(...) Pois foi nestas terras matagosas das margens do
Guadiana e de Odiarce, mais claramente na margem esquerda do ribeiro de São
Pedro de Pomares, tributário desta ribeira, que D. Dinis, em 1294, saindo de
Beja a montear a cavalo, por certo acompanhado por fidalgos da sua Casa, por
monteiros de pé e podengueiros da sua matilha de sabujos e alões – um rei nunca
rondava sem ser acompanhado pelos mais famosos monteiros da região onde caçava –
teve a sorte de «levantar», numa densa mancha de mato desses sítios, um grande
urso que o monarca logo começou «a correr» e que o levou a afastar-se dos seus
companheiros de montaria para acabar, segundo as fontes de que nos socorremos,
por matar o urso num local a curta distância do Guadiana, então conhecido pelo
sítio de Belmonte.
Nesse local, que hoje podemos identificar com o fértil
território da «Quinta de São Pedro», entre Salmes e Baleizão, mais precisamente
com o abandonado «monte» e, talvez pelo facto do ribeiro de São Pedro de
Pomares, já em fins de Novembro, provavelmente devido às chuvadas das chamadas
«águas novas» ir de caudal engrossado, o urso, fugindo dos matagais da margem
direita do Guadiana, onde devia operar a linha dos batedores e, também, do rei
e da matilha dos podengos que, por outro lado, o perseguiam, teria, como bom
nadador, atravessado o ribeiro e procurado refúgio na margem oposta.
Uma vez chegado à margem esquerda do ribeiro o urso,
perdendo contacto com o rei, deve ter procurado abrigo numa daquelas pequenas
colinas povoadas pelas «quebradas penhas» de granito de que nos fala o cronista
e ter-se «emanchado» no denso e alto mato de estevas, aroeiras e mendronheiros
em que esses afloramentos rochosos costumam ser tão fartos.
O monarca continuando a perseguir o urso, terá, também,
vadeado a cavalo o ribeiro de São Pedro e, encaminhando-se para o sítio onde
hoje se ergue a igreja de São Luís, não teria curado, no ardor da perseguição,
do enorme perigo a que se expunha perante o súbito e inesperado ataque de um
animal selvagem como o urso, acossado e furioso e talvez mesmo já ferido pela
matilha de podengos. Segundo narram os cronistas foi isso mesmo que aconteceu.
O urso, sentido-se perseguido, «emanchou-se» instintivamente
num daqueles «castelos» de rochas tão típicos do cenário paisagístico do sítio
onde a emboscada veio a ocorrer e quando D. Dinis, a cavalo, se lhe cruzou pela
frente, o bicho saiu subitamente do seu esconderijo e, erguido nas patas
posteriores, derrubou o rei da sela e, já com ele por terra, abraçou-o e
começou a tentar mordê-lo.
Perante a ameaça de uma morte certa às mãos do urso, D. Dinis,
segundo a tradição, que ainda hoje se mantém intacta e viva por aqueles sítios –
lá estão ainda a chamada «rocha da sela» e uma outra que, dizem, mostra «a
impressão da pata do cavalo», que se supõe ter sido, também, derrubado pela
força do urso – implorou a São Luís, bispo de Tolosa, a graça da vida, São Luís
a quem a própria Rainha Santa se sentia ainda presa por laços familiares e a
quem guardava tanta devoção, e conforme assegura, já nos fins do século XVII, o
bispo do Porto D. Fernando Correia de Lacerda, o santo bispo atendeu a prece do
monarca e concedeu-lhe a graça da salvação da morte naquela horríveis e
poderosas mãos do urso.
Agarrado pelas patas do bicho, em luta corpo a corpo, quando
ia ser devorado pela fera, D. Dinis parece ter sido iluminado por um fulgor
divino e, num súbito reflexo, desembainhou do cinto a sua faca de mato,
cravou-a no peito do urso – o cronista aponta, concretamente, a espádua
esquerda – e rematou-o, assim, à punhalada.
Este acidente de montaria nos campos de Beja em que D. Dinis,
em luta corpo a corpo, mata um grande urso à punhalada, encontra-se hoje clara
e iniludivelmente evocado e testemunhado em dois monumentos medievais
portugueses.
O primeiro é a ermida de São Luís, entre Selmes e Baleizão,
que parece ter sido mandada edificar por voto dos povos daquela região, em acção
de graças pela salvação do rei em luta com o urso e não só para comemorar festivamente
a façanha do monarca mas, também, para render culto, naquele mesmo sítio, à
extraordinária figura mística do bispo de Tolosa alcançando para D. Dinis a
graça de o poupar a uma morte certa nas mãos do bicho.
O segundo monumento é o túmulo em mármore, ricamente
esculturado, do mosteiro de São Dinis, em Odivelas que, durante séculos,
guardou na capela do lado do Evangelho, os restos mortais de D. Dinis. Bela peça de escultura tumular medieval com formosa jacente do grande monarca! (pp.
5-6)
José Pires Gonçalves (1982). Dramática Montaria Real nos
Matos do Guadiana, no Século XIII. Edição de «Palavra», com o patrocínio do
«Grupo de Amigos de Monsaraz». Gráfica Eborense.