Das Terras do Império
Vátua às Praças da República Boer é constituído
pela reedição da obra de Diocleciano Fernandes das Neves “Itinerário de uma
Viagem à Caça dos Elefantes”, anotada e seguida de estudos biográficos sobre o
autor e sobre João Albasini por Ilídio Rocha. Trata-se, segundo expressão deste
último, da história de «um dos não poucos personagens lendários da presença
portuguesa em África. Incómodo, porque não pactuou com a corrupção das tropas e
funcionários, com o tráfico «oficializado» de escravos, com o negócio da guerra
(…) Amigo de Muzila e de seu filho Gungunhana, teve destes as honras militares
da hora do enterro. Escritor, viajante, caçador, agricultor, diplomata, foi dos
que em África mudaram realmente a história, deixando marcas nas profundas
memórias da sua gente».
Nascido a 09 de Julho
de 1829, faleceu em Sauíne, no dia 24 de Fevereiro de 1883.
Repousam os seus restos
mortais nas margens sul do rio Limpopo, a poucos quilómetros da foz.
A edição original do
livro de Diocleciano Fernandes das Neves foi publicada em 1878, pela
Typographia Universal de Thomaz Quintino Antunes, Impressor da Casa Real.
Deixo-vos o prefácio de
Bulhão Pato:
“Há-de haver dez para
onze anos que me foi apresentado o autor deste livro. Diocleciano Fernandes das
Neves. Tinha ele então trinta e seis para trinta e sete anos. Homem de estatura
elevada, ombros largos, braços e mãos vigorosos, olhos penetrantes e muito vivos,
maçãs-do-rosto proeminentes, boca enérgica; uma ruga perpendicular e profunda
partindo de entre as sobrancelhas e morrendo a meio da testa; voz forte, mas
sonora e agradável. Nos gestos e nos meneios uma grande decisão. Ouvido
apuradíssimo. Sentia-se ao seu aspecto e às suas primeiras palavras que estava
ali um homem afeito a correr aventuras e a contrastar grandes perigos.
Assim era.
Diocleciano Fernandes
das Neves saíra da vila onde nascera, a Figueira da Foz, aos vinte e cinco anos
de idade, tomando o rumo da África Oriental.
Moço, forte,
inteligente, decidido, ia tratar da vida. Chegando a Lourenço Marques, o mais
belo porto de quantos descobriram pelas Áfricas e pelas Índias os nossos extraordinários
aventureiros dos séculos XV e XVI, embrenhou-se por aqueles desertos fecundíssimos,
tão amenos nalguns pontos, que parecem estar a pedir um idílio à Mosco;
noutros, terríveis e rugidores, cenário digno das Euménides e do Prometeu de
Esquilo.
Quantas vezes não
tiveram a morte diante dos olhos! Ora nas azagaias dos negros selvagens, ora
nos cornos dos búfalos, ora nas garras dos leões… e até pela fome!
Esperanças de regressar
à pátria com alguns haveres, abraçar a família, amigos; mostrar ufania o fruto
de tantas fadigas, poder ser útil a alguém, numa palavra, mocidade, valor,
grande sangue-frio, punham peito a todas as agressões e obstáculos e venciam.
Passados treze anos, Diocleciano Fernandes das Neves voltou a Portugal. Foi
quando eu o conheci e me deliciei muitas vezes ouvindo-lhe narrar episódios da
sua vida, sem pretensões retóricas, com graça natural, frase correntia e
pitoresca.
Tornou ainda uma vez à África
e demorou-se três anos. O ano passado, estando eu na minha casa, vieram dizer-me
que me procurava o autor deste livro. Corri a recebê-lo. Aqueles três anos
tinham alterado muito as suas feições; mas um dos sentidos é que estava
perdido. Ao chegar pela segunda vez a Lourenço Marques, para liquidar os seus
haveres, apanhou uma forte constipação, teve a desgraça de cair nas mãos de um
curandeiro empírico, que estava ali exercendo as funções de médico e em
resultado do tratamento ficou aleijado.
Foi a Paris, a Londres,
à Alemanha, a toda a parte, mas em parte alguma achou remédio ao seu mal.
Diocleciano Fernandes
das Neves trazia-me o seu livro perguntando-me com a maior ingenuidade se,
depois de muito emendado, valeria a pena publicá-lo.
Quando tornou a
procurar-me já eu tinha lido a sua obra e aconselhei-o que a publicasse tal
qual estava, com o seu dizer familiar, singelo, despretensioso, incorrecto; mas
cheio de vida, de movimento, de verdade.
Tem grande interesse
para naturais e até para estrangeiros. O autor viveu largos anos na África Oriental
e os seus negócios levaram-no a tratar intimamente com aquela gente, a conhecer
a sua diplomacia, que também a tem, apesar de viverem aquelas solidões bravias,
entre os animais ferozes e tendo a cada passo sanguinolentas refregas com os
seus semelhantes, porventura, alguns deles mais carniceiros ainda do que as próprias
bestas-feras. Observou tudo com extremo bom senso e muitos dos seus reparos
devem ser atendidos pelos homens do governo que tenham a prudência de tratar a
sério da nossa grande questão, a questão de África.
Há alguns quadros neste
livro que são realmente admiráveis. O leão faminto; a chuva; aquela heroica defesa
dos holandeses contra a horda do truculento Dingane; a casa do fantasma, cena
digna de figurar entre os deliciosos episódios humorísticos de A. Dumas, à
parte o primor do estilo; toda a obra, a meu ver, tem o maior interesse. Oxalá
que, em breve, o autor publique outra neste género que já tem quase concluída.
No entanto estou seguro que o público há-de apreciar devidamente este volume. Fechando
esta breve notícia, escrita ao correr da pena, por mim dou os meus sinceros
parabéns a Diocleciano Fernandes das Neves pelo seu trabalho.
Janeiro, 27 de 1878” (pp. 13-14)
Diocleciano Fernandes
das Neves e Ilídio Rocha (1987). Das Terras do Império Vátua às Praças da República
Boer. Publicações Dom Quixote, Lda.