22 de maio de 2014

Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer

Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer é constituído pela reedição da obra de Diocleciano Fernandes das Neves “Itinerário de uma Viagem à Caça dos Elefantes”, anotada e seguida de estudos biográficos sobre o autor e sobre João Albasini por Ilídio Rocha. Trata-se, segundo expressão deste último, da história de «um dos não poucos personagens lendários da presença portuguesa em África. Incómodo, porque não pactuou com a corrupção das tropas e funcionários, com o tráfico «oficializado» de escravos, com o negócio da guerra (…) Amigo de Muzila e de seu filho Gungunhana, teve destes as honras militares da hora do enterro. Escritor, viajante, caçador, agricultor, diplomata, foi dos que em África mudaram realmente a história, deixando marcas nas profundas memórias da sua gente».
Nascido a 09 de Julho de 1829, faleceu em Sauíne, no dia 24 de Fevereiro de 1883.
Repousam os seus restos mortais nas margens sul do rio Limpopo, a poucos quilómetros da foz.
A edição original do livro de Diocleciano Fernandes das Neves foi publicada em 1878, pela Typographia Universal de Thomaz Quintino Antunes, Impressor da Casa Real.
Deixo-vos o prefácio de Bulhão Pato:
“Há-de haver dez para onze anos que me foi apresentado o autor deste livro. Diocleciano Fernandes das Neves. Tinha ele então trinta e seis para trinta e sete anos. Homem de estatura elevada, ombros largos, braços e mãos vigorosos, olhos penetrantes e muito vivos, maçãs-do-rosto proeminentes, boca enérgica; uma ruga perpendicular e profunda partindo de entre as sobrancelhas e morrendo a meio da testa; voz forte, mas sonora e agradável. Nos gestos e nos meneios uma grande decisão. Ouvido apuradíssimo. Sentia-se ao seu aspecto e às suas primeiras palavras que estava ali um homem afeito a correr aventuras e a contrastar grandes perigos.
Assim era.
Diocleciano Fernandes das Neves saíra da vila onde nascera, a Figueira da Foz, aos vinte e cinco anos de idade, tomando o rumo da África Oriental.
Moço, forte, inteligente, decidido, ia tratar da vida. Chegando a Lourenço Marques, o mais belo porto de quantos descobriram pelas Áfricas e pelas Índias os nossos extraordinários aventureiros dos séculos XV e XVI, embrenhou-se por aqueles desertos fecundíssimos, tão amenos nalguns pontos, que parecem estar a pedir um idílio à Mosco; noutros, terríveis e rugidores, cenário digno das Euménides e do Prometeu de Esquilo.
Quantas vezes não tiveram a morte diante dos olhos! Ora nas azagaias dos negros selvagens, ora nos cornos dos búfalos, ora nas garras dos leões… e até pela fome!
Esperanças de regressar à pátria com alguns haveres, abraçar a família, amigos; mostrar ufania o fruto de tantas fadigas, poder ser útil a alguém, numa palavra, mocidade, valor, grande sangue-frio, punham peito a todas as agressões e obstáculos e venciam. Passados treze anos, Diocleciano Fernandes das Neves voltou a Portugal. Foi quando eu o conheci e me deliciei muitas vezes ouvindo-lhe narrar episódios da sua vida, sem pretensões retóricas, com graça natural, frase correntia e pitoresca.
Tornou ainda uma vez à África e demorou-se três anos. O ano passado, estando eu na minha casa, vieram dizer-me que me procurava o autor deste livro. Corri a recebê-lo. Aqueles três anos tinham alterado muito as suas feições; mas um dos sentidos é que estava perdido. Ao chegar pela segunda vez a Lourenço Marques, para liquidar os seus haveres, apanhou uma forte constipação, teve a desgraça de cair nas mãos de um curandeiro empírico, que estava ali exercendo as funções de médico e em resultado do tratamento ficou aleijado.
Foi a Paris, a Londres, à Alemanha, a toda a parte, mas em parte alguma achou remédio ao seu mal.
Diocleciano Fernandes das Neves trazia-me o seu livro perguntando-me com a maior ingenuidade se, depois de muito emendado, valeria a pena publicá-lo.
Quando tornou a procurar-me já eu tinha lido a sua obra e aconselhei-o que a publicasse tal qual estava, com o seu dizer familiar, singelo, despretensioso, incorrecto; mas cheio de vida, de movimento, de verdade.
Tem grande interesse para naturais e até para estrangeiros. O autor viveu largos anos na África Oriental e os seus negócios levaram-no a tratar intimamente com aquela gente, a conhecer a sua diplomacia, que também a tem, apesar de viverem aquelas solidões bravias, entre os animais ferozes e tendo a cada passo sanguinolentas refregas com os seus semelhantes, porventura, alguns deles mais carniceiros ainda do que as próprias bestas-feras. Observou tudo com extremo bom senso e muitos dos seus reparos devem ser atendidos pelos homens do governo que tenham a prudência de tratar a sério da nossa grande questão, a questão de África.
Há alguns quadros neste livro que são realmente admiráveis. O leão faminto; a chuva; aquela heroica defesa dos holandeses contra a horda do truculento Dingane; a casa do fantasma, cena digna de figurar entre os deliciosos episódios humorísticos de A. Dumas, à parte o primor do estilo; toda a obra, a meu ver, tem o maior interesse. Oxalá que, em breve, o autor publique outra neste género que já tem quase concluída. No entanto estou seguro que o público há-de apreciar devidamente este volume. Fechando esta breve notícia, escrita ao correr da pena, por mim dou os meus sinceros parabéns a Diocleciano Fernandes das Neves pelo seu trabalho.
Janeiro, 27 de 1878” (pp. 13-14)

Diocleciano Fernandes das Neves e Ilídio Rocha (1987). Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer. Publicações Dom Quixote, Lda.

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