caçarem, a metade para nossa câmara, e a outra para quem acusar.»
Lê-se isto nas Ordenações, recompiladas em 1603, devendo portanto semelhante legislação vir de longe. Era já aquela a coutada real, campo de façanhas cinegético-judiciais de Pedro, o Cru, que no monte ministrava justiça, e para D. Sebastião, que monteando se exercitava para a guerra. Ursos e cervos brilhavam pela ausência. Em tanto que monarcas, caçavam onde lhes desse a gana. Outras coutadas se haviam eles talhado no reino, mas prevenidas de menores resguardos, não falando no termo de Sintra e Cascais, em Coimbra, Évora, Arraiolos, e mais lugares favoritos, nunca devendo o fabiano caçar ali perdizes ao candeio, com redes de cevadoiro, perdigão cantante ou chamariz.
O nosso autor, a quem não era estranho Xenofonte, celebra também a caça como escola dos «homens ágeis, fortes e robustos, desprezadores das delícias». E vai mesmo mais longe que o grego, tendo porventura em mente o seu real amo: conserva a castidade. «Foi por isso que Diana, para guardar a pureza, fugiu à conversação com os homens e se fez caçadora.»
Assim não admira vermo-lo confessar que, se cometeu compor esta obrinha, é porque o exercício da caça é «sem pecado e passatempo de príncipes, utilíssimo à saúde do corpo e da alma». Diogo Ferreira prelecciona-nos dos preceitos e regras a observar quanto a adestrar aves de rapina para a caça, os esmeros que exigem, qual o seu preço nos países de origem, Dinamarca e Noruega - que os nativos eram fraca fazenda, a maneira de curá-las, se bem que tal matéria constitua um capítulo à parte da cetraria. E fá-lo com tal cópia de noções e conhecimentos que ficamos capacitados que tornar apto um bom açor de modo a ser digno de poisar na alcândora real e um esmerilhão no punho duma princesa - se é que a corte portuguesa criava de tais amazonas - era mais complicado que ordenar um filho padre.
Diogo Fernandes Ferreira foi o último mestre falcoeiro de Portugal. Os Filipes caçavam longe, lá para a Serra Morena. Os fidalgos rezavam ou vinham descoroçoados com a vida do cativeiro em Marrocos. VoItara-se, para nunca mais, uma página na história da cinegética.

Aquilino Ribeiro
Caricatura: Aquilino Ribeiro visto por Rebelo

Carlos Eurico da Costa (1963). A Caça em Portugal, Tomo I. Editorial Estampa

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