21 de setembro de 2014

Estórias de um não caçador confesso

O primeiro tiro

Vou procurar explicar tintim por tintim, qual a razão porque não sou caçador. Em primeiro lugar porque não fui bem sucedido no primeiro disparo, ocorrido aí pelos quinze anos de idade, já que por mau aconchego da coronha no ombro, assim que disparei, apanhei com ela nas ventas e fiz marcha atrás devido ao coice da espingarda. Foi um baptismo de fogo que me marcou para o resto da vida. Hoje, a minha consciência crítica interroga-se, perguntando:
- Quem te mandou a ti sapateiro, tocar rabecão?
Só no sétimo ano do Liceu, aí pelos dezoito anos, vim a perceber como funcionam a Física e a Matemática relativas ao disparo de uma arma de fogo e em particular, o facto de cada disparo ter associado a ele um recuo da arma, o qual na gíria dos caçadores é conhecido por “coice”. Trata-se de um fenómeno dinâmico que envolve a lei da igualdade da acção e da reacção e a lei da conservação da quantidade de movimento. Face à primeira daquelas leis, a qualquer acção de um corpo sobre outro corresponde uma reacção oposta e de grandeza igual à acção. Daí que à força propulsora que faz mover o chumbo de caça esteja associada uma força oposta associada à arma e daí o “coice”. Por outro lado face à segunda daquelas leis, num sistema isolado, a quantidade de movimento do sistema permanece constante. A quantidade de movimento de um sistema é o produto da massa pela velocidade. No nosso caso, o sistema é a espingarda com um cartucho lá dentro. Antes do disparo, a quantidade de movimento da espingarda com um cartucho lá dentro, é zero. Terá de ser o mesmo depois do disparo. Mas após este, o sistema separou-se em duas partes. Daí que a quantidade de movimento do chumbo expelido seja simétrica da quantidade de movimento da arma disparada.
O “coice” que me atingiu ocorreu no decurso de férias grandes passadas em casa do meu tio paterno, na aldeia da Cunheira, no concelho de Alter do Chão. O meu tio era um exímio caçador e assistiu ao infortúnio com a espingarda que me emprestara para eu dar o meu primeiro tiro. Como era um grande brincalhão, nesse dia à tarde submeteu-me à chacota dos frequentadores da taberna de que era proprietário e eu senti-me vexado com as chalaças do meu tio. Como eu o costumava acompanhar a ele e aos caçadores nos petiscos de fim de tarde, bebendo “traçadinhos”, nessa tarde inverti as proporções e usei mais vinho que pirolito de berlinde. O resultado está à vista. Tive que ir mais cedo para a cama e no outro dia de manhã acordei com a boca a saber-me a bicicletas partidas.

A espera às rolas

Noutro dia daquelas fatídicas férias o meu sempre bem disposto tio, levou-me com ele à caça às rolas na modalidade de “espera”. Para tal ficámos emboscados numa choça construída pelo meu tio com vegetação existente no local. O nosso quartel-general fora implantado pelo meu tio à distância julgada conveniente de uma nascente de água existente no meio do mato e onde as rolas iam beber no pino do calor. Todavia, apesar do engenho e arte do meu tio, tanto na construção da choça como pela experiência de tiro, as rolas tardavam em descer dos ares e não se iam dessedentar ao nascente. Intrigado com o que se estava a passar e que não era habitual, o meu tio saiu para fora da choça para avaliar melhor a situação. A conclusão a que chegou foi rápida. As rolas não se aproximavam da nascente, porque eu com quinze anos de idade, tinha um metro e setenta e cinco de altura e metade das pernas fora da choça, a denunciar a nossa presença às rolas. Nesse dia à tarde, fui outra vez alvo das graçolas do meu tio e das risadas dos caçadores. É que ele disse na taberna:
- Hoje fui às rolas e pela primeira vez apanhei uma “grade”. Sabem porquê? É que o meu sobrinho tem pernas de girafa e espantou as rolas.
Nessa tarde cheguei à conclusão que fora talhado para ser não caçador, pelo que fiquei com a cabeça fria. Bebi os traçadinhos com mais pirolito que vinho, deitei-me à hora normal e no dia seguinte acordei fresco que nem uma alface. Daí que por mim, siga o adágio:
- Quem quer caça vai à praça!

Texto da autoria de Hernâni Matos
Autor do blogue Do Tempo da Outra Senhora 

Aguarela Rola-brava ou Rola-comum, da autoria de Francisco Charneca
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