26 de maio de 2014

Andanças na Terra Fria

A pequena batida ao javali era tradicional em Montalegre. Para o efeito, um grupo, constituído por cerca de uma vintena de dedicados caçadores, acorria em peregrinação ao encontro do ambiente rude, mas solidário e amigo, do abnegado empenho dos monteadores, do persistente esforço dos cães e da monumental beleza do território.
Este é o testemunho desse imperecível jogo cinegético, no qual animais completamente selvagens possibilitaram que, em plenitude e com autenticidade, se cumprisse A CAÇA.




Andanças na Terra Fria

1 Dezembro de 1994

Iniciei a estação de caça maior participando num gancho aos javalis e numa batida às raposas na zona da Associação de Caçadores e Pescadores Montalegrenses.
O dia esplêndido prometia agradável sessão. O cume das serranias, destaque para o Gerês e o Larouco, contrastava, nítido, com o fundo lápis-lazúli do céu. Nos sopés, sob o brando sol de Inverno, cintilavam discretas aldeias graníticas, obra-prima da joalharia transmontana, engastadas nos verdes prados e nos policromos bosques de amieiros e de carvalhos que trepavam as escarpas por onde se exauriam, puros e impetuosos, os límpidos córregos.
A quentura do saboroso caldo de feijão vermelho acolitado pelo tinto de Boticas, um substancial desjejum, despertou os sentidos.
Depois do sorteio, ansiosos pelo desencadear da acção, dirigimo-nos aos todo-o-terreno. Entre outros calhou-me a simpática companhia de um reputado campeão de tiro aos pratos, ainda muito combalido por causa de inesperadas manobras nocturnas, na véspera, absolutamente irrecusáveis para um homem de brio. Solidariamente decidiu-se contestar a péssima escolha do director da batida que, sendo engenheiro, não providenciara, como lhe competia, o alcatroamento dos caminhos esburacados, motivo de tão evidente como escusado desconforto.
Já no posto, encarrapitado numa estratégica penedia, assisti à solta das matilhas. Um raposão, afinal o único troféu abatido, acoitado num denso silvado, foi instantaneamente perseguido em tumultuosa confusão, apesar dos matilheiros, com chamamentos e cornetadas, se esforçarem por reunir os cães desvairados.
Entretanto, a uns centos de metros, em sentido oposto, com os binóculos, avistei um navalheiro a desaparecer, para nunca mais ser encontrado, num basto giestal.

8 Dezembro de 1994

Encontrámo-nos em Meixedo mesmo com chuva e muito frio. As informações anunciavam recontro animado. O grupo estava incompleto, mas a motivação dos forasteiros em harmonia com os escassos caçadores locais era a bastante.
O amável postor, um atarracado aldeão octogenário, afagava a vetusta espingarda de preciosas platinas e, convicto, vaticinava caçada farta.
Rodeado por ásperos montes, o terreno configurava-se como um enorme e comprido vale. Nas profundezas das compactas matas de carvalhos suspeitavam-se os encames. O bosque era formado por árvores intemporais com silhuetas ilusórias esboçadas pelas neblinas ondulantes do dia soturno e pelos musgos de mil tonalidades pendendo esfiapados ao longo de troncos e galhos nus.
Silencioso, um escuro e avantajado javali escapava-se aos cães ainda afastados, em sincopado mas enérgico galope sobre o solo, fofo de humidade e de folhas putrefactas. Com um aceno avisei o posto ao lado para a eminência da presa. A trinta zero seis troou e apreciei o vulto indefinido do caçador, exuberante na capa de honras mirandesa, a rematar o bravio animal. Depois… A explosão de tiros e latidos espevitou a natureza acabrunhada, festejando-se a captura de mais dois bichos.
Por fim, em viril convívio, no eirado descoberto, ao crepúsculo, por entre desconfortáveis chuviscos, mitigaram-se as fraquezas com um churrasco de suculentas postas de vitela barrosã.

10 Dezembro de 1994

Solveira recebeu-nos ensolarada, com temperatura amena e ausência de nuvens, mas esses bons augúrios não se materializaram no primeiro gancho.
Rápida mudança, emboscando-me numa encruzilhada atento ao latir intermitente de um cão que se deslocava no espesso matagal, em frente.
Certo de que iria atirar, excitado, escutava os mais ínfimos indícios da movimentação, ainda que subtis, e analisava os trajectos possíveis, especialmente os mais prováveis. O susto de uma galinhola fugitiva, num voo acrobático através do pinhal próximo, reforçou o alerta. Ao longe alguém berrou e, numa polifonia de coros desafinados, as matilhas carregaram dispersando os porcos-bravos.
Ao ouvir tiros, mais além vozes, apercebi-me do discreto agitar de um tufo de giestas a cerca de quarenta metros. Em desespero e sem sucesso, procurei reconhecer o cauteloso animal. E foi então que, num turbilhão de sensações indescritíveis e contraditórias, antecipando a rota de fuga, empunhei a carabina para atirar em vão na fracção de segundo que o javali demorou na travessia daqueles dois metros de terreno limpo…E sem possibilidade de emendar!
Desalentadamente recarreguei a arma, observando tristemente a culatra a extrair e expulsar o invólucro metálico. Para sempre gravei aquele lance e a imagem admirável de tão engenhoso adversário distanciando-se, incólume e inalcançável, pela crista do outeiro.
Finalmente, no local aprazado, em redor do crepitar da fogueira que assara um delicioso entrecosto, por entre os garrafões vazios, comentaram-se os resultados da jornada. Dois javardos foram devidamente apreciados e foi reclamado o julgamento sumário dos autores dos tiros falhados. Comprometidos, alegámos inocência perante aquela caricatura de tribunal, em que todos eram acusadores e simultaneamente juízes. De nada valeram os argumentos invocados e as titubeantes testemunhas de defesa. Os quatro infelizes réus foram injustamente condenados, sem possibilidade de recurso, a custear as suaves, velhas e dispendiosas bebidas necessárias às infindáveis libações daquele animado rancho.

17 Dezembro de 1994

Em Serraquinhos, a avaliação moderadamente favorável da mancha, previamente inspeccionada por esclarecedores, criava uma baixa expectativa. O número dos presentes era reduzido, talvez devido ao receio de alguns se exporem ao tempo, brumoso e húmido, em definitivo contraste com a afabilidade dos naturais.
As chuvadas adiavam sucessivamente o começo da campanha. Embalado pelo som cavo dos chocalhos, assistia à passagem do gado para o pasto, tangido pelas mulheres embiocadas nas capuchas de surrobeco, tecido com a lã áspera do rebanho no decrépito tear manual, junto à lareira, nas intermináveis e frias noites de Inverno.
A impaciência ruidosa dos cães e as provocações gozadoras dos batedores, sem dúvida os que mais sofreriam no terreno molhado, sufocou recusas e envergonhou pretextos, empurrando-nos para o monte.
Nos pequenos lameiros dos declives montanhosos abundavam os rastos. Não obstante o notável sacrifício dos quadrilheiros, encharcados, roucos, incansáveis no sopro das trompas, apenas se levantavam assustadiços melros ou uma perdiz por outra. Corajosos ao vadear caudais, apoiavam-se nos salgueiros e choupos, subiam íngremes fraguedos para logo desaparecerem nos tojais espinhosos, assomando depois, suados e dominadores, nos alcantis de tão inóspitas serras.
Contudo, apesar desses clamores, o chouto dos cães tresmalhados era sinal inequívoco de cansaço e desinteresse. Só não cedíamos à tentação de desistir por causa do sofrido exemplo dos monteadores, cujo chefe incontestado, estatura meã, moreno e seco, farto bigode, lenço tabaqueiro ao pescoço, à cintura castiço facalhão, rijas perneiras de cabedal, irradiante de energia varonil, bradava ordens que a todos encorajavam.
Mas tão evidente e forte vontade não bastou para o êxito e, assim, desconsolados e vencidos pelo anoitecer, encerrámos a frustrante caçada.

4 Fevereiro de 1995

Embora com prudentes reticências maternas, viajei para S. Miguel de Vilar de Perdizes acompanhado pelo meu jovem filho. O objectivo era partilhar o conhecimento primordial da genuína vida e morte dos bichos. Para isso contava com a simbólica bênção dos espíritos recolhidos nas fálicas pedras milenares, nos centenários soutos ou nas cristalinas e fecundantes águas, mitológicos adoradores de supremas divindades, protectoras ancestrais dos humanos que as reverenciavam nos altares rupestres da vizinha montanha sagrada.
Instalámo-nos na testeira de disforme pedregulho sobranceiro ao chão a correr. Aqui e ali, vestígios de fossaduras, lenta e gratamente impeliam à transgressão das normas relativas ao silêncio e à imobilidade, pois o assombro virginal e a excitação temerosa do novel comparsa eram irresistíveis.
Discretamente apontava os sítios onde caçava às perdizes e, com intuitos aliciantes, cochichava estórias protagonizadas pelo nosso velho e lustroso perdigueiro.
No côncavo da ladeira, defronte da margem direita da ribeira de Porto de Rei, arrastavam-se alguns cães, a recuperar da perseguição a uma vara que, ilesa, se refugiara em terras galegas. Avultando no meio deles, uma irrequieta sabuja branca, numa corrida desenfreada, irrompeu nuns brejos acometendo um javali, apelando à restante canzoada que, num exemplar agarre, já refeita das canseiras, lutou destemidamente.
Abatida a roncante abantesma, em defesa dos maltratados canídeos, alguns dos quais sangravam copiosamente, regressámos à povoação e, enquanto respondia à imparável torrente de perguntas próprias da curiosidade juvenil, fomos saudados pelo ruidoso levante de um casal de perdizes.
Num esplendoroso fim do dia chegamos ao Paço onde confraternizámos em alegre merenda e revimos estes inolvidáveis eventos.
No retorno a casa, em confortável viatura, absorto, fixando ternamente aquela adormecida cara imberbe, meditava na importância futura desta aula prática.

18 Fevereiro de 1995

Na segunda e última montaria da zona de caça associativa retomei o revigorante contacto com os companheiros de Vilar.
Contrariamente ao usual, o encontro foi concorridíssimo. Destacava-se a elegante presença feminina que excursionou pelas redondezas, desfrutando o sol temporão.
Depois da oração em memória dos monteiros falecidos, atitude louvável do indigitado director apesar de inabitual na região, dividimo-nos pelos diferentes grupos.
Sentado no cocuruto de um rochedo saliente, aguardava, ensurdecido pelo fragor das águas do ribeiro serpenteante a meus pés. Divisava Santo André e os seus emblemáticos ciprestes subjugados pelos contornos vigorosos do Larouco sem neve, ao contrário dos cumes escarchados das longínquas cordilheiras espanholas.
Por causa dos estouros abafados de alguns tiros consecutivos olhei para o vale, onde, através das ramagens, entrevi a fuga cadenciada e dificultosa de um javali ferido. Estacou, enfrentando corajosamente os perseguidores tenazes em que se misturavam finos e ligeiros coelheiros, barulhentos rastejadores, encorpados travessos de lobeiros dos mais singulares tamanhos, cores e pelagens, ostentando briosamente as fundas cicatrizes de indómitos combatentes.
Os contendores, após uma fugaz hesitação, com medonha algazarra, envolveram-se numa luta mortal, confusa de uivos lancinantes e navalhadas fatais. Alguns mastins, enlouquecidos de ódio, encurtando distâncias, lançavam-se pelo ar caindo sobre a amálgama de corpos ensanguentados que palpitavam, brutais e primitivos. Este episódio empolgante teve um epílogo lamentável provocado pela acção de um mísero atirador que desfechou a arma matando o javali moribundo mas ferindo gravemente dois podengos. Inesquecível o olhar triste da dona, embora exame posterior concluísse pela recuperação dos cães.
Voltámos à acolhedora povoação e, como sinal forte de cultura, finalizámos em conjunto e a preceito a celebração da festa da caça. Houve demorada comezaina, irreverentes cantigas ao desafio e voluptuosas degustações da queimada flamejante gerada no esbotenado pote de barro. Por fim, deleitámo-nos com o humor e a extravagância dos gestos e falas rituais, quiçá herdados de veneráveis druidas de outrora que, etéreos e complacentes, pairavam sobre o entusiástico ajuntamento.

23 Fevereiro de 1995

A reunião efectuou-se na aldeia de Cambeses, adjacente ao rio Cávado. Passeámos pelas estreitas quelhas delimitadas por muros de volumosos blocos de granito que aparelhavam o casario cinzentão, encimado pelos pitorescos colmaços, restos de um passado de maiores carências.
Integrei a armada do Cabeço do Touro. Escalámos as inebriantes alturas após atravessarmos os arrabaldes do povoado prenhe de exótica vida rural, patente no cheiro ácido do estrume e no perfil do pastor abrigado na croça imemorial, arrimado ao nodoso cajado, numa expressiva afirmação de cidadania, a vigiar o rebanho no baldio.
Para atalaia escolhi adequado lajão, emergente das viçosas torgueiras, alfobre de líquenes escorregadios. Deste excepcional mirante, extasiado, admirava o extenso arvoredo, exaltação colorida do universo criador. Este rendilhado lençol vegetal de gargantas e desfiladeiros, quase intransitáveis, eram os domínios e o esconderijo do forte navalheiro, solitário sobrevivente dos assaltos dos homens e dos lobos famintos.
Naquele dia aziago, porém, fora descoberto o trilho secreto de tantas fugas radiosas e a morte esperava-o cosida aos troncos alvos dos vidoeiros. Descobriu tarde a sombra fatal do caçador mas, sem vacilar, numa derradeira afirmação dos atributos da sua inteireza, investiu contra a ameaça inopinada. Com um lampejo tonitruante a bala penetrou o coração cansado do velho padreador, no cumprimento incontornável dos austeros e inultrapassáveis desígnios da Mãe Natureza. O manto escuro da noite, da cor do luto, numa lúgubre carícia solidária com o silêncio invulgar das serranias colossais, finalmente amortalhou os despojos grisalhos do incontestado monarca daquelas vastidões e abismos.

25 Fevereiro de 1995

Ao alvorecer, sob um ameaçador céu de tempestade, ao ritmo da “Carmina Burana”, na companhia do meu irmão, cruzei as verdejantes montanhas do Alto Ave, acelerando pela estrada sinuosa que transpõe as espectaculares paisagens lacustres da Venda-Nova e de Pisões, a fim de encerrar a época. Após uma brevíssima paragem na cidade avançámos apressados para a zona de Santo Adrião com todos os impermeáveis disponíveis.
O meu posto, no alto de um ermo salpicado de marcos fronteiriços, corroídos pelos vendavais, permitia uma extensa observação. Pinheiros dispersos, enfezados, torcidos pela ventaneira permanente e descascados pelas coçadelas enérgicas dos monteses territoriais, brotavam da escassa vegetação rasteira. Os indícios eram promissores e tudo parecia perfeito, não fosse a chuva gélida em rajadas de muitos quilómetros hora. Todavia, depois da longa expectativa, gradualmente transformada em irritante espera pela desilusão e impaciência de nada aparecer, nem as corridas nervosas e os saltos dos elegantes corços ou o estardalhaço dos cães na vegetação enchumbada pelas bátegas diluvianas, nem a visão deslumbrante do remoto castelo de Montalegre coroado por gigantesco arco-íris bastaram para nos animar. Então resolvemos mudar, ainda que os caminhos fossem inevitáveis atascadeiros e um obstáculo difícil mesmo para os jipes mais potentes que precisavam da nossa ajuda para sulcarem dificultosamente aqueles resvaladiços rios de lama.
Apesar da mudança, foi breve a permanência em tamanhos atoleiros, avançando rapidamente para o conforto da lareira e do banquete previsto. Terminado o animado serão, reconfortados, regressamos a Matosinhos com tranquilidade e muita cautela sob um forte nevão que tudo cobriu.
Eis os caminhos de um caçador ditoso e confessadamente cativo da magia pagã do omnipresente (deus)

Larouco

Telúrico gigante.
A nossa gente,
num olhar de amante,
abençoa sempre…

Texto da autoria de José António Neves
Aguarela de Francisco Charneca - Homenagem aos Matilheiros

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