“África Vivida - Memórias de um Caçador de Elefantes”,
de João Teixeira de Vasconcelos, irmão do consagrado Teixeira de Pascoaes, é, na
verdade, dois livros num só: o “Memórias de um Caçador de Elefantes”, com primeira
edição em 1924, e o “África Vivida”. Saiu ainda uma terceira impressão na década de noventa, mas de
todas será esta a mais valorizada. Observe o leitor este pedaço:
- “(…) os grandes
problemas filosóficos encontrei-os resolvidos na frase de um preto, que tinha o
nome de Matêbo, natural do povo de Maquela:
- Nós somos como a
cobra: largamos a camisa no caminho e desaparecemos no capim…” (pp. 125)
Deleite-se agora com o prefácio de Raul Brandão:
- “A primeira vez que
vi este homem extraordinário foi numa fotografia ao pé dum enorme bicho caído
por terra com uma bala na cabeça. Era um colosso formidável, informe como um
saco de carvão donde saiam dois dentes brancos e agudos. Mas muito mais
formidável ainda se me afigurou desde logo, o homem esfarrapado e minúsculo, de
espingarda na mão, que se atrevera a bater-se com a fera gigantesca. Que tipo
só acção e nervos e que serenidade no olhar, na fisionomia, na figura!...
Mais tarde na solidão
da Travanca, sob o céu tão próximo naquelas alturas da serra e todo coalhado de
estrelas, é que ouvi contar as caminhadas através da floresta virgem do Congo,
a navegação pelos rios interiores ainda desconhecidos, o grande incêndio do
mato que arde durante meses, as caçadas sob um céu implacável, através das
selvas em companhia dum preto, com uma espingarda às costas - e compreendi não
só a decisão, a audácia, o sangue frio do caçador de elefantes, mas a beleza da
vida livre na África onde o homem só conta consigo e com Deus. Ouvi-lhe quase
todo este livro - a hecatombe dos bichos formidáveis, a alegria espontânea dos
negros, e certos pormenores que nunca mais me esqueceram e ainda hoje me
encantam. Vi luzir entre sombras opacas a fogueira vermelha do acampamento, e
morrerem nas florestas infindáveis as últimas brasas do lume, sentindo-lhes a
agonia, como quem sente acabar o último fio doirado que nos prende à vida. E
segui-o ansioso na pista do elefante ferido, que derruba árvores e abala como
uma montanha, deixando atrás de si uma estrada real…
- Mas, perguntei, como
se matam estes bichos?
- É a coisa mais fácil
deste mundo dizia um inglês: a gente coloca-se na linha férrea, a vinte metros
da locomotiva dum expresso a toda a velocidade, aponta, acerta no farol da
máquina, e dá um salto para o lado para não ser irremediavelmente morto!
E dito isto convidou-me
com a maior naturalidade para a primeira caçada a realizar no Congo. Oh não! Prefiro
lê-lo neste livro de aventuras, ou ouvi-lo nos meses de verão na encantadora
casa de Pascoaes, entre aquelas quatro paredes onde toda a família unida
trabalha na construção dum mundo melhor e mais belo. Desde o pai que conheci
aos setenta anos tão moço como os rapazes, e que todos os dias quando
regressava a casa das vinhas que tinha plantado, apanhava e trazia na mão, num
gesto maquinal mas significativo, uma pequena pedra, até ao mais novo dos
filhos, todos acarretam materiais para a mesma edificação ideal.
Uns são lavradores, ou,
como este, homens de acção, pioneiros da civilização africana. Outro chama-se
Teixeira de Pascoaes, o maior poeta contemporâneo. Foi ali na casa solarenga,
com um pátio onde pode manobrar um regimento, olhando nos serões a família
sentada à volta da mesa que eu compreendi e se me radicou no espírito a ideia
de que a tradição se mantém e que o sonho que nos liga é dos vivos e dos
mortos.
A raça é a mesma com
defeitos e qualidades que se perpetuam. Os homens que foram ao fim do mundo com
um heroísmo admirável, não despenderam mais resistência nem audácia, do que os
que partem hoje para o sertão com uma espingarda, ou de que os rapazes
extraordinários que numa chocolateira asmática tomam pelos ares o caminho de
Macau. Só nos faltam as «elites», os quadros que dirijam esta tropa para um
caminho heroico.
Reparem no retrato do
caçador João Teixeira de Vasconcelos que arriscou cem vezes a vida durante dez
anos no sertão; leiam-no numa das próximas noites de inverno, e digam-me na
verdade se o não invejam como eu próprio invejo. Apesar de ser um contemplativo
adoro os tipos de acção, capazes de realizarem o seu sonho oferecendo a vida ao
destino. O que eu na velhice cismo numa existência independente e feroz, calcorreando
a selva até acabar encostado a uma árvore sem dúvidas nem complicações!...
É lendo algumas destas páginas que tenho pena de não recomeçar a vida. Recomeçava-a esfarrapado como
um ladrão, com uma espingarda na bandoleira e um pedaço de pão no saco, e
internava-me pelo mato, não para matar elefantes, mas para matar de vez o homem
inútil, o homem da fórmula que vive connosco, para contemplar a obra de Deus em
toda a sua pureza antes do civilizado ter edificado o primeiro chalet no
interior da selva. Quem ler este livro despretensioso sente como eu senti uma
lufada de ar novo, e se não está já soterrado por uma montanha de civilização e
de mediocridade, deseja como eu desejei, fugir para sempre às conveniências, à
regra, ao dever, à lei. Mas já agora para mim esse sonho é impossível. Já agora
que passei a vida entre papéis, acabarei a vida inutilmente entre papéis,
deixando que outros aproveitem melhor a lição de energia que João Teixeira de Vasconcelos
nos dá a todos com este livro interessantíssimo.”
João Teixeira de
Vasconcelos (1957). África Vivida - Memórias de um Caçador de Elefantes. Livraria Fernando
Machado - Porto