13 de dezembro de 2014

Mortandade de coelhos na Ilha Graciosa

O Governo da Região Autónoma dos Açores encerrou a caça a todas as espécies cinegéticas na Ilha Graciosa, Ilha do Grupo Central dos Açores.
Esta medida foi tomada no seguimento de um elevado surto de Hemorrágica nos coelhos bravos que ameaça dizimar quase toda a população desta espécie cinegética  naquela Ilha. Nos últimos dois anos a dimensão demográfica de coelhos na Ilha Graciosa apresentava resultados muito positivos ao ponto de alguns caçadores locais retomarem a caça desta espécie, e, inclusivamente, constituído matilhas de podengos, estando agora desolados com o que se está a passar.
Paira a dúvida na comunidade de caçadores açorianos se esta brutal mortandade de coelhos bravos foi resultado de mão criminosa, que trouxe para a Ilha coelhos infetados pela virose hemorrágica e que rapidamente infetou os coelhos locais, ou, se estamos perante um fenómeno natural que leva a que a hemorrágica apareça ciclicamente nas Ilhas  mediante certas condições climatéricas e outras.
Era muito importante que esta dúvida fosse esclarecida. E quem a pode esclarecer são as Autoridades  Policiais, os Serviços Florestais e a Ciência. 
Os caçadores açorianos de outras Ilhas que já viveram no passado este filme de terror, designadamente os das Ilhas Terceira, Santa Maria e de São Miguel, vivem mais uma vez uma grande angústia que é esta doença viral hemorrágica poder a vir espalhar-se novamente pelo Arquipélago, razão porque todo o cuidado é pouco e temos de estar de olhos bem abertos.
O coelho bravo, praticamente desde os primórdios do povoamento das Ilhas Açorianas, que faz parte da nossa realidade rural e constitui um património natural relevante da nossa história. Acreditamos e defendemos que deve haver um compromisso permanente e equilibrado entre os agricultores e os caçadores, por forma a que os lavradores e os agricultores não sejam prejudicados quando ocorrem episódios de sobre-população de coelhos e sejam  ajudados pelos caçadores e vice-versa quando surgem ameaças à sustentabilidade do nosso coelho bravo.
Os próximos dias vão ser muito importantes neste processo.
Relembro que estão em causa muitos valores fundamentais, como seja, por exemplo, as centenas de cães de caça das nossas matilhas.

Gualter Furtado
13 de Dezembro de 2014

8 de dezembro de 2014

Abertura às Codornizes na Ilha de São Miguel

A caça à codorniz na Ilha de São Miguel abriu no dia 7 de Dezembro de 2014 e prolonga-se até ao último Domingo deste mês. Este ano fiz a abertura com o meu parceiro de caça que é o Celestino e acompanharam-nos os meus dois experientes Épagneul bretões, cujos nomes são a admirável Pipoca (F) e o eficiente Pico (M). Escolhemos os terrenos em função do vento moderado de quadrante nordeste, do tipo de maneio que foi aplicado nos tempos mais recentes, do conhecimento do habitat e dos resultados que obtivemos nas últimos épocas. 
A arma que utilizei foi a Browning Maxus, de calibre 12, com 66 cm de cano, choque cilíndrico e cartuchos de bucha de feltro, Galgo Verde, de 32 gramas e de chumbo 9. 
Normalmente utilizo para caçar a esta espécie cinegética a minha paralela Arrieta, de calibre 20, mas como de seguida íamos caçar aos coelhos com os meus outros cães optei pela primeira que é também uma arma polivalente, leve e com a qual tenho obtido excelentes resultados. 
Só fomos depois caçar aos coelhos, porque dá-me pena ver os meus cães coelheiros não poderem fazer o que mais gostam na vida que é caçar e depois, em São Miguel, os dias que se podem caçar a esta espécie não são muitos. Mesmo assim foram seis horas a andar.
Voltando às codornizes, o dia estava excelente para o trabalho dos cães de parar, proporcionando paragens magníficas e cobros muito bonitos. 
As codornizes foram todas cobradas depois de paradas pelos cães, como deve ser neste tipo de caça.
Longe vão os tempos em que se faziam nesta ilha de São Miguel caçadas de dezenas de codornizes e sem pôr em causa a sustentabilidade da espécie. Era o tempo em que a cultura dominante dos Açores era a produção do trigo ceifado à mão e não existiam os adubos, pesticidas e outros produtos químicos que tanto mal fazem às espécies cinegéticas. Não obstante, as mudanças profundas ocorridas nas ultimas décadas no habitat das Ilhas, nas técnicas e no maneio dos campos, ainda hoje esta autêntica heroína, que é a codorniz açoriana, continua a ser a espécie rainha de muitas Ilhas Açorianas e a proporcionar jornadas de caça inesquecíveis.
Compete aos caçadores açorianos e aos serviços oficiais tudo fazerem para preservar este património cinegético que nasce e vive nestas bonitas Ilhas.



Texto da autoria de Gualter Furtado 
Foto da autoria de Mário Arrifano
As codornizes que constam do quadro de caça, resultam do esforço de três caçadores

10 de outubro de 2014

Abertura às Galinholas nos Açores - 2014

A época da caça às Galinholas de 2014 já abriu nos Açores.
Cada Ilha em que é permitida a caça a esta espécie cinegética nobre tem o seu calendário venatório próprio, possuindo em comum que todos começam no mês de Outubro, mas terminam em Novembro ou Dezembro consoante a Ilha em causa.
A caça à Scolopax rusticola nas Ilhas Açorianas só pode ser exercida aos Domingos, durante um período limitado de horas, e o número de espécies cobradas varia entre duas a três Galinholas por caçador.
O processo de caça só pode ser de salto e com cão de parar.
De referir que as Galinholas nos Açores são sedentárias, exigindo pois uma gestão muito cuidada para garantir a sua sustentabilidade. Os principais inimigos da Galinhola são os predadores (cães abandonados e gatos) e principalmente a mudança do habitat. O meio ambiente onde habita a Galinhola é normalmente de difícil acesso e está intimamente ligado com a flora endémica dos Açores. A sua destruição significa um duro golpe na história e na vida do Arquipélago que ainda é um dos mais puros do Globo.

A título de curiosidade a foto foi tirada exactamente na linha da fronteira mais a Ocidente da Europa.
A "pedra" (Ilhéu de Monchique) que se vê no mar deu origem à expressão portuguesa "emigrar a salto", pois era utilizada no século passado na emigração clandestina para os Estados Unidos da América, aproveitando os navios que passavam ao largo da Ilha das Flores, na travessia do Atlântico.

Texto e foto da autoria de Gualter Furtado

21 de setembro de 2014

Estórias de um não caçador confesso

O primeiro tiro

Vou procurar explicar tintim por tintim, qual a razão porque não sou caçador. Em primeiro lugar porque não fui bem sucedido no primeiro disparo, ocorrido aí pelos quinze anos de idade, já que por mau aconchego da coronha no ombro, assim que disparei, apanhei com ela nas ventas e fiz marcha atrás devido ao coice da espingarda. Foi um baptismo de fogo que me marcou para o resto da vida. Hoje, a minha consciência crítica interroga-se, perguntando:
- Quem te mandou a ti sapateiro, tocar rabecão?
Só no sétimo ano do Liceu, aí pelos dezoito anos, vim a perceber como funcionam a Física e a Matemática relativas ao disparo de uma arma de fogo e em particular, o facto de cada disparo ter associado a ele um recuo da arma, o qual na gíria dos caçadores é conhecido por “coice”. Trata-se de um fenómeno dinâmico que envolve a lei da igualdade da acção e da reacção e a lei da conservação da quantidade de movimento. Face à primeira daquelas leis, a qualquer acção de um corpo sobre outro corresponde uma reacção oposta e de grandeza igual à acção. Daí que à força propulsora que faz mover o chumbo de caça esteja associada uma força oposta associada à arma e daí o “coice”. Por outro lado face à segunda daquelas leis, num sistema isolado, a quantidade de movimento do sistema permanece constante. A quantidade de movimento de um sistema é o produto da massa pela velocidade. No nosso caso, o sistema é a espingarda com um cartucho lá dentro. Antes do disparo, a quantidade de movimento da espingarda com um cartucho lá dentro, é zero. Terá de ser o mesmo depois do disparo. Mas após este, o sistema separou-se em duas partes. Daí que a quantidade de movimento do chumbo expelido seja simétrica da quantidade de movimento da arma disparada.
O “coice” que me atingiu ocorreu no decurso de férias grandes passadas em casa do meu tio paterno, na aldeia da Cunheira, no concelho de Alter do Chão. O meu tio era um exímio caçador e assistiu ao infortúnio com a espingarda que me emprestara para eu dar o meu primeiro tiro. Como era um grande brincalhão, nesse dia à tarde submeteu-me à chacota dos frequentadores da taberna de que era proprietário e eu senti-me vexado com as chalaças do meu tio. Como eu o costumava acompanhar a ele e aos caçadores nos petiscos de fim de tarde, bebendo “traçadinhos”, nessa tarde inverti as proporções e usei mais vinho que pirolito de berlinde. O resultado está à vista. Tive que ir mais cedo para a cama e no outro dia de manhã acordei com a boca a saber-me a bicicletas partidas.

A espera às rolas

Noutro dia daquelas fatídicas férias o meu sempre bem disposto tio, levou-me com ele à caça às rolas na modalidade de “espera”. Para tal ficámos emboscados numa choça construída pelo meu tio com vegetação existente no local. O nosso quartel-general fora implantado pelo meu tio à distância julgada conveniente de uma nascente de água existente no meio do mato e onde as rolas iam beber no pino do calor. Todavia, apesar do engenho e arte do meu tio, tanto na construção da choça como pela experiência de tiro, as rolas tardavam em descer dos ares e não se iam dessedentar ao nascente. Intrigado com o que se estava a passar e que não era habitual, o meu tio saiu para fora da choça para avaliar melhor a situação. A conclusão a que chegou foi rápida. As rolas não se aproximavam da nascente, porque eu com quinze anos de idade, tinha um metro e setenta e cinco de altura e metade das pernas fora da choça, a denunciar a nossa presença às rolas. Nesse dia à tarde, fui outra vez alvo das graçolas do meu tio e das risadas dos caçadores. É que ele disse na taberna:
- Hoje fui às rolas e pela primeira vez apanhei uma “grade”. Sabem porquê? É que o meu sobrinho tem pernas de girafa e espantou as rolas.
Nessa tarde cheguei à conclusão que fora talhado para ser não caçador, pelo que fiquei com a cabeça fria. Bebi os traçadinhos com mais pirolito que vinho, deitei-me à hora normal e no dia seguinte acordei fresco que nem uma alface. Daí que por mim, siga o adágio:
- Quem quer caça vai à praça!

Texto da autoria de Hernâni Matos
Autor do blogue Do Tempo da Outra Senhora 

Aguarela Rola-brava ou Rola-comum, da autoria de Francisco Charneca
Perfil no Facebook Francisco Charneca

20 de setembro de 2014

A Colectânea Literária Cinegética vista por Hernâni Matos

ADVERTÊNCIA

Não sei se vai ocorrer aqui hoje ou não, uma tragédia cinegética ou até mesmo um eventual ecocídio. É que só o Diabo se podia lembrar de me convidar para falar desta admirável colectânea literária cinegética. É que eu nem sequer sou “marteleiro”, mas sim um não caçador confesso.
Se não foi o Diabo, então quem foi? Hum, isto cheira-me a tramóia de Mestre Velho Murtigão, afastado dos seus afazeres rituais nos santuários bacorais de Santo Alêxo da Restauração e com o espírito liberto para fazer das suas. Eu até era capaz de jurar pela alma dos quatro perdigões reais, que a urdidura e a trama desta tragédia cinegética tem a marca inconfundível de Mestre Velho Murtigão. Todavia ele não será o único culpado, já que terá contado com a colaboração de mais dois cúmplices. Um deles foi o Francisco Charneca que terá sido o seu lugar-tenente em toda esta marosca. O outro foi o José Amaro, que foi o mestre-de-cerimónias que com falinhas mansas acabou por ser o responsável final por eu estar aqui hoje.
Foi uma armadilha que me montaram e eu caí na esparrela de ter de falar destas caçadas literárias. Convenci-me desde logo que o convite formulado fora fruto das circunstâncias de não terem arranjado um especialista de serviço. Lá diz o rifão “Quem não tem cão, caça com gato”. E nisto tudo havia gato e o gato era eu, pelo que a minha primeira reacção foi declinar o convite do José Amaro. Aconteceu, porém que li uma dedicatória na contracapa do livro, a qual reza assim: “Aos nossos companheiros, cúmplices e amigos inseparáveis da Caça – os cães”. Foi então que mudei radicalmente de opinião e aceitei o convite do José Amaro. Sabem porquê? Porque aquela dedicatória também me é dirigida, já que “Alentejanos, argarvios e cães de caça, é tudo a mesma raça”. Aceitei pois o desafio, correndo o risco de em vez de falar de caça, fazer uma conversa de caca, o que constituiria uma tragédia verbal superior à ablação da cedilha.
De resto fui convidado, não por ser propriamente um “picareta falante”, mas por ser há muito conhecido como “picareta escrevente”.
Vamos lá ver no que isto vai dar. Que Santo Huberto lá no céu e Diana no Olimpo, tenham piedade de nós.

O PRIMEIRO CAÇADOR

De acordo com o Génesis, o primeiro livro da Bíblia, Adão e Eva foram expulsos do Jardim do Éden, pelo que por necessidade de sobreviver, Adão terá sido o primeiro caçador. Diz-nos a antropologia que de facto, foi a necessidade de sobreviver que levou o homem primitivo a caçar, isto é, a perseguir outras espécies animais, com a finalidade de os abater e consumir na alimentação.
A caça como actividade humana aparece representada nas pinturas e gravuras de grutas como Lascaux, Chauvet ou Altamira. Provavelmente, o homem terá começado por caçar sem armas, às quais terá começado a recorrer em certo estágio da sua evolução. E naturalmente com a evolução do homem, vão evoluindo igualmente as armas usadas na caça. Estas classificam-se em:
-    Armas de arremesso de mão: dardo, azagaia e arpão.
-    Armas de arremesso de engenho: funda, fisga, arco, besta, zarabatana e bumerangue.
-    Armas de choque: cajado, moca, machado, punhal, faca, espada, sabre e lança.
-    Armas de choque e arremesso de mão: machado, punhal e lança.
-   Armas de fogo: mosquete de pederneira, espingarda, pistola, revólver, etc.
Na caça, o homem pode também utilizar armadilhas diversas, tais como gaiolas, laços e redes. Pode igualmente ser auxiliado pelo cavalo em que se faz transportar ou por animais como o cão e o furão, assim como por aves de rapina como o falcão e o açor, usados na caça de altanaria.

O DESESPERO DE ADÃO

Adão deve ter sido o caçador mais feliz de todos os tempos, já que não lhe foi exigida carta de caçador, nem bilhete de identidade ou passaporte, assim como licença de caça, o que pode obrigar a ter cinco tipos de licenças: licença nacional, licença regional, licença de caça para não residentes em território nacional, licença para caça maior e licença para caça a aves aquáticas. Se fosse hoje, para além disso, Adão teria de trazer consigo, recibo comprovativo da detenção de seguro de caça, licença de uso e porte de arma, livrete de manifesto de armas, cartão nacional de identificação dos cães e licença de cão de caça. Estou certo que Adão se passaria dos carretos e diria:
- Arre, porra, que é demais!

A COMUNHÃO COM A NATUREZA

Caçar é uma actividade nobre, regulamentada por lei e existe um “Código de Comportamento do Caçador” elaborado sob os auspícios do Conselho da Europa e adoptado como recomendação n.º 8-17 pelo Comité de Ministros dos Estados Membros em 23 de Setembro de 1985. Divulgado entre nós pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas e Associações de Caçadores com oobjectivo de promover uma ética de caça fundamentada nas realidades de hoje. Reconhece-se que a fauna selvagem deve ser preservada para as gerações presentes e futuras pelo seu valor ecológico, económico, estético, cultural e educativo. Reconhece-se ainda que a caça pode ser considerada como um elemento importante de gestão da fauna selvagem, com a condição de respeitar as necessidades ecológicas das espécies e dos seus equilíbrios biológicos. Todavia, certos tipos de comportamento podem ter repercussões nefastas no futuro de algumas espécies. Daí a importância de que se reveste, os caçadores seguirem o “Código de Comportamento”, já que é imperioso respeitar a fauna silvestre e observar normas éticas e de segurança inerentes ao acto venatório assim como contribuir para uma gestão racional dos recursos cinegéticos.
A caça põe o homem em contacto íntimo e em comunhão com a Natureza. Fazem-se grandes caminhadas e como diria o poeta sevilhano António Machado (1875-1939):
- Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar.
E nas suas andanças por cerros e vales, o caçador acompanhado do seu fiel amigo, o cão, aprende a conhecer a natureza, a interpretá-la e a respeitá-la.

ESTÓRIAS DE CAÇADORES

Para além do prazer proporcionado pela caça em si, há outras alegrias no final das caçadas: a exibição dos troféus de caça, o convívio à boa mesa e as estórias que se contam. Lá diz o rifão que:
- Quem conta um conto, aumenta um ponto.
assim como:
- Mau caçador, bom mentidor.
E também:
- Mentiras de caçadores são as maiores.
Um caçador é naturalmente um bom contador de estórias, umas verdadeiras outras romanceadas ou até mesmo pura ficção, mas todas elas, estórias. As estórias contam-se à mesa depois das caçadas, mas contam-se também no Facebook, rede social onde foi criado um grupo chamado “Arte Cinegética”, destinado à divulgação de obras de Arte Cinegética, tanto no âmbito das Artes Plásticas como da Literatura, Fotografia, Joalharia, Design e Taxidermia. Tal grupo de que também sou membro, tem 781 membros e tem como administradores Francisco Charneca, José Amaro José Joaquim Marques Chaparro e Pedro Miguel Silveira. Foi o grupo “Arte Cinegética” que esteve na origem do Clube Literário Cinegético, pelo qual estou aqui a dar a cara ou se preferirem o focinho, já que estamos a falar de caça.
A primeira publicação do Clube é esta “Colectânea Literária Cinegética” onde caçadores, inevitavelmente contadores de histórias, trocaram a espingarda pela caneta e resolveram passar ao papel, tanto em prosa como em poesia, algumas das estórias que lhe vão na alma.

FALEMOS ENTÃO DO LIVRO

Trata-se de um livro com capa cartonada com as dimensões de 17x24x2 cm, com o peso de 585 gramas e um total de 342 páginas, dividido em 48 partes e profusamente ilustrado. Reúne prosa e poesia de 42 autores-caçadores. a saber: Adriano Palhau, Agostinho Beça, Alexandre Fernandes, Ângelo Sequeira, António Afonso Inácio, António Luiz Pacheco, António Maria Pignatelli, António Pedro Rodrigues, Edgar Cordeiro, Fernando Coutinho, Fernando Manuel Santos Mota, Fernando Mascarenhas Loureiro, Francisco Charneca, Gilberto Fernandes, Gonçalo Roquete, Helena Cotrim, Joaquim Santos, João António Freixo Boavida, João Carlos Sequeira, José Amaro, José António Neves, José Maria da Cunha, José Martins, José Joaquim Marques Chaparro, Júlio Sousa, Luís Barata, Luís Guimarães, Luís Miguel Pereira, Luís Paiva, Manuel Prata de Almeida, Manuel Vassalo, Mestre Velho Murtigão, Miguel Pereira, Paulo Farinha Pereira, Paulo Oliveira, Paulo Santos, Pedro Delgado, Pedro Miguel Silveira, Rodrigo Abreu, Sérgio Paulo Silva. Nelson F. Tomaz e Nuno Sehastião. Os textos têm um elo comum a paixão pela caça que lhes está na massa do sangue.
As ilustrações num total de 191 pertencem a 11 autores. São eles: Alexandre Fernandes, António Charneca, Fernando Farinha Pereira, Francisca Paiva, Francisco Charneca, Francisco Fachadas, Francisco Marques, Inês Valadas Pereira, Luís Barata, Manuel Trovisco e Rita de Mascarenhas Loureiro.
A colectânea foi coordenada por José António Neves e por Francisco Charneca, respectivamente a nível de textos e de ilustrações. A paginação e a capa são também de Francisco Charneca.

O SIMBOLISMO DO LIVRO

Este livro está repleto de simbolismo. Tem como cor dominante, a cor da terra de barro, o mesmo barro com que Deus terá modelado o primeiro homem, o qual por desobediência da sua cara-metade, acabou por ter de expulsar do Paraíso. Por isso, este livro é também uma homenagem a Adão, o primeiro caçador da História da Humanidade.
Para além disso, neste livro os tons de ocre castanho, um dos pigmentos minerais usados na decoração de grutas como as de Lascaux, Altamira e Chevreux, são também uma homenagem, aos artistas rupestres precursores da arte cinegética, que esteve na génese do grupo homónimo do Facebook.

DUAS PALAVRAS

Em “Duas palavras...”, que é como que um ante prefácio, os coordenadores da colectânea dão-nos conhecimento que (e passo a citar):
A generalidade dos autores, a maioria, a publicar pela primeira vez, oriundos da geografia portuguesa, assume galhardamente a sua condição de caçadores que escrevem, devendo ser este livro avaliado essencialmente sob esse prisma. Nas suas diversas histórias, narrativas e crónicas, onde a fantasia, o humor e o vernáculo, tão característicos das nossas tertúlias, temperam a austeridade dos lances, encontraremos a expressão de diferentes idiossincrasias, unidas pelo gosto comum da multidisciplinar prática venatória.
E mais adiante dizem:
Nestas páginas encontraremos ainda múltiplas vivências, tanto no território pátrio como fora dele, onde a crua realidade é omnipresente. Isso permite-nos a percepção clara do arrebatamento que incita ao acto cinegético, da dureza imposta pelo ambiente natural e das palpitações do esforço tenaz, materialização sublime do corolário da vontade e do espírito de sacrifício.
E terminam dizendo:
As ilustrações, embora sejam uma manifestação artística com valor próprio - aliás, de excelente qualidade - combinam-se com a escrita numa simbiose admirável. Alguns dos seus autores, apesar de nâo-caçadores, revelaram, em traços precisos e indeléveis, um esclarecido entendimento da paixão que nos movimenta e dos horizontes que perseguimos.

IN MEMORIAM

Em “In Memoriam…”, os coordenadores da colectânea dão conhecimento de que “Nas montarias peninsulares é honrosa tradição recordar os amigos e companheiros desaparecidos.” Por isso entenderam nesta colectânea “…proceder de igual modo através da evocação de uma figura representativa e consensual devido à singularidade dos seus feitos e à extrema dignidade do comportamento pessoal.”. Trata-se de Mestre José Pardal que segundo nos revelam “Na sua multifacetada experiência personifica o arquétipo do caçador integral e consciente, daí a eleição deste vulto incontornável da nossa cinegética para preitear a memória, dos que, como Ele, nos antecederam ou acompanharam.”

PREFÁCIO

O notável prefácio de Gonçalo Roquette levou-me à conclusão de estar em presença de alguém que é com certeza um grande caçador e dispara igualmente bem com a arma e com a caneta. Ideia que é reforçada pela sugestiva ilustração que acompanha o prefácio. Dele respiguei a seguinte afirmação: “Não há dúvida que as terras da felicidade são os nossos locais de caça. Onde regressamos, religiosamente, para celebrar a vida ali vivida. Assim são os livros como este, não só mas também, uma maneira de caçar.”, bem como esta outra:”Com esse apontamento quero assinalar que a caça é indiscutivelmente um factor de união entre os homens, independentemente da sua opinião política, da religião que professam, da sua raça, do sexo, dos seus bens de fortuna e do seu berço, “Os homens compreendem-se uns aos outros na medida em que os animam as mesmas paixões”. E aqui Roquete cita Stendhal. Parabéns pelo texto. Estou certo que é considerado um privilégio, tê-lo como amigo e ser seu companheiro de caça.

DAS ESTÓRIAS

Das estórias pouco posso dizer. São histórias de caça, em prosa e em verso, com estilos e domínios de escrita diversos, reflexo da experiência cinegética e do imaginário de cada um. Há que lê-las e partilhar com cada um dos autores o relato da sua vivência e da sua imaginação.

POSFÁCIO

O posfácio de Nuno Sebastião, elaborado depois de calcorrear estas páginas de caça, trouxe-lhe à memória o saudoso tempo do terreno livre dos seus tempos de catraio, quando acompanhava o pai. Era o tempo da vida livre e desburocratizada de campos sem tabuletas, tempos que não voltam. E felicita os confrades que em prosa e poesia, decidiram formar jolda e trocarem alazarina pela caneta para nos brindarem com uma lição de ética venatória e bom companheirismo.

TRIBUTO

No final do livro e muito bem, os coordenadores da “Colectânea Literária Cinegética” prestam um tributo aos companheiros e companheiras que ao seu lado celebram com a indispensável benevolência, a sua dedicação à festa da caça.

GLOSSÁRIO

No final do livro é possível consultar um valioso glossário com 436 termos e expressões idiomáticas usadas pelos caçadores. Curiosamente, o significado não é o que pode parecer à primeira vista.
A talhe de foice, destaquei os seguintes termos: Amélias que são pessoas pouco desembaraçadas. Badagaio que é a queda desamparada. Bufar que é expirar com força. Choça que é o abrigo utilizado pelo caçador para se esconder da caça na modalidade de espera. Javardo que é o javali adulto. Jolda que é um grupo organizado de caçadores. Marteleiro que é o caçador que erra tudo a que atira. Picada que é um caminho estreito em terra. Pissadas que são raspanetes e Ponta de fora que é a posição do caçador que na caça às perdizes de salto, orienta a caçada.
Este glossário é decerto um bom ponto de partida para a edição autónoma de um dicionário de termos e expressões idiomáticas usadas pelos caçadores. Fico à espera.

ATÉ QUE ENFIM

Permitam-me que termine parafraseando D. Francisco Manuel de Melo, dizendo: “Da infelicidade da composição, erros de escritura e outras imperfeições de estampa, não há que dizer-vos, vós as vedes, vós as castigais”. E acrescentarei:
- Assim seja, para mal dos meus pecados.
Todavia peço-vos, oh cavaleiros do código antigo, cumpridores de preceitos, romeiros dos santuários de caça, fiéis devotos dos templos da sua degustação, tende piedade de mim!

Texto da autoria de Hernâni Matos, autor do blogue "DO TEMPO DA OUTRA SENHORA", lido pelo próprio, aquando da apresentação do livro, na Casa de Estremoz, no dia 6 de Setembro de 2014

28 de agosto de 2014

Octogésimo aniversário do Senhor Braga dos Anjos

No dia 27 de Agosto de 2014, no bonito Lugar dos Anjos, na Ilha de Santa Maria, o Sr. José Braga (o quarto a partir da direita*) completou 80 anos de vida. Nesta foto só estão caçadores que sempre viram no Senhor Braga um exemplo de homem e caçador a seguir.
A família e os amigos prepararam-lhe nos Anjos uma festa simples mas muito bonita e durante a qual os pratos fortes servidos foram muita gastronomia típica da Ilha de Santa Maria, a amizade, a solidariedade, a caça, os cães de caça, o fado e cantigas ao desafio. 
Marcaram presença muitos familiares e amigos vindos de outras Ilhas dos Açores, do Continente Português, da América e do Canadá.
Caçar com o Senhor Braga na sua bela Ilha de Santa Maria foi sempre uma honra e um privilégio. Muitos Parabéns!


*Da esquerda para a direita:
Manuel Frias, Pedro Miguel Silveira, José Frias, Horácio Moura, António Monteiro, José Braga (Braga dos Anjos), Gualter Furtado, Virgílio Paz Ferreira e Jorge Santos

Texto e fotos de Gualter Furtado

16 de agosto de 2014

Duas estreias a 15 de Agosto de 2014

A Primeira: Liegeoise paralela que os Herdeiros do Senhor António  José Galante me ofereceram.
Esta espingarda de caça Belga tem cerca de 60 anos e é possuidora de uma chumbada simplesmente extraordinária. 
Utilizei cartuchos com chumbo 7, que não ultrapassaram os 30g e carregados a pressões também relativamente baixas.
A Segunda: A minha cachorra, quase Beagle, que se revelou um animal excelente.
Nesta primeira oportunidade de caça a sério,  deu-me a cobrar dois coelhos e ela própria cobrou o seu coelho bravo numa cena de caça destemida. 
Esta jornada desenvolveu-se na Ilha Terceira, na companhia de uns amigos caçadores que conheço há longa data, a que se juntou o Celestino.
Os terrenos eram de uma beleza inigualável já que a Caldeira Guilherme Moniz é simplesmente extraordinária e não merece que se deixem lá os cartuchos vazios, pelo que devem ser recolhidos como mandam as boas práticas do exercício cinegético.
Um realce especial para o cuidado e respeito que devemos  ter com os  imponentes toiros bravos1, que são os Reis daquela paisagem e com os quais nos cruzamos por diversas vezes, acautelando sempre a devida distância.
Finalmente, uma referência para o almoço com as deliciosas alcatras, magistralmente preparadas pelas esposas dos amigos caçadores da Ilha Terceira, só possíveis de degustar nesta Ilha de Jesus Cristo2.

Texto da autoria de Gualter Furtado

Legenda:
1- Autarcas e mordomos da Ilha Terceira estão a recolher documentação para candidatar a Tourada à Corda da Ilha Terceira a património da humanidade.
2- Primeira designação da Ilha Terceira

13 de agosto de 2014

Caço por mim

Caço porque gosto
Pela carne que me proporciona
Rica em proteínas e livre de drogas
Pelo "rocket fuel"
Pela liberdade
Pela natureza
Por mim
Pesco pelos mesmos motivos
Nunca o fiz pelo troféu
Não conto fazê-lo
Não cacei durante um ano
Foi o que resisti
Mais facilmente abdicaria da pesca.

4 de agosto de 2014

A Zebra do Lodge

Há um grande empreendimento turístico no Grupo onde sou responsável pela área agrícola. Apoia-se numa estrutura hoteleira com “bungalows” (um "lodje"), restaurante-bar, piscina, entre outros produtos e serviços de elevada qualidade, e num parque com 20.000 Ha, vedado, onde existem diversos animais soltos e se organizam passeios ditos “safaris”, para sua observação, sendo ainda possível fazer percursos a pé, de btt ou de burro. 
Existe ainda um barco para passeios no mar, dado que o "lodje" fica junto ao rio Coporolo e a uns 40 Km de Benguela.
No Sábado apareceu morta uma zebra… por sinal a mais velha e a guia da manada de cerca de 20 que ali foram reintroduzidas, vindas da África do Sul, 2 anos atrás. Ao que dizem já andava coxa há uns dias, e até a viram deitada… Sábado de manhã estava morta.
Como sempre, a despeito das excelentes intenções, os ecologistas, protectores e amantes do ambiente, amigos dos animais, compenetradíssimos na pegada ecológica e nos seus princípios elevados de conservacionismo aprendido no canal da National Geographic e leituras afins, que são quem quase sempre dirigem estas estruturas, baseados em teorias e nenhum conhecimento prático, na força da sua juventude, colapsam quando há problemas… falta-lhes andar a pé no terreno, ao Sol e à chuva, conhecer as gentes e os animais-mesmo não os animais made in Disney, e falta-lhes uma sensibilidade diferente, mais realista e dura, menos poética sobre a Natureza que é magnífica mas insensível e cruel.
A zebra tinha metido uma pata num laço! Quebrou-o e soltou-se, mas este permaneceu agarrado à perna, num corte circular, largo, além de ter provocado feridas na outra também. Gangrenaram e provocaram a morte do animal, que poderia ter sido eventualmente salvo com uma injecção de antibiótico, se alguém com outro entendimento e percepção das coisas, tivesse agido… debilitada a sua captura e internamento na zona da quarentena não era assim tão difícil.
No entanto chorou-se a morte do animal e até se lamentou que as outras, aflitas e com pena daquela, se mantiveram por ali… coitadas!
No mais do resto… o que fazer? Ninguém sabia…
Bom, primeiro, as zebras não têm pena… elas seguem a zebra mais velha, a mãe de pelos menos duas, que é naturalmente a guia. Se esta se deita e morre, pois ficam desorientadas até perceberem que ela não se levanta mais, então outra toma o lugar daquela, as outras seguem-na e a vida continua!
Depois: O laço parece ser velho… aquela zona antes de ser vedada era muito batida pelos carvoeiros (que armadilham muito) e as pessoas de algumas aldeias da zona caçam com laço.
Porém não se usa cabo de aço novo e sim o que se apanha, normalmente usado, é algo inconclusivo.
Ter sido na pata de trás, sugere acidente e não armadilha posta para isso…
Importa saber onde é que foi o local da captura, pois se foi perto da vedação pode indiciar ter sido acção de caça, passaram vários dias mas será ainda possível descobrir onde foi que ela lutou para se soltar. 
Há que tomar medidas, procurar o local, dar uma volta à vedação para ver se há indícios de esta ter sido pulada ou mesmo cortada. 
Também procurar outros laços… perdidos ou colocados. Se foi acto de caça, abre um precedente que é preciso evitar. Estamos na época seca, a melhor para armadilhar, pois os animais se concentram mais e sabe-se qual o seu caminho para a água dos bebedouros e as comidas, certas e determinadas. 
Há ali em volta gente dispersa e uma pequena aldeia, são pastores, gente do mato, bravia e pouco sensível a “lodjes turísticos” e outras coisas que nem entendem. Vivem do que o mato dá mas podem ser postos deste lado se houver interacção com o soba e com a população nesse sentido, de guardarem até a cerca e impedirem outros, vindos de longe e que agora circulam subindo para o rio na época seca, de fazerem o que sempre fizeram, cortar vedações que lhes vedam o acesso milenar à água e pasto, pôr armadilhas para caçar e comer - aliás dependem mesmo disso. Para quem vive do seu gado, trocando pontualmente um animal por farinha ou sal e panos, do leite e da colheita de mel, deslocando-se em função do pasto espontâneo e da água existente nas nascentes ou rio, um parque turístico para se ir ver animais, com uma piscina para lazer, é algo de transcendente!
A zebra, que podia ter sido salva, foi esfolada e a pele congelada (nem sabiam como a manter) para mandar curtir, nas aldeias de pastores há quem faça esse trabalho e tenho amigos que me tratarão disso. 
A carne, imprópria (outro detalhe…) uma parte serve para os crocodilos, a carcaça arrasta-se para onde seja pasto de chacais, gatos, aves e outra bicheza pois na Natureza nada se perde!
Foi pena! Mas é a dura realidade da vida no mato e em África, apesar das cercas e dos "lodjes", onde há coisas que nunca mudam e com as quais temos de contar e de viver!

Texto e foto da autoria de António Luiz Pacheco

27 de julho de 2014

Por um novo Trilho

A Ilha de Santa Maria não necessita de uma associação de caçadores grande, que reúna um número elevado de praticantes, mas sim de um grupo organizado, coerente e funcional de pessoas esclarecidas, que saiba exactamente o que se pretende, que trabalhe para esse fim em conjunto e que proceda em conformidade.
Que seja capaz de buscar, estabelecer e manter parcerias com as diversas entidades públicas e privadas que se movimentam na mesma esfera de interesses, sejam eles interesses partilhados ou contrários.
Santa Maria necessita de uma entidade que nos represente e, através da qual, possamos agir e participar publicamente.

26 de julho de 2014

Caiu de Podre

A Ilha de Santa Maria não tem associação de caçadores.
Já teve, mas era ineficaz.
Os caçadores, enquanto membros activos da sociedade civil, têm o dever de contribuir para um melhor ambiente e para a sustentabilidade de todas as espécies animais, de investir na sensibilização, na formação em matérias de conservação ambiental, na utilização racional dos recursos cinegéticos, na adopção de medidas e comportamentos de segurança e em de boas práticas no exercício da caça.
Nunca teve a associação de caçadores da Ilha de Santa Maria essa consciência. 
Se a possuiu também nunca a demonstrou.
Uma associação onde era bem mais importante a encomenda de cartuchos e estoura-los, mais não lhe restava do que cair por si mesma e sobre si própria, de podre. 

24 de julho de 2014

O Posicionamento do Caçador Moderno

No início deste novo século nos deparamos com três desafios monumentais, sendo eles provenientes das novas tecnologias aplicadas à caça, a sustentabilidade das espécies e o posicionamento do caçador na sociedade.
Nas linhas que se seguem abordarei precisamente este último, por considerar depender dele a solução dos restantes.
A tarefa não se nos afigura fácil quando, em face da incompreensão a que somos votados, nos recolhemos e fechamos em copas perante uma oposição que se apresenta determinada contra a actividade venatória e nos acusa de egoísmo e da prática de alegados comportamentos marginais, através duma estratégia que, na falta de reacção, os faz ganhar adeptos e influência.
Temos a responsabilidade de alterar esta tendência e o devemos fazer participando activamente na comunidade, pois se hoje nos encontramos em clara desvantagem foi precisamente porque abdicamos dessa prática algures no percurso.
A verdade é que num determinado momento nos distanciamos da sociedade, a qual, por via desse fosso e auxílio dos delatores, deixou de nos reconhecer e acabou por esquecer o mérito da nossa contribuição.
Nestas condições pouco ou nada temos recebido para além da indiferença, da incompreensão e da rejeição.
Podemos começar por identificar nas forças vivas mais próximas, sobretudo nas freguesias e nos concelhos onde caçamos, interesses comuns e procurando executa-los em conjunto, com o objectivo de criar parcerias duradouras.
Não bastam as boas ideias, que até existem e que se vão praticando um pouco por todo o país, mas há que enquadra-las nos planos de gestão e de desenvolvimento dos municípios.
Será no estabelecimento e na administração desses interesses comuns, que se deve posicionar o novo caçador, para recuperar e reforçar os laços perdidos.
Relativamente à sustentabilidade da fauna selvagem, receia-se a contínua deterioração dos habitats e o contínuo decréscimo das populações animais, porém depositam-se esperanças na descoberta de tratamentos eficazes para a diversidade das moléstias que afectam as espécies cinegéticas. Por outro lado teremos acesso a tecnologias de elevada precisão, adaptada aos mecanismos de pontaria e munições, em que o sucesso do disparo deixará de depender da habilidade ou da destreza do atirador desvirtuando totalmente a essência da caça.
Os novos tempos estão aí e preparam-se para nos apresentar desafios de tão grande complexidade que nos farão debater profundamente princípios e procedimentos que temos agora por imutáveis.
Cabe-nos, enquanto caçadores, a responsabilidade de analisar tudo isto e de promover uma séria discussão interna, num processo que deverá ser dinâmico e atento aos constantes desenvolvimentos, mas sempre no firme pressuposto da defesa e integração do caçador português na sociedade do séc. XXI.

Retrato da autoria de Francisco Charneca

19 de julho de 2014

A Componente Social da Caça

É sempre um prazer enorme responder a um desafio do amigo Vítor Palmilha.
Participar mais uma vez com um testemunho de caça em mais uma edição da Feira de Caça, Pesca e do Mundo Rural do Algarve é um privilégio. Uma iniciativa deste género merece todo o nosso apoio e carinho, já que envolve uma componente cultural, social e económica, muito importante. É também com eventos como este que se teima em manter vivo o Mundo da caça no nosso País.
A caça desde sempre faz parte da vida da humanidade neste Planeta. É verdade que as suas funções tem evoluído e mesmo se transformado, mas mesmo nos dias de hoje quando praticada com ética, com segurança, com desportivismo, com amizade, respeito pela natureza e dos animais, mantém intacta a sua génese e é um ato de cultura.
Numa fase da vida e da história muito complicada e pautada por múltiplas dificuldades vale a pena fazermos todos os esforços e até mesmo sacrifícios para não deixarmos morrer esta nossa paixão por tudo o que envolve a cinegética. Os cães, os furões, as armas, os amigos, as espécies cinegéticas, as provas de Santo Huberto, a gastronomia, a partilha de lances e emoções, a descoberta do meio ambiente, as recordações e as feiras de caça, são elementos complementares da arte de saber e viver a caça. De todos estes aspetos relevo hoje a gastronomia cinegética como elemento aglutinador da componente social da caça. A gastronomia cinegética é amiga da Paz.
Quando me é apresentado um caçador “novo”, com o objetivo de caçarmos juntos, uma das primeiras perguntas que lhe faço, é se tem ou não tem navalha, porque a resposta quase sempre é bem definidora se estou na presença de um caçador que valoriza a componente social da caça ou não. Razão porque faço-me sempre acompanhar pelo menos de duas navalhas, na esperança de converter mesmo aqueles que nunca pensaram que este simples gesto de ter ou não ter navalha pode significar uma linha que separa um caçador de um “ caçador “ de ocasião . Nunca é tarde para nos convertermos.
Antes e durante o ato cinegético devemos preparar e exercer estes dois momentos com a maior sobriedade, paixão e rigor, mas uma jornada de caça nunca atinge o seu expoente máximo se não for seguida de um momento de descontração,confraternização e degustação de parte do produto da nossa caçaria, e isto, é verdade na Ilha do Pico, em Beja ou nos longínquos terrenos do Departamento de Flores no Uruguai. Este ritual tão simples de partilharmos uma perna de coelho ou de perdiz grelhada, temperada apenas com sal e regada com um fio de azeite no meio do campo à sombra de um cedro do mato ou de uma azinheira é um património que perpetua a caça e a amizade. Mas os que não tem possibilidade de viver este momento alto da caça, resta-lhes sempre a alternativa de comungar com os familiares e amigos o produto da caça no seu Clube, num Restaurante, ou, mesmo na sua casa. E que maravilhas de pratos de gastronomia de caça menor ou caça maior se podem fazer hoje com as diferentes espécies cinegéticas. Desde o pequeno tordo ou a narceja até ao javali podem-se confeccionar pratos dos mais simples até aos mais sofisticados e dignos da alta cozinha mundial e dos mais reputados cozinheiros (Chefs).
Tenho tido a felicidade e sempre acompanhado dos meus amigos cães, de ter cobrado as mais variadas espécies cinegéticas e em todas elas descubro um potencial gastronómico fantástico , a sua degustação é invariavelmente um momento alto e complementar do ato da caça. Recentemente disponibilizei um conjunto variado de espécies cinegéticas para um jantar de amigos. A organização esteve a cargo do Gastrónomo Mor dos Açores que é o António Cavaco, que por sua vez desafiou alguns dos mais conhecidos Chefs dos Açores para confeccionarem pratos originais tendo como elemento principal a caça e o resultado foi deveras extraordinário e revelador de um elevado potencial económico.
Termino publicando a receita de um arroz de Pomba-da-Rocha que também pode ser confeccionado com pombos bravos, como forma de incentivo aos amigos caçadores e suas companheiras a descobrirem este Mundo fantástico da gastronomia cinegética.

ARROZ DE POMBA DA ROCHA ( 2 pessoas )

Duas pombas
Chouriço
Bacon
Cebola
Alho
Ramo de cheiros
Sal e pimenta
Chávena e meia de arroz carolino
Depois de amanhadas e lavadas cozem-se as pombas juntamente com o chouriço, bacon, meia cebola, dente de alho, pimenta em grão, dois cravinhos, ramo de cheiros e meia pimenta da terra salgada.
Depois de cozidas desossam-se as pombas e corta-se o chouriço em rodelas e o bacon em fatias e reserva-se. Entretanto num tacho coloca-se uma colher de azeite e um dente de alho e assim que o azeite está quente adicionam-se os miúdos das pombas deixando cozinhar por um bocado, adicionando depois a cebola picada, que se deixa refogar, juntando a seguir o arroz, que se envolve no refogado, o caldo quente, de cozer as pombas, a carne das mesmas desfiada e deixa-se cozer.
Quando está quase pronto deita-se numa travessa de ir ao forno, decora-se com o chouriço, o bacon e azeitonas e vai corar ao forno acabando de cozer.
Gualter Furtado, Caçador Açoriano

Julho de 2014

Texto e foto da autoria de Gualter Furtado
Artigo que escrito a pedido do Vítor Palmilha para ser publicado na Revista integrada na edição deste ano da Feira de Caça, Pesca e do Mundo Rural do Algarve.

16 de julho de 2014

Há Dias Assim

Nas caçadas solitárias é aprazível não ter qualquer obrigatoriedade de seguir por aqui ou por ali, no decurso da jornada; progredir a nosso bel-prazer, parar ou andar, falar em voz alta com os cães, com as peças de caça, ou com as fragas e as árvores. Não ter que interromper o acto, alimentarmo-nos frugalmente com o que a Natureza dá: azedas, amoras e medronhos silvestres; amêndoas, figos, uvas, maçãs, pêras, marmelos, nabos, tomates e outros frutos esquecidos; castanhas, laranjas, tangerinas, honestamente roubadas, mas sem exageros e sem desrespeitar a propriedade alheia. Tudo isto complementado com um indispensável naco de pão, queijo duro e uma fatia de presunto ou uma linguiça. 
Caçar sozinho permite ainda seguir os bandos de perdizes com grande eficiência, dar as voltas de modo a surpreendê-las em silêncio, quando supõem estar resguardadas, sem ter que manter a regularidade de andamento e a equidistância numa linha de caçadores. O caçador solitário precisa, porém, de caminhar muito mais, passar numa encosta e noutra, ziguezaguear, ir a todos os cantinhos... elas podem estar em qualquer um... mas tendo sempre em atenção que de manhã estarão, provavelmente, na cara do Sol.
É certo que também tem os seus inconvenientes. À medida que avança a idade do caçador, reduzem a sua resistência física, os reflexos, o espírito temerário e a ousadia, sendo então necessário e mais conveniente o trabalho de equipa. Pode até ocorrer um qualquer e indesejável acidente, um mal-estar ou quebranto físico que deixe o caçador vulnerável e em situação difícil.
Apesar dos riscos, não deixa de ser interessante, vez por outra, a sensação de liberdade e evasão, o privilégio destes sublimes momentos, quase ascéticos, em paz com o mundo e em harmonia com o nosso íntimo, sentindo-nos parte integrante do território em que nos movimentamos e tendo presente a eloquência das opiniões de alguns grandes pensadores:
(...) «Tudo isto é especialmente verdade na que, a meu juízo, constitui a forma não mais elevada e gloriosa mas mais íntima e clave superior da caça: a caça solitária com cão e espingarda. Nela o homem descansa dos homens, em conviver com os quais consiste o seu habitual viver. Dizia Nietzsche que, se não nos sentimos tão à vontade no meio da natureza, é porque esta não tem opinião sobre nós. E, com efeito, um dos ingredientes deliciosos da caça solitária é que ela interrompe a constante pressão que sobre nós exercem as opiniões e os preconceitos acerca da nossa pessoa.» (...)
Ortega y Gasset - “Sobre a Caça e os Touros”
Naquele Domingo de Dezembro, o gelo na estrada e o nevoeiro não aconselhavam a que viajasse sozinho muito cedo. Os quatro graus negativos obrigaram-no a ser despachado nas operações de meter a tralha e as cadelas no carro. Com todos os cuidados na condução, demorou mais de uma hora a chegar. A camada de gelo, nalguns pontos dos caminhos de terra batida, parecia neve.
Estacionou no largo de uma curva do caminho, num lugar abrigado, com o interessante e sugestivo nome de CÉU...!
Olhou em volta e, respirando fundo o ar frio, pensou no fascínio de tanta luz… aquele azul intenso… o bem que faz ao corpo e ao espírito. Mentalmente, delineou os primeiros passos da caçada, o resto lá se haveria de ver!
Como normalmente faz, em caçadas solitárias, num pequeno saco de pano, pendurado na cartucheira para não estorvar muito, juntou o necessário e suficiente para aguentar a jornada: três “sandochas”, meia-dúzia de figos secos e uns pedaços de marmelada caseira cortada em cubos, embrulhados em prata, infalíveis quando a fraqueza começa a fazer tremer as pernas e a provocar as temidas cãibras. Água pura e límpida está à disposição nalguns ribeiros ou nascentes e há também imensas amendoeiras com os saborosos e nutritivos frutos abandonados, em ladeiras de tal modo íngremes que deixou de ser compensadora a sua colheita, mas que teimosamente permanecem lá, até que um dia o mato as abafe por completo…
− Vamos! Disse para as duas perdigueiras, que reagiram cabriolando entusiasmadas e soprando pelas narinas, em sinal de plena concordância. É a sua maneira de falar!
Atacou a encosta, com calma, subindo em ziguezague, no terreno lavrado de uma jovem plantação com sobreiros e cedros, esperando que “elas” estivessem próximas do topo, depenicando no chão aquecido pelo sol. Lá estavam, de facto! Numa dobra mais abrigada, um bando de oito perdizes mostrou o cor-de-laranja da parte inferior das asas e do abdómen, brilhando em todo o seu esplendor com aquela luz. Divinal! Das duas que voaram para a direita, uma embrulhou ao primeiro e único tiro. Ainda poderia ter tentado o “doble”, mas da forma como levantaram, rasteiras e de baixo para cima, seria pouco aconselhável.
− Lira, busca lá…
Não tinha ficado no ponto da queda, andara uns bons vinte metros e quando as cadelas lhe pegaram no rasto bateu ligeiramente a asa despertando-lhes a atenção. A Lira cobrou-a à vista, vindo trazê-la com o típico orgulho que os perdigueiros exibem nestas situações. Afagou-lhe a cabeça e agradeceu, murmurando palavras que só os caçadores e os seus cães conhecem. Depois de ver que se tratava de um belíssimo perdigão, mostrou-o à mais nova, a Rola, Perdigueiro Português, com “pergaminhos” de raça, oferecida por um amigo caçador havia pouco tempo. Não deixou que o abocanhasse. Seria perda de tempo, uma vez que já tinha demonstrado, logo no primeiro dia, as suas capacidades para o “ofício”, cobrando com grande competência antes da Lira ter tempo de se aproximar.
Ficou sem perceber para o­nde tinha ido o resto do bando, por se terem ocultado na dobra do terreno, portanto havia que bater bem todos aqueles cantinhos e cabeços. Assim fez durante mais de uma hora, mas sem as voltar a ver.
Esquecendo de vez aquele bando, mudando de sítio, passou a Ribeira de St.ª Marinha, procurando pôr os pés nos pedregulhos que parecem ali colocados para esse efeito, mas não conseguindo evitar molhar ligeiramente as botas. Porra! …as cadelas parece que escolhem sempre os pontos a montante propositadamente para sujar a água. Afugentou-as e pousou a espingarda, com o cartucho da câmara atravessado na janela (não fosse o diabo tecê-las!), aliviando-se da cartucheira e da camisola. Deixou que a corrente devolvesse a limpidez, para se debruçar e sorver, com prazer, uns bons golos de água fria, repondo assim a quantidade perdida… é que já tinha suado bem!
Contemplou a imensidão dos lombos daqueles montes, imóveis e imutáveis… aquilo assusta e não é fácil vencer semelhantes desníveis, mas as perdizes estão lá certamente! Conhece bem os nomes dos lugares, dos ribeiros, dos marcos geodésicos e as curvas de nível, de tanto consultar a carta militar da zona.
Antes de avançar, enquanto olhava e pensava que iria mesmo “imergir na paisagem”, mastigou alguns figos secos e um cubo de marmelada para ganhar energia.
Optou por subir pelo caminho que contorna o olival plantado em pequenos patamares no “canado”, o­nde na Quinta-feira passada as tinha falhado com três tiros. A geada virgem, entranhada na terra, revelava ruidosamente a sua presença, tornando impossível passar despercebido naquele profundo e absoluto silêncio.
Naturalmente, reagindo ao ruído, salta uma do meio do olival, sorrateira e quase sem deixar perceber o bater das asas. Uns passos mais e levanta o bando, com cerca de meia-dúzia. Viu-as meterem-se ribeiro acima e pareceu-lhe que teriam pousado próximo, junto à linha de água. Procurando fazer o mínimo barulho possível, seguiu na mesma pelo caminho até chegar ao fim. Já sabia que terminava ali e depois era mato denso, impenetrável. De relance, admirou as altas paredes de xisto, construídas noutros tempos para segurar a terra que sustenta as pequenas oliveiras e amendoeiras, passando, no único ponto o­nde era possível, o estreito ribeiro, encaixado também ele entre paredes altas. Subindo um pouco, do outro lado, mais limpo, com amendoeiras sem folhas, seria possível vê-las melhor. Segurava a espingarda com as duas mãos e seguia, ganhando altura, à espera de ouvir o levante. Sempre eram seis ou sete perdizes! Podiam saltar a todo o momento… mas não saltaram…! Apesar de as cadelas sinalizarem nitidamente que tinham estado ali, nada se mexeu nem quebrou o silêncio, a não ser a água saltitante do ribeiro.
Deduzindo que poderiam ter ido “a pés” ladeira acima, decidiu enfrentar a subida com determinação – que é como quem diz “com a faca nos dentes” – e começou a caminhar em ziguezagues longos, de modo a aproveitar a vantagem das curvas de nível e fazendo pausas de o­nde em o­nde, para controlar a respiração. Estava a subir da cota de 300 metros para cerca de 600 m. Parou no bico de uma fraga que permitia ver para os dois lados, fez barulho e atirou pedras para o mato rasteiro e ralo. Nada…! Apenas alguns tordos levantaram ruidosamente. o­nde se teriam metido? Devem ter ficado lá em baixo, no matagal mais cerrado, pensou.
Era meio-dia. Sentou-se e, comendo algo mais para recuperar forças, admirava a beleza esmagadora da paisagem, a imensidão de montes e vales que se seguem e sobrepõem... Sentindo-se invadido por uma suave sensação de paz e tranquilidade, naquela atitude puramente contemplativa, evocou o bom sabor das reflexões de Ortega y Gasset:
(…) «Não é, pois, andar e andar, subir penhascos, descer valas e barrancos, silenciar os passos, ter paciência nas esperas, ter pontaria, o que mais essencialmente tem que fazer o caçador, senão – quem o diria! – a menos musculosa das operações: olhar!» (…)
Caminhando, sempre a subir, pelo quase imperceptível carreiro de pé-posto, estrategicamente implantado na linha de festo, não se sabe bem por quem, nem há quanto tempo, nem por quanto tempo…, ia observando as típicas fezes verde-e-branco, frescas e de dimensão considerável, revelando a passagem recente de aves grandes. É a querença delas! Na cumeada podem observar todos os inimigos, para um lado e para o outro, sem serem facilmente surpreendidas.
A Lira inicia um périplo de avanços, paragens e viragens à esquerda e à direita, até que, decidida, apontando, começa a “guiar”, mantendo-se mais ou menos na mesma cota numa mancha de troviscos, estevas e arçãs. Procurou acompanhá-la, mas ia em passo um pouco rápido e foi-se distanciando mais do que deveria, seguida de perto pela Rola.
Como era de esperar, fora do alcance de tiro, um pequeno bando, voando a rasar as pontas dos arbustos, escapou para cima.
− Já lá vamos…! É o terceiro bando, disse em voz alta.
Retomou o trajecto inicial, para mais rapidamente chegar até ao sítio o­nde um secreto palpite lhe dizia que teriam pousado e apanhá-las por cima; sozinho seria inútil tentar segui-las a direito.
Na beira do caminho de terra batida que faz o limite da zona de caça, cinco espojadouros recentes, bem marcados.
Vieram-lhe à memória alguns bons lances ali vividos quando, há mais de quinze anos, aqueles eucaliptos estavam a ser plantados. Num dia, duas perdizes abatidas quase de seguida, no limpo da plantação, agora com árvores desta altura, que permitem às perdizes escaparem sem lhes podermos pôr a vista em cima, quanto mais o chumbo!
Depois de uns momentos de hesitação, decide avançar pelo aceiro que contorna a mancha de eucaliptos, continuando a reparar nos indícios de presença das ariscas e bravias galiformes.
Subia, agora numa parte de inclinação bastante acentuada, zona sombria o­nde a geada não tinha derretido e era difícil caminhar por estar sempre a escorregar. Um bando de pombos-torcazes levanta, com estrondo, saindo de uma carrasqueira o­nde certamente se estavam a empanturrar de bolota. Encarou a arma, mas preferiu não disparar na expectativa das perdizes … e ainda bem! Saltam duas… um único tiro, rápido e instintivo, à que se lançava ladeira abaixo com toda a velocidade. Cai rebolando desamparada para o fundo do canado, do lado oposto, perdendo-se no meio do matagal. Não houve tempo para o segundo tiro, a outra ficou logo encoberta pelas giestas e estevas mais altas. Em simultâneo, o bando de torcazes estava de regresso voando na sua direcção, perfeitamente ao alcance de tiro e baralhando as cadelas que se fixaram naqueles vultos esvoaçantes, sem perceberem ainda o que tinha acontecido. Preocupado em cobrar rapidamente a perdiz tombada nem sequer disparou, mas podia tê-lo feito… − Busca Lira! Vai lá, Rola…
Como doidas, corriam em círculos e olhavam para todo o lado, aguardando ordens mais precisas. Viu que tinha de as levar ao sítio e avançou na direcção da queda, vencendo um pequeno silvado na linha de água. Atirou uma pedra para o local o­nde lhe parecia que deveria ter caído e as cadelas, prontamente, dirigiram-se para lá. Pegando no rasto, a Lira começou a descer seguida da Rola até que deixou de as ver. Em algum tempo (nestas situações nunca se sabe exactamente quanto, mas parece sempre muito…!) regressavam e trazia a perdiz a cadela mais velha, claro!
Entregou-lha, abanando-se toda de contentamento e disputando afagos com a Rola pelo meio de pouco sérias rosnadelas.
− Lindas, é assim mesmo…!
Havia que continuar a jornada. Seguiu a corta-mato até apanhar novamente o aceiro e chegar ao ponto mais alto, com cerca de 600 metros, no lugar chamado Albreves. Ao longe, do lado Norte, via o carro e, a Noroeste, a Capa Longa o­nde, tanto nesta época, como em muitas outras, até já é difícil lembrar os incontáveis lances extraordinários! Rodando o corpo, podia ver as Centeeiras, a Quinta da Boavista e quase que o mundo todo…
O instinto dizia-lhe que o resto do bando devia estar mais à frente e o melhor era continuar pelo aceiro que contornava os eucaliptos.
Não tinham decorrido dez minutos quando a Lira “marra” demoradamente, apontando para o lado de baixo. Estava de tal modo “pregada” que o deixou passar para a frente sem se mexer. A Rola dava também sinais de sentir a peça de caça. O ponto o­nde se encontrava era o ideal; dali via bem para baixo, só que, do lado esquerdo, havia um grande maciço de carrasqueiras. Parou, passando a vista pelos poucos pedaços de terreno visíveis no matagal denso e pôs-se em guarda, com a espingarda bem segura, os sentidos totalmente alerta, esperando o levante, quase deixando de respirar e olhando para todos os pontos possíveis, não esquecendo que, por vezes, os cães apontam numa direcção e as perdizes escapam silenciosas, peonando sorrateiramente no sentido oposto.
Impossível avaliar quanto tempo durou aquilo! Certo é que, com a ordem apenas sussurrada, a Lira dá uma fiada e mete-se no matagal fazendo saltar uma única perdiz, com enorme estardalhaço, “picada” de perto, mas que ficou de imediato encoberta pelas carrasqueiras. Até parece que planeiam bem para que lados hão-de levantar antes de o fazerem!!! De facto, o mais lógico seria ter voado em frente, para baixo, mas não, a “lógica” delas é outra…
Com a arma bem encarada, esperou-a à esquerda, depois de passar as carrasqueiras e o tiro, pouco certeiro, fê-la baixar, mas não cair à vista. Percebendo bem que ia d’asa e poderia ter pousado no meio dos eucaliptos que, por sorte, ali eram mais ralos e com menos folhagem, chamou as cadelas e procurou conduzi-las rapidamente até ao caminho da linha de cumeada, esperando que pegassem no rasto. Não pegaram, apesar de as ter entusiasmado bem com as palavras do costume. Voltou atrás, ao sítio o­nde tinha disparado, para referenciar melhor a direcção da trajectória, marcando as extremidades da moita de carrasqueiras mais altas do outro lado do caminho e avançou para lá rapidamente. Viu a Lira fazer dois rodopios no chão limpo do caminho e, decidida, entrar naquele “mar” de estevas e giestas. Procurando segui-la para lhe dar ânimo, caso fosse necessário, embrenhou-se também pelo matagal até ser humanamente impossível romper e deixou de a ver ou ouvir…
No meio das altas estevas, que impediam a visibilidade para qualquer lado, com a Rola aos pés, permaneceu imóvel, tentando ouvir a cadela. Sem resultado… Ficou assim, em silêncio, porque chamá-la poderia estragar tudo, durante dez minutos, quinze, meia-hora…? Não se sabe! Mais uma vez foi muito tempo, uma eternidade!
Por fim, começou a sentir o marulhar da vegetação seca e a respiração ofegante da cadela. Pensou: se vem a arfar, não traz a perdiz…!? Ei-la… sem nada!?!
− Então, Lira? O­nde está…? Será possível…?
Os anos de experiência nestas andanças levaram-no a observar melhor a língua-de-palmo que trazia fora da boca e vendo que tinha uma pena no canto dos lábios, outra na língua, vociferando, dirigiu-lhe os melhores impropérios que conhece para estas situações, ordenando-lhe com firmeza:
− Lira, deixaste-a, vai lá buscá-la…!
Desapareceu novamente e ficou sem a ouvir mais uns intermináveis minutos, até que… aí vem ela, desta vez sem arfar, silenciosa, com a perdiz toda molhada da saliva e o dorso depenado.
− Dá cá, linda… então isto faz-se!?
Pareceu-lhe que se ria, quando lha entregou, gozando com a situação e como se dissesse:
− Então, pensavas que não a tinha cobrado? Era só p’ra brincar…!
Cismando no episódio, deduziu que teria regressado ao sítio o­nde iniciou a busca e, não o vendo lá, terá ido procurá-lo deixando a peça no caminho. Seria…??? Nunca poderá sabê-lo, até porque nem viu exactamente para o­nde foi quando retomou a busca.
Tinha atingido o limite de perdizes estabelecido na Zona de Caça. Regressou, em passo rápido, descendo a direito pelo mato rasteiro até ao Vale das Talvas, em direcção à ribeira, nem sequer dando importância às repetidas paragens das cadelas, que certamente sentiam emanações de alguma perdiz pregada.
Na vida de um caçador de perdizes, há dias assim, atípicos… três tiros, três perdizes, das autênticas; lances fantásticos que ficarão gravados na memória, daqueles que hão-de assaltar o pensamento, quando menos se esperar, recorrentes, ao longo de muitos anos…

Texto de Agostinho Beça
Perdizes (aguarela), de Francisco Charneca

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