O primeiro tiro
Vou procurar explicar tintim por tintim, qual a razão porque
não sou caçador. Em primeiro lugar porque não fui bem sucedido no primeiro
disparo, ocorrido aí pelos quinze anos de idade, já que por mau aconchego da
coronha no ombro, assim que disparei, apanhei com ela nas ventas e fiz marcha
atrás devido ao coice da espingarda. Foi um baptismo de fogo que me marcou para
o resto da vida. Hoje, a minha consciência crítica interroga-se, perguntando:
- Quem te mandou a ti sapateiro, tocar rabecão?
Só no sétimo ano do Liceu, aí pelos dezoito anos, vim a
perceber como funcionam a Física e a Matemática relativas ao disparo de uma
arma de fogo e em particular, o facto de cada disparo ter associado a ele um
recuo da arma, o qual na gíria dos caçadores é conhecido por “coice”. Trata-se
de um fenómeno dinâmico que envolve a lei da igualdade da acção e da reacção e
a lei da conservação da quantidade de movimento. Face à primeira daquelas leis,
a qualquer acção de um corpo sobre outro corresponde uma reacção oposta e de grandeza
igual à acção. Daí que à força propulsora que faz mover o chumbo de caça esteja
associada uma força oposta associada à arma e daí o “coice”. Por outro lado
face à segunda daquelas leis, num sistema isolado, a quantidade de movimento do
sistema permanece constante. A quantidade de movimento de um sistema é o
produto da massa pela velocidade. No nosso caso, o sistema é a espingarda com
um cartucho lá dentro. Antes do disparo, a quantidade de movimento da
espingarda com um cartucho lá dentro, é zero. Terá de ser o mesmo depois do
disparo. Mas após este, o sistema separou-se em duas partes. Daí que a
quantidade de movimento do chumbo expelido seja simétrica da quantidade de
movimento da arma disparada.
O “coice” que me atingiu ocorreu no decurso de férias grandes
passadas em casa do meu tio paterno, na aldeia da Cunheira, no concelho de
Alter do Chão. O meu tio era um exímio caçador e assistiu ao infortúnio com a
espingarda que me emprestara para eu dar o meu primeiro tiro. Como era um
grande brincalhão, nesse dia à tarde submeteu-me à chacota dos frequentadores
da taberna de que era proprietário e eu senti-me vexado com as chalaças do meu
tio. Como eu o costumava acompanhar a ele e aos caçadores nos petiscos de fim
de tarde, bebendo “traçadinhos”, nessa tarde inverti as proporções e usei mais
vinho que pirolito de berlinde. O resultado está à vista. Tive que ir mais cedo
para a cama e no outro dia de manhã acordei com a boca a saber-me a bicicletas
partidas.
A espera às rolas
Noutro dia daquelas fatídicas férias o meu sempre bem
disposto tio, levou-me com ele à caça às rolas na modalidade de “espera”. Para
tal ficámos emboscados numa choça construída pelo meu tio com vegetação
existente no local. O nosso quartel-general fora implantado pelo meu tio à distância
julgada conveniente de uma nascente de água existente no meio do mato e onde as
rolas iam beber no pino do calor. Todavia, apesar do engenho e arte do meu tio,
tanto na construção da choça como pela experiência de tiro, as rolas tardavam
em descer dos ares e não se iam dessedentar ao nascente. Intrigado com o que se
estava a passar e que não era habitual, o meu tio saiu para fora da choça para
avaliar melhor a situação. A conclusão a que chegou foi rápida. As rolas não se
aproximavam da nascente, porque eu com quinze anos de idade, tinha um metro e
setenta e cinco de altura e metade das pernas fora da choça, a denunciar a
nossa presença às rolas. Nesse dia à tarde, fui outra vez alvo das graçolas do
meu tio e das risadas dos caçadores. É que ele disse na taberna:
- Hoje fui às rolas e pela primeira vez apanhei uma “grade”.
Sabem porquê? É que o meu sobrinho tem pernas de girafa e espantou as rolas.
Nessa tarde cheguei à conclusão que fora talhado para ser
não caçador, pelo que fiquei com a cabeça fria. Bebi os traçadinhos com mais
pirolito que vinho, deitei-me à hora normal e no dia seguinte acordei fresco
que nem uma alface. Daí que por mim, siga o adágio:
- Quem quer caça vai à praça!
Texto da autoria de Hernâni Matos
Autor do blogue Do Tempo da Outra Senhora
Aguarela Rola-brava ou Rola-comum, da autoria de Francisco Charneca
Perfil no Facebook Francisco Charneca