"Meu rapaz, como vais começar a vida de «graúdo», quero
deixar-te uns tantos conselhos que nunca mais deves esquecer:
- Quando acordares com dor de barriga, «alivia-te»!
- Quando te fores deitar com gripe, bebe vinho quente com mel (é cá uma bomba,
que mata tudo)!
- Quando te doerem os rins, ficares com azia ou estiveres a ver mal, vai ao «Doutor»!
- Quando andares ralado por causa das mulheres, chateado com a falta de dinheiro
ou «f...» com os problemas da vida ... vai à caça!"
Foi com estas “deixas” que o Tio Justo, irmão da minha bisavó materna se
despediu de mim (já lá vão quarenta e cinco anos), aquando da passagem pela
aldeia da minha mãe (Avelelas de Monforte) a caminho de Chaves, para onde eu
ia frequentar o Liceu.
A leitura que fiz então com os meus dez anos de idade a estes comentários,
limitou-se a que caçar era bom, e que o velho tinha muita piada principalmente
no que dizia respeito aos palavrões.
Escusado será dizer que este meu antepassado era caçador, e ao que se dizia;
...que caçador!
Justo de nome mas justiceiro como o diabo para com a caça, embora já com quase
oitenta, comenta-se que não perdoava ainda às perdizes mais distraídas.
Oriundo de uma família de agricultores medianamente abastada, solteirão e bom
vivã, pouco mais teria feito na vida do que namorar e caçar, motivo porque se
tornou um especialista em ambas as coisas.
Poucos anos mais tarde, e na verdade não pelos conselhos que ele me havia dado
mas por motivos naturalmente bem mais profundos, comecei a calcorrear os montes
à procura das perdizes com uma velha “espanhola” calibre dezasseis sem registo,
quer chovesse, nevasse ou fizesse sol, quer andasse aborrecido, alegre ou
“assim assim”.
Direi por conseguinte que a minha paixão pela caça (que veio cedo e para
ficar), se não deveu propriamente a influências ou tradições familiares, mas
sim a um encantamento natural que foi progredindo com as várias experiências
vividas desde a meninice.
No entanto, e à medida que os anos foram decorrendo, o caçar passou para além
da paixão que ainda me move, a ser também e principalmente, um extraordinário
“escape”na minha agitada vida pessoal e profissional.
Esta nova forma de encarar a caça, fez-me trazer à memória aquele chorrilho do
meu querido familiar e recordar com alguma admiração na sabedoria implícita nas
suas palavras.
De tal modo, que por diversas vezes nestes últimos anos não resisti ao impulso
de retransmitir a muito amigos e conhecidos, não aquela receita do meu Tio para
as diversas doenças de ordem física, mas “aquele outro” eficaz “medicamento”
para os males que nos afectam muitas vezes o juízo, dizendo-lhes: vão à caça.
Além deste meu tio-bisavô, na família a caçar (décadas de sessenta e setenta),
conheci também o meu tio-avô Justino, irmão mais novo da minha avó, e o “Ti”
Paulino, um cunhado do meu avô.
O primeiro, empresário bem sucedido na cidade do Porto, raro era o mês na época
de caça que não viesse passar uma semana às terras de Monforte e Rio Livre
(sobranceiras ao seu lindo castelo), sempre acompanhado de vários amigos
citadinos com o intuito de matarem o vício e levarem o carro cheio de perdizes.
Caçador exímio, que para além de combinar inteligência no caçar com um vasto
conhecimento dos terrenos da sua infância, também se fazia acompanhar de boas
espingardas e bons cartuchos, condições mais que suficientes nessa época de
fartura para o seu grande e reconhecido sucesso.
O segundo, típico homem de Aldeia, agricultor mas também caçador de costado e
meio, era um transgressor inveterado que tinha uma característica muito especial
e curiosa: sempre que o início da época de caça começava, ele limpava muito bem
a sua velha KRUPP, oleava-a, e de seguida pendurava-a na sala de jantar até ao
novo início do “defeso”.
Como o caçar para ele era também um meio de subsistência, a concorrência nos
montes e as solicitações para acompanhar e ensinar lugares querençudos aos
“fidalgos” da cidade (inclusive o meu Tio Justino, seu parente) não lhe
agradava por aí além, facto pelo qual em todos as épocas de caça e à laia de
justificação, inventava uns problemazinhos nas “cruzes”.
Lembro-me também de outros episódios relacionados com ele, que na altura sem
entender muito bem achava engraçados, mas que retratam bem o significado que
tinham nessa época alguns abates de caça junto do povo rural:
Quando o Ti Paulino cobrava uma raposa ou um gato bravo, pendurava-os à porta
de casa durante uma horas (mais tarde esfolava-os para vender as peles) e a
população ia-lhe lá oferecer cestos com ovos e várias aves (particularmente
galinhas e perus).
Quando por sua vez abatia um lobo, as oferendas eram ainda muito mais
interessantes e valiosas, pois até ovelhas incluíam.
Recordo ainda bem o dia, um daqueles gélidos de Inverno (talvez Janeiro ou
Fevereiro de 1965) em que ele trouxe consigo carregado numa mula um lobo de
proporções enormes, que lhe rendeu oito ovelhas (talvez o número de pastores da
localidade), bem como o comentário que fez então entre dentes sobre um “fulano
de tal” a quem o lobo já havia morto mais de quinze das suas cerca de cento e
vinte ovelhas: o sovina compensou-me apenas com uma ovelha, como os mais
pobres, porque não faz contas a que este abate me custou mais de um mês de
vigia e várias cabaças de aguardente para aguentar o frio.
Mas, também caçador embora de características diferentes e que não posso deixar
de referir, foi o meu pai, cujo prazer da caça consistia nas esperas aos tordos
na época fria de Inverno debaixo das oliveiras, e às rolas no verão, em tardes
muito quentes, junto dos charcos dos ribeiros.
Em miúdo acompanhei-o diversas vezes com o intuito de lhe apanhar a caça e
levar a escalfeta (apetrecho que consistia numa espécie de braseira ambulante)
que púnhamos debaixo dos pés para aguentar o frio dos dias nevoeirentos,
enquanto aguardávamos os tordos em habilidosos esconderijos junto dos olivais.
A caça tradicional aos coelhos e perdizes nunca o entusiasmou, e eu por outro
lado, também não soube ter na altura engenho suficiente para o convencer.
De qualquer modo, as dificuldades legais e as progressivas exigências para praticar
a caça no nosso País, bem cedo o levaram a desistir, até mesmo dessas suas pequenas
digressões à passarada.
Um dia ainda matou um coelho numa espera aos tordos, e dizia com o seu ar
brincalhão que sempre o caracterizou:
- “Matei-o a cagar”; e de facto matou, e eu testemunhei, mas
quem estava a fazer as necessidades não era o coelho...
A última vez que me recordo ele ter vontade de dar uns tiros, já lá vão cerca
de quinze anos, e foi num soalheiro Domingo depois de almoço em época de
tordos.
Para minha surpresa agarrou na espingarda e cartucheira que eu deixara ao fundo
das escadas, e disse-me que no entre-tempo de eu tomar o café, ele iria até ao
fundo da “vila” esperar uns torditos e matar saudades.
Cerca de uma hora depois quando por lá apareci, confidenciou-me ele muito
aborrecido e intrigado: não percebo nada disto, já pousaram aqui três que
apontei bem, deixaram um grande depenadouro, mas nem os vi fugir nem os vi
cair.
Dou-me então conta que na cartucheira que repousava ao seu lado faltavam os
cartuchos da borda, lugar aonde era costume eu, bem como qualquer caçador nessa
época, guardar de reserva para os “imprevistos” três ou quatro zagalotes.
A explicação para o tão insólito fenómeno, ficou de imediato esclarecida.
Os tordos nem caiam nem fugiam, pois à distância a que ele lhe havia atirado, e
com tão áspera carga, eles haviam sido pura e simplesmente desintegrados.
Deste modo e com grande pena minha, acabei por não desfrutar da sua companhia
nem da de qualquer outro familiar próximo no decurso destes quarenta anos de
caçadas memoráveis, tão recheadas de bons convívios, grandes amizades e
inesquecíveis momentos.
A caça, para quem não saiba, proporciona também e essencialmente estas coisas...
No entanto, companhia e da boa, foi coisa que nunca me faltou neste meu
grandioso entretimento.
Bem hajam àqueles que foram ao longo destes muitos anos os meus companheiros de
caça, e que sempre recordarei com prazer e estima:
- Na menor: Ti Ernesto, Alfredo, Ilídio, Armando e Totó Felgueiras, Toninho Grangeia,
Eduardo, Zé Augusto e João Antunes;
- Na maior: Luis Lamas, Zé Castro, Dulcínio Grangeia, Mosqueiro, Zé Maria e Zé
da Quinta.
Todos eles (dois já desaparecidos), uma segunda família, e que continuam a
dizer “presente” (mesmo os que estão no além) em cada nova época que se inicia.
Mas depois deste divagar pelo tempo e pelas memórias, dou-me conta que a noite
vai longa, que os olhos começam a piscar e a lareira já se apagou.
Como são horas de restaurar, pois a vida activa ainda se impõe, vou terminar
com um “até sempre” companheiros caçadores, mas também recordando-vos: se o dia
de amanhã correr menos bem, seja por motivos monetários, problemas de amor ou
desavenças laborais, reagi com calma e pensai positivo, pois no fim-de-semana
que se aproxima... vamos à caça!
Texto da autoria de Luís Augusto de Melo Guimarães
Foto do Tio Justo (1931)