26 de maio de 2014

Andanças na Terra Fria

A pequena batida ao javali era tradicional em Montalegre. Para o efeito, um grupo, constituído por cerca de uma vintena de dedicados caçadores, acorria em peregrinação ao encontro do ambiente rude, mas solidário e amigo, do abnegado empenho dos monteadores, do persistente esforço dos cães e da monumental beleza do território.
Este é o testemunho desse imperecível jogo cinegético, no qual animais completamente selvagens possibilitaram que, em plenitude e com autenticidade, se cumprisse A CAÇA.




Andanças na Terra Fria

1 Dezembro de 1994

Iniciei a estação de caça maior participando num gancho aos javalis e numa batida às raposas na zona da Associação de Caçadores e Pescadores Montalegrenses.
O dia esplêndido prometia agradável sessão. O cume das serranias, destaque para o Gerês e o Larouco, contrastava, nítido, com o fundo lápis-lazúli do céu. Nos sopés, sob o brando sol de Inverno, cintilavam discretas aldeias graníticas, obra-prima da joalharia transmontana, engastadas nos verdes prados e nos policromos bosques de amieiros e de carvalhos que trepavam as escarpas por onde se exauriam, puros e impetuosos, os límpidos córregos.
A quentura do saboroso caldo de feijão vermelho acolitado pelo tinto de Boticas, um substancial desjejum, despertou os sentidos.
Depois do sorteio, ansiosos pelo desencadear da acção, dirigimo-nos aos todo-o-terreno. Entre outros calhou-me a simpática companhia de um reputado campeão de tiro aos pratos, ainda muito combalido por causa de inesperadas manobras nocturnas, na véspera, absolutamente irrecusáveis para um homem de brio. Solidariamente decidiu-se contestar a péssima escolha do director da batida que, sendo engenheiro, não providenciara, como lhe competia, o alcatroamento dos caminhos esburacados, motivo de tão evidente como escusado desconforto.
Já no posto, encarrapitado numa estratégica penedia, assisti à solta das matilhas. Um raposão, afinal o único troféu abatido, acoitado num denso silvado, foi instantaneamente perseguido em tumultuosa confusão, apesar dos matilheiros, com chamamentos e cornetadas, se esforçarem por reunir os cães desvairados.
Entretanto, a uns centos de metros, em sentido oposto, com os binóculos, avistei um navalheiro a desaparecer, para nunca mais ser encontrado, num basto giestal.

8 Dezembro de 1994

Encontrámo-nos em Meixedo mesmo com chuva e muito frio. As informações anunciavam recontro animado. O grupo estava incompleto, mas a motivação dos forasteiros em harmonia com os escassos caçadores locais era a bastante.
O amável postor, um atarracado aldeão octogenário, afagava a vetusta espingarda de preciosas platinas e, convicto, vaticinava caçada farta.
Rodeado por ásperos montes, o terreno configurava-se como um enorme e comprido vale. Nas profundezas das compactas matas de carvalhos suspeitavam-se os encames. O bosque era formado por árvores intemporais com silhuetas ilusórias esboçadas pelas neblinas ondulantes do dia soturno e pelos musgos de mil tonalidades pendendo esfiapados ao longo de troncos e galhos nus.
Silencioso, um escuro e avantajado javali escapava-se aos cães ainda afastados, em sincopado mas enérgico galope sobre o solo, fofo de humidade e de folhas putrefactas. Com um aceno avisei o posto ao lado para a eminência da presa. A trinta zero seis troou e apreciei o vulto indefinido do caçador, exuberante na capa de honras mirandesa, a rematar o bravio animal. Depois… A explosão de tiros e latidos espevitou a natureza acabrunhada, festejando-se a captura de mais dois bichos.
Por fim, em viril convívio, no eirado descoberto, ao crepúsculo, por entre desconfortáveis chuviscos, mitigaram-se as fraquezas com um churrasco de suculentas postas de vitela barrosã.

10 Dezembro de 1994

Solveira recebeu-nos ensolarada, com temperatura amena e ausência de nuvens, mas esses bons augúrios não se materializaram no primeiro gancho.
Rápida mudança, emboscando-me numa encruzilhada atento ao latir intermitente de um cão que se deslocava no espesso matagal, em frente.
Certo de que iria atirar, excitado, escutava os mais ínfimos indícios da movimentação, ainda que subtis, e analisava os trajectos possíveis, especialmente os mais prováveis. O susto de uma galinhola fugitiva, num voo acrobático através do pinhal próximo, reforçou o alerta. Ao longe alguém berrou e, numa polifonia de coros desafinados, as matilhas carregaram dispersando os porcos-bravos.
Ao ouvir tiros, mais além vozes, apercebi-me do discreto agitar de um tufo de giestas a cerca de quarenta metros. Em desespero e sem sucesso, procurei reconhecer o cauteloso animal. E foi então que, num turbilhão de sensações indescritíveis e contraditórias, antecipando a rota de fuga, empunhei a carabina para atirar em vão na fracção de segundo que o javali demorou na travessia daqueles dois metros de terreno limpo…E sem possibilidade de emendar!
Desalentadamente recarreguei a arma, observando tristemente a culatra a extrair e expulsar o invólucro metálico. Para sempre gravei aquele lance e a imagem admirável de tão engenhoso adversário distanciando-se, incólume e inalcançável, pela crista do outeiro.
Finalmente, no local aprazado, em redor do crepitar da fogueira que assara um delicioso entrecosto, por entre os garrafões vazios, comentaram-se os resultados da jornada. Dois javardos foram devidamente apreciados e foi reclamado o julgamento sumário dos autores dos tiros falhados. Comprometidos, alegámos inocência perante aquela caricatura de tribunal, em que todos eram acusadores e simultaneamente juízes. De nada valeram os argumentos invocados e as titubeantes testemunhas de defesa. Os quatro infelizes réus foram injustamente condenados, sem possibilidade de recurso, a custear as suaves, velhas e dispendiosas bebidas necessárias às infindáveis libações daquele animado rancho.

17 Dezembro de 1994

Em Serraquinhos, a avaliação moderadamente favorável da mancha, previamente inspeccionada por esclarecedores, criava uma baixa expectativa. O número dos presentes era reduzido, talvez devido ao receio de alguns se exporem ao tempo, brumoso e húmido, em definitivo contraste com a afabilidade dos naturais.
As chuvadas adiavam sucessivamente o começo da campanha. Embalado pelo som cavo dos chocalhos, assistia à passagem do gado para o pasto, tangido pelas mulheres embiocadas nas capuchas de surrobeco, tecido com a lã áspera do rebanho no decrépito tear manual, junto à lareira, nas intermináveis e frias noites de Inverno.
A impaciência ruidosa dos cães e as provocações gozadoras dos batedores, sem dúvida os que mais sofreriam no terreno molhado, sufocou recusas e envergonhou pretextos, empurrando-nos para o monte.
Nos pequenos lameiros dos declives montanhosos abundavam os rastos. Não obstante o notável sacrifício dos quadrilheiros, encharcados, roucos, incansáveis no sopro das trompas, apenas se levantavam assustadiços melros ou uma perdiz por outra. Corajosos ao vadear caudais, apoiavam-se nos salgueiros e choupos, subiam íngremes fraguedos para logo desaparecerem nos tojais espinhosos, assomando depois, suados e dominadores, nos alcantis de tão inóspitas serras.
Contudo, apesar desses clamores, o chouto dos cães tresmalhados era sinal inequívoco de cansaço e desinteresse. Só não cedíamos à tentação de desistir por causa do sofrido exemplo dos monteadores, cujo chefe incontestado, estatura meã, moreno e seco, farto bigode, lenço tabaqueiro ao pescoço, à cintura castiço facalhão, rijas perneiras de cabedal, irradiante de energia varonil, bradava ordens que a todos encorajavam.
Mas tão evidente e forte vontade não bastou para o êxito e, assim, desconsolados e vencidos pelo anoitecer, encerrámos a frustrante caçada.

4 Fevereiro de 1995

Embora com prudentes reticências maternas, viajei para S. Miguel de Vilar de Perdizes acompanhado pelo meu jovem filho. O objectivo era partilhar o conhecimento primordial da genuína vida e morte dos bichos. Para isso contava com a simbólica bênção dos espíritos recolhidos nas fálicas pedras milenares, nos centenários soutos ou nas cristalinas e fecundantes águas, mitológicos adoradores de supremas divindades, protectoras ancestrais dos humanos que as reverenciavam nos altares rupestres da vizinha montanha sagrada.
Instalámo-nos na testeira de disforme pedregulho sobranceiro ao chão a correr. Aqui e ali, vestígios de fossaduras, lenta e gratamente impeliam à transgressão das normas relativas ao silêncio e à imobilidade, pois o assombro virginal e a excitação temerosa do novel comparsa eram irresistíveis.
Discretamente apontava os sítios onde caçava às perdizes e, com intuitos aliciantes, cochichava estórias protagonizadas pelo nosso velho e lustroso perdigueiro.
No côncavo da ladeira, defronte da margem direita da ribeira de Porto de Rei, arrastavam-se alguns cães, a recuperar da perseguição a uma vara que, ilesa, se refugiara em terras galegas. Avultando no meio deles, uma irrequieta sabuja branca, numa corrida desenfreada, irrompeu nuns brejos acometendo um javali, apelando à restante canzoada que, num exemplar agarre, já refeita das canseiras, lutou destemidamente.
Abatida a roncante abantesma, em defesa dos maltratados canídeos, alguns dos quais sangravam copiosamente, regressámos à povoação e, enquanto respondia à imparável torrente de perguntas próprias da curiosidade juvenil, fomos saudados pelo ruidoso levante de um casal de perdizes.
Num esplendoroso fim do dia chegamos ao Paço onde confraternizámos em alegre merenda e revimos estes inolvidáveis eventos.
No retorno a casa, em confortável viatura, absorto, fixando ternamente aquela adormecida cara imberbe, meditava na importância futura desta aula prática.

18 Fevereiro de 1995

Na segunda e última montaria da zona de caça associativa retomei o revigorante contacto com os companheiros de Vilar.
Contrariamente ao usual, o encontro foi concorridíssimo. Destacava-se a elegante presença feminina que excursionou pelas redondezas, desfrutando o sol temporão.
Depois da oração em memória dos monteiros falecidos, atitude louvável do indigitado director apesar de inabitual na região, dividimo-nos pelos diferentes grupos.
Sentado no cocuruto de um rochedo saliente, aguardava, ensurdecido pelo fragor das águas do ribeiro serpenteante a meus pés. Divisava Santo André e os seus emblemáticos ciprestes subjugados pelos contornos vigorosos do Larouco sem neve, ao contrário dos cumes escarchados das longínquas cordilheiras espanholas.
Por causa dos estouros abafados de alguns tiros consecutivos olhei para o vale, onde, através das ramagens, entrevi a fuga cadenciada e dificultosa de um javali ferido. Estacou, enfrentando corajosamente os perseguidores tenazes em que se misturavam finos e ligeiros coelheiros, barulhentos rastejadores, encorpados travessos de lobeiros dos mais singulares tamanhos, cores e pelagens, ostentando briosamente as fundas cicatrizes de indómitos combatentes.
Os contendores, após uma fugaz hesitação, com medonha algazarra, envolveram-se numa luta mortal, confusa de uivos lancinantes e navalhadas fatais. Alguns mastins, enlouquecidos de ódio, encurtando distâncias, lançavam-se pelo ar caindo sobre a amálgama de corpos ensanguentados que palpitavam, brutais e primitivos. Este episódio empolgante teve um epílogo lamentável provocado pela acção de um mísero atirador que desfechou a arma matando o javali moribundo mas ferindo gravemente dois podengos. Inesquecível o olhar triste da dona, embora exame posterior concluísse pela recuperação dos cães.
Voltámos à acolhedora povoação e, como sinal forte de cultura, finalizámos em conjunto e a preceito a celebração da festa da caça. Houve demorada comezaina, irreverentes cantigas ao desafio e voluptuosas degustações da queimada flamejante gerada no esbotenado pote de barro. Por fim, deleitámo-nos com o humor e a extravagância dos gestos e falas rituais, quiçá herdados de veneráveis druidas de outrora que, etéreos e complacentes, pairavam sobre o entusiástico ajuntamento.

23 Fevereiro de 1995

A reunião efectuou-se na aldeia de Cambeses, adjacente ao rio Cávado. Passeámos pelas estreitas quelhas delimitadas por muros de volumosos blocos de granito que aparelhavam o casario cinzentão, encimado pelos pitorescos colmaços, restos de um passado de maiores carências.
Integrei a armada do Cabeço do Touro. Escalámos as inebriantes alturas após atravessarmos os arrabaldes do povoado prenhe de exótica vida rural, patente no cheiro ácido do estrume e no perfil do pastor abrigado na croça imemorial, arrimado ao nodoso cajado, numa expressiva afirmação de cidadania, a vigiar o rebanho no baldio.
Para atalaia escolhi adequado lajão, emergente das viçosas torgueiras, alfobre de líquenes escorregadios. Deste excepcional mirante, extasiado, admirava o extenso arvoredo, exaltação colorida do universo criador. Este rendilhado lençol vegetal de gargantas e desfiladeiros, quase intransitáveis, eram os domínios e o esconderijo do forte navalheiro, solitário sobrevivente dos assaltos dos homens e dos lobos famintos.
Naquele dia aziago, porém, fora descoberto o trilho secreto de tantas fugas radiosas e a morte esperava-o cosida aos troncos alvos dos vidoeiros. Descobriu tarde a sombra fatal do caçador mas, sem vacilar, numa derradeira afirmação dos atributos da sua inteireza, investiu contra a ameaça inopinada. Com um lampejo tonitruante a bala penetrou o coração cansado do velho padreador, no cumprimento incontornável dos austeros e inultrapassáveis desígnios da Mãe Natureza. O manto escuro da noite, da cor do luto, numa lúgubre carícia solidária com o silêncio invulgar das serranias colossais, finalmente amortalhou os despojos grisalhos do incontestado monarca daquelas vastidões e abismos.

25 Fevereiro de 1995

Ao alvorecer, sob um ameaçador céu de tempestade, ao ritmo da “Carmina Burana”, na companhia do meu irmão, cruzei as verdejantes montanhas do Alto Ave, acelerando pela estrada sinuosa que transpõe as espectaculares paisagens lacustres da Venda-Nova e de Pisões, a fim de encerrar a época. Após uma brevíssima paragem na cidade avançámos apressados para a zona de Santo Adrião com todos os impermeáveis disponíveis.
O meu posto, no alto de um ermo salpicado de marcos fronteiriços, corroídos pelos vendavais, permitia uma extensa observação. Pinheiros dispersos, enfezados, torcidos pela ventaneira permanente e descascados pelas coçadelas enérgicas dos monteses territoriais, brotavam da escassa vegetação rasteira. Os indícios eram promissores e tudo parecia perfeito, não fosse a chuva gélida em rajadas de muitos quilómetros hora. Todavia, depois da longa expectativa, gradualmente transformada em irritante espera pela desilusão e impaciência de nada aparecer, nem as corridas nervosas e os saltos dos elegantes corços ou o estardalhaço dos cães na vegetação enchumbada pelas bátegas diluvianas, nem a visão deslumbrante do remoto castelo de Montalegre coroado por gigantesco arco-íris bastaram para nos animar. Então resolvemos mudar, ainda que os caminhos fossem inevitáveis atascadeiros e um obstáculo difícil mesmo para os jipes mais potentes que precisavam da nossa ajuda para sulcarem dificultosamente aqueles resvaladiços rios de lama.
Apesar da mudança, foi breve a permanência em tamanhos atoleiros, avançando rapidamente para o conforto da lareira e do banquete previsto. Terminado o animado serão, reconfortados, regressamos a Matosinhos com tranquilidade e muita cautela sob um forte nevão que tudo cobriu.
Eis os caminhos de um caçador ditoso e confessadamente cativo da magia pagã do omnipresente (deus)

Larouco

Telúrico gigante.
A nossa gente,
num olhar de amante,
abençoa sempre…

Texto da autoria de José António Neves
Aguarela de Francisco Charneca - Homenagem aos Matilheiros

25 de maio de 2014

Vamos à Caça

"Meu rapaz, como vais começar a vida de «graúdo», quero deixar-te uns tantos conselhos que nunca mais deves esquecer:
- Quando acordares com dor de barriga, «alivia-te»!
- Quando te fores deitar com gripe, bebe vinho quente com mel (é cá uma bomba, que mata tudo)!
- Quando te doerem os rins, ficares com azia ou estiveres a ver mal, vai ao «Doutor»!
- Quando andares ralado por causa das mulheres, chateado com a falta de dinheiro ou «f...» com os problemas da vida ... vai à caça!"
Foi com estas “deixas” que o Tio Justo, irmão da minha bisavó materna se despediu de mim (já lá vão quarenta e cinco anos), aquando da passagem pela aldeia da minha mãe (Avelelas de Monforte) a caminho de Chaves, para o­nde eu ia frequentar o Liceu.
A leitura que fiz então com os meus dez anos de idade a estes comentários, limitou-se a que caçar era bom, e que o velho tinha muita piada principalmente no que dizia respeito aos palavrões.
Escusado será dizer que este meu antepassado era caçador, e ao que se dizia; ...que caçador!
Justo de nome mas justiceiro como o diabo para com a caça, embora já com quase oitenta, comenta-se que não perdoava ainda às perdizes mais distraídas.
Oriundo de uma família de agricultores medianamente abastada, solteirão e bom vivã, pouco mais teria feito na vida do que namorar e caçar, motivo porque se tornou um especialista em ambas as coisas.
Poucos anos mais tarde, e na verdade não pelos conselhos que ele me havia dado mas por motivos naturalmente bem mais profundos, comecei a calcorrear os montes à procura das perdizes com uma velha “espanhola” calibre dezasseis sem registo, quer chovesse, nevasse ou fizesse sol, quer andasse aborrecido, alegre ou “assim assim”.
Direi por conseguinte que a minha paixão pela caça (que veio cedo e para ficar), se não deveu propriamente a influências ou tradições familiares, mas sim a um encantamento natural que foi progredindo com as várias experiências vividas desde a meninice.
No entanto, e à medida que os anos foram decorrendo, o caçar passou para além da paixão que ainda me move, a ser também e principalmente, um extraordinário “escape”na minha agitada vida pessoal e profissional.
Esta nova forma de encarar a caça, fez-me trazer à memória aquele chorrilho do meu querido familiar e recordar com alguma admiração na sabedoria implícita nas suas palavras.
De tal modo, que por diversas vezes nestes últimos anos não resisti ao impulso de retransmitir a muito amigos e conhecidos, não aquela receita do meu Tio para as diversas doenças de ordem física, mas “aquele outro” eficaz “medicamento” para os males que nos afectam muitas vezes o juízo, dizendo-lhes: vão à caça.
Além deste meu tio-bisavô, na família a caçar (décadas de sessenta e setenta), conheci também o meu tio-avô Justino, irmão mais novo da minha avó, e o “Ti” Paulino, um cunhado do meu avô.
O primeiro, empresário bem sucedido na cidade do Porto, raro era o mês na época de caça que não viesse passar uma semana às terras de Monforte e Rio Livre (sobranceiras ao seu lindo castelo), sempre acompanhado de vários amigos citadinos com o intuito de matarem o vício e levarem o carro cheio de perdizes.
Caçador exímio, que para além de combinar inteligência no caçar com um vasto conhecimento dos terrenos da sua infância, também se fazia acompanhar de boas espingardas e bons cartuchos, condições mais que suficientes nessa época de fartura para o seu grande e reconhecido sucesso.
O segundo, típico homem de Aldeia, agricultor mas também caçador de costado e meio, era um transgressor inveterado que tinha uma característica muito especial e curiosa: sempre que o início da época de caça começava, ele limpava muito bem a sua velha KRUPP, oleava-a, e de seguida pendurava-a na sala de jantar até ao novo início do “defeso”.
Como o caçar para ele era também um meio de subsistência, a concorrência nos montes e as solicitações para acompanhar e ensinar lugares querençudos aos “fidalgos” da cidade (inclusive o meu Tio Justino, seu parente) não lhe agradava por aí além, facto pelo qual em todos as épocas de caça e à laia de justificação, inventava uns problemazinhos nas “cruzes”.
Lembro-me também de outros episódios relacionados com ele, que na altura sem entender muito bem achava engraçados, mas que retratam bem o significado que tinham nessa época alguns abates de caça junto do povo rural:
Quando o Ti Paulino cobrava uma raposa ou um gato bravo, pendurava-os à porta de casa durante uma horas (mais tarde esfolava-os para vender as peles) e a população ia-lhe lá oferecer cestos com ovos e várias aves (particularmente galinhas e perus).
Quando por sua vez abatia um lobo, as oferendas eram ainda muito mais interessantes e valiosas, pois até ovelhas incluíam.
Recordo ainda bem o dia, um daqueles gélidos de Inverno (talvez Janeiro ou Fevereiro de 1965) em que ele trouxe consigo carregado numa mula um lobo de proporções enormes, que lhe rendeu oito ovelhas (talvez o número de pastores da localidade), bem como o comentário que fez então entre dentes sobre um “fulano de tal” a quem o lobo já havia morto mais de quinze das suas cerca de cento e vinte ovelhas: o sovina compensou-me apenas com uma ovelha, como os mais pobres, porque não faz contas a que este abate me custou mais de um mês de vigia e várias cabaças de aguardente para aguentar o frio.
Mas, também caçador embora de características diferentes e que não posso deixar de referir, foi o meu pai, cujo prazer da caça consistia nas esperas aos tordos na época fria de Inverno debaixo das oliveiras, e às rolas no verão, em tardes muito quentes, junto dos charcos dos ribeiros.
Em miúdo acompanhei-o diversas vezes com o intuito de lhe apanhar a caça e levar a escalfeta (apetrecho que consistia numa espécie de braseira ambulante) que púnhamos debaixo dos pés para aguentar o frio dos dias nevoeirentos, enquanto aguardávamos os tordos em habilidosos esconderijos junto dos olivais.
A caça tradicional aos coelhos e perdizes nunca o entusiasmou, e eu por outro lado, também não soube ter na altura engenho suficiente para o convencer.
De qualquer modo, as dificuldades legais e as progressivas exigências para praticar a caça no nosso País, bem cedo o levaram a desistir, até mesmo dessas suas pequenas digressões à passarada.
Um dia ainda matou um coelho numa espera aos tordos, e dizia com o seu ar brincalhão que sempre o caracterizou:
- “Matei-o a cagar”; e de facto matou, e eu testemunhei, mas quem estava a fazer as necessidades não era o coelho...
A última vez que me recordo ele ter vontade de dar uns tiros, já lá vão cerca de quinze anos, e foi num soalheiro Domingo depois de almoço em época de tordos.
Para minha surpresa agarrou na espingarda e cartucheira que eu deixara ao fundo das escadas, e disse-me que no entre-tempo de eu tomar o café, ele iria até ao fundo da “vila” esperar uns torditos e matar saudades.
Cerca de uma hora depois quando por lá apareci, confidenciou-me ele muito aborrecido e intrigado: não percebo nada disto, já pousaram aqui três que apontei bem, deixaram um grande depenadouro, mas nem os vi fugir nem os vi cair.
Dou-me então conta que na cartucheira que repousava ao seu lado faltavam os cartuchos da borda, lugar aonde era costume eu, bem como qualquer caçador nessa época, guardar de reserva para os “imprevistos” três ou quatro zagalotes.
A explicação para o tão insólito fenómeno, ficou de imediato esclarecida.
Os tordos nem caiam nem fugiam, pois à distância a que ele lhe havia atirado, e com tão áspera carga, eles haviam sido pura e simplesmente desintegrados.
Deste modo e com grande pena minha, acabei por não desfrutar da sua companhia nem da de qualquer outro familiar próximo no decurso destes quarenta anos de caçadas memoráveis, tão recheadas de bons convívios, grandes amizades e inesquecíveis momentos.
A caça, para quem não saiba, proporciona também e essencialmente estas coisas...
No entanto, companhia e da boa, foi coisa que nunca me faltou neste meu grandioso entretimento.
Bem hajam àqueles que foram ao longo destes muitos anos os meus companheiros de caça, e que sempre recordarei com prazer e estima:
- Na menor: Ti Ernesto, Alfredo, Ilídio, Armando e Totó Felgueiras, Toninho Grangeia, Eduardo, Zé Augusto e João Antunes;
- Na maior: Luis Lamas, Zé Castro, Dulcínio Grangeia, Mosqueiro, Zé Maria e Zé da Quinta.
Todos eles (dois já desaparecidos), uma segunda família, e que continuam a dizer “presente” (mesmo os que estão no além) em cada nova época que se inicia.
Mas depois deste divagar pelo tempo e pelas memórias, dou-me conta que a noite vai longa, que os olhos começam a piscar e a lareira já se apagou.
Como são horas de restaurar, pois a vida activa ainda se impõe, vou terminar com um “até sempre” companheiros caçadores, mas também recordando-vos: se o dia de amanhã correr menos bem, seja por motivos monetários, problemas de amor ou desavenças laborais, reagi com calma e pensai positivo, pois no fim-de-semana que se aproxima... vamos à caça!

Texto da autoria de Luís Augusto de Melo Guimarães
Foto do Tio Justo (1931)

24 de maio de 2014

Relembrar João Gago da Câmara

Em jeito de homenagem ao João Gago da Câmara, falecido ontem, aos 86 anos, na sua Ilha de São Miguel, transcrevo um excerto da carta que escreveu e remeteu a João Maria Bravo e parte da resposta deste último.
Consta do seu livro Recordações.

“(...) Concordando ou não, ninguém duvida que o Dr. João Maria Bravo, naquilo que escreveu ou disse, fez pensar e agir em benefício da caça, responsáveis ou meros manifestantes. Sempre fui assim também, e, embora as coisas nunca corram a cem por cento naquilo que achamos ser o ideal, temos aquela voz audível pelo respeito que a conduta pessoal sublinha em termos de credibilidade. Isso entusiasmou-me a escrever um livro em que relato como era esta ilha há mais de cinquenta anos, como é que o homem milenário foi caçador, para contar algumas passagens interessantes (pelo menos assim o julgo) do que foi uma vida a pensar na caça, em companheiros inesquecíveis, nos cães, furões, espingardas e historietas, deixando porém um conceito vivido e pedagógico do que deve ser um caçador, diferente do que por aí prolifera, que são, como costumo dizer, caçarretas que atiram para cima de tudo o que mexe.
Não terei a possibilidade de como tu tão bem o soubeste comunicar, relatar caçadas de grande envergadura e que viveste por este mundo de Deus, mas isto, meu velho, andar aos assustados coelhos ou às incautas galinholas, ou perseguir pacassas, leões ou elefantes, nas savanas que também conheci, embora os perigos e a novidade da paisagem, do clima e até das pessoas seja diferente, bate com a mesma força no coração de quem tem por este desporto um indestrutível entusiasmo. (...)”

Resposta do João Maria Bravo:

“(...) Tu e eu, temos da caça, o mesmo conceito.
É uma prática altamente desportiva em que, seja perdiz, elefante ou urso merece sempre o nosso respeito para a merecermos.
Fomos sempre assim e há-de ser sempre assim, até ao último tiro! (...)”

Câmara, João Gago da (2002). Recordações. Gráfica Açoriana, Lda.

22 de maio de 2014

Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer

Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer é constituído pela reedição da obra de Diocleciano Fernandes das Neves “Itinerário de uma Viagem à Caça dos Elefantes”, anotada e seguida de estudos biográficos sobre o autor e sobre João Albasini por Ilídio Rocha. Trata-se, segundo expressão deste último, da história de «um dos não poucos personagens lendários da presença portuguesa em África. Incómodo, porque não pactuou com a corrupção das tropas e funcionários, com o tráfico «oficializado» de escravos, com o negócio da guerra (…) Amigo de Muzila e de seu filho Gungunhana, teve destes as honras militares da hora do enterro. Escritor, viajante, caçador, agricultor, diplomata, foi dos que em África mudaram realmente a história, deixando marcas nas profundas memórias da sua gente».
Nascido a 09 de Julho de 1829, faleceu em Sauíne, no dia 24 de Fevereiro de 1883.
Repousam os seus restos mortais nas margens sul do rio Limpopo, a poucos quilómetros da foz.
A edição original do livro de Diocleciano Fernandes das Neves foi publicada em 1878, pela Typographia Universal de Thomaz Quintino Antunes, Impressor da Casa Real.
Deixo-vos o prefácio de Bulhão Pato:
“Há-de haver dez para onze anos que me foi apresentado o autor deste livro. Diocleciano Fernandes das Neves. Tinha ele então trinta e seis para trinta e sete anos. Homem de estatura elevada, ombros largos, braços e mãos vigorosos, olhos penetrantes e muito vivos, maçãs-do-rosto proeminentes, boca enérgica; uma ruga perpendicular e profunda partindo de entre as sobrancelhas e morrendo a meio da testa; voz forte, mas sonora e agradável. Nos gestos e nos meneios uma grande decisão. Ouvido apuradíssimo. Sentia-se ao seu aspecto e às suas primeiras palavras que estava ali um homem afeito a correr aventuras e a contrastar grandes perigos.
Assim era.
Diocleciano Fernandes das Neves saíra da vila onde nascera, a Figueira da Foz, aos vinte e cinco anos de idade, tomando o rumo da África Oriental.
Moço, forte, inteligente, decidido, ia tratar da vida. Chegando a Lourenço Marques, o mais belo porto de quantos descobriram pelas Áfricas e pelas Índias os nossos extraordinários aventureiros dos séculos XV e XVI, embrenhou-se por aqueles desertos fecundíssimos, tão amenos nalguns pontos, que parecem estar a pedir um idílio à Mosco; noutros, terríveis e rugidores, cenário digno das Euménides e do Prometeu de Esquilo.
Quantas vezes não tiveram a morte diante dos olhos! Ora nas azagaias dos negros selvagens, ora nos cornos dos búfalos, ora nas garras dos leões… e até pela fome!
Esperanças de regressar à pátria com alguns haveres, abraçar a família, amigos; mostrar ufania o fruto de tantas fadigas, poder ser útil a alguém, numa palavra, mocidade, valor, grande sangue-frio, punham peito a todas as agressões e obstáculos e venciam. Passados treze anos, Diocleciano Fernandes das Neves voltou a Portugal. Foi quando eu o conheci e me deliciei muitas vezes ouvindo-lhe narrar episódios da sua vida, sem pretensões retóricas, com graça natural, frase correntia e pitoresca.
Tornou ainda uma vez à África e demorou-se três anos. O ano passado, estando eu na minha casa, vieram dizer-me que me procurava o autor deste livro. Corri a recebê-lo. Aqueles três anos tinham alterado muito as suas feições; mas um dos sentidos é que estava perdido. Ao chegar pela segunda vez a Lourenço Marques, para liquidar os seus haveres, apanhou uma forte constipação, teve a desgraça de cair nas mãos de um curandeiro empírico, que estava ali exercendo as funções de médico e em resultado do tratamento ficou aleijado.
Foi a Paris, a Londres, à Alemanha, a toda a parte, mas em parte alguma achou remédio ao seu mal.
Diocleciano Fernandes das Neves trazia-me o seu livro perguntando-me com a maior ingenuidade se, depois de muito emendado, valeria a pena publicá-lo.
Quando tornou a procurar-me já eu tinha lido a sua obra e aconselhei-o que a publicasse tal qual estava, com o seu dizer familiar, singelo, despretensioso, incorrecto; mas cheio de vida, de movimento, de verdade.
Tem grande interesse para naturais e até para estrangeiros. O autor viveu largos anos na África Oriental e os seus negócios levaram-no a tratar intimamente com aquela gente, a conhecer a sua diplomacia, que também a tem, apesar de viverem aquelas solidões bravias, entre os animais ferozes e tendo a cada passo sanguinolentas refregas com os seus semelhantes, porventura, alguns deles mais carniceiros ainda do que as próprias bestas-feras. Observou tudo com extremo bom senso e muitos dos seus reparos devem ser atendidos pelos homens do governo que tenham a prudência de tratar a sério da nossa grande questão, a questão de África.
Há alguns quadros neste livro que são realmente admiráveis. O leão faminto; a chuva; aquela heroica defesa dos holandeses contra a horda do truculento Dingane; a casa do fantasma, cena digna de figurar entre os deliciosos episódios humorísticos de A. Dumas, à parte o primor do estilo; toda a obra, a meu ver, tem o maior interesse. Oxalá que, em breve, o autor publique outra neste género que já tem quase concluída. No entanto estou seguro que o público há-de apreciar devidamente este volume. Fechando esta breve notícia, escrita ao correr da pena, por mim dou os meus sinceros parabéns a Diocleciano Fernandes das Neves pelo seu trabalho.
Janeiro, 27 de 1878” (pp. 13-14)

Diocleciano Fernandes das Neves e Ilídio Rocha (1987). Das Terras do Império Vátua às Praças da República Boer. Publicações Dom Quixote, Lda.

20 de maio de 2014

África Vivida - Memórias de um Caçador de Elefantes

“África Vivida - Memórias de um Caçador de Elefantes”, de João Teixeira de Vasconcelos, irmão do consagrado Teixeira de Pascoaes, é, na verdade, dois livros num só: o “Memórias de um Caçador de Elefantes”, com primeira edição em 1924, e o “África Vivida”. Saiu ainda uma terceira impressão na década de noventa, mas de todas será esta a mais valorizada. Observe o leitor este pedaço:
- “(…) os grandes problemas filosóficos encontrei-os resolvidos na frase de um preto, que tinha o nome de Matêbo, natural do povo de Maquela:
- Nós somos como a cobra: largamos a camisa no caminho e desaparecemos no capim…” (pp. 125)
Deleite-se agora com o prefácio de Raul Brandão:
- “A primeira vez que vi este homem extraordinário foi numa fotografia ao pé dum enorme bicho caído por terra com uma bala na cabeça. Era um colosso formidável, informe como um saco de carvão donde saiam dois dentes brancos e agudos. Mas muito mais formidável ainda se me afigurou desde logo, o homem esfarrapado e minúsculo, de espingarda na mão, que se atrevera a bater-se com a fera gigantesca. Que tipo só acção e nervos e que serenidade no olhar, na fisionomia, na figura!...
Mais tarde na solidão da Travanca, sob o céu tão próximo naquelas alturas da serra e todo coalhado de estrelas, é que ouvi contar as caminhadas através da floresta virgem do Congo, a navegação pelos rios interiores ainda desconhecidos, o grande incêndio do mato que arde durante meses, as caçadas sob um céu implacável, através das selvas em companhia dum preto, com uma espingarda às costas - e compreendi não só a decisão, a audácia, o sangue frio do caçador de elefantes, mas a beleza da vida livre na África onde o homem só conta consigo e com Deus. Ouvi-lhe quase todo este livro - a hecatombe dos bichos formidáveis, a alegria espontânea dos negros, e certos pormenores que nunca mais me esqueceram e ainda hoje me encantam. Vi luzir entre sombras opacas a fogueira vermelha do acampamento, e morrerem nas florestas infindáveis as últimas brasas do lume, sentindo-lhes a agonia, como quem sente acabar o último fio doirado que nos prende à vida. E segui-o ansioso na pista do elefante ferido, que derruba árvores e abala como uma montanha, deixando atrás de si uma estrada real…
- Mas, perguntei, como se matam estes bichos?
- É a coisa mais fácil deste mundo dizia um inglês: a gente coloca-se na linha férrea, a vinte metros da locomotiva dum expresso a toda a velocidade, aponta, acerta no farol da máquina, e dá um salto para o lado para não ser irremediavelmente morto!
E dito isto convidou-me com a maior naturalidade para a primeira caçada a realizar no Congo. Oh não! Prefiro lê-lo neste livro de aventuras, ou ouvi-lo nos meses de verão na encantadora casa de Pascoaes, entre aquelas quatro paredes onde toda a família unida trabalha na construção dum mundo melhor e mais belo. Desde o pai que conheci aos setenta anos tão moço como os rapazes, e que todos os dias quando regressava a casa das vinhas que tinha plantado, apanhava e trazia na mão, num gesto maquinal mas significativo, uma pequena pedra, até ao mais novo dos filhos, todos acarretam materiais para a mesma edificação ideal.
Uns são lavradores, ou, como este, homens de acção, pioneiros da civilização africana. Outro chama-se Teixeira de Pascoaes, o maior poeta contemporâneo. Foi ali na casa solarenga, com um pátio onde pode manobrar um regimento, olhando nos serões a família sentada à volta da mesa que eu compreendi e se me radicou no espírito a ideia de que a tradição se mantém e que o sonho que nos liga é dos vivos e dos mortos.
A raça é a mesma com defeitos e qualidades que se perpetuam. Os homens que foram ao fim do mundo com um heroísmo admirável, não despenderam mais resistência nem audácia, do que os que partem hoje para o sertão com uma espingarda, ou de que os rapazes extraordinários que numa chocolateira asmática tomam pelos ares o caminho de Macau. Só nos faltam as «elites», os quadros que dirijam esta tropa para um caminho heroico.
Reparem no retrato do caçador João Teixeira de Vasconcelos que arriscou cem vezes a vida durante dez anos no sertão; leiam-no numa das próximas noites de inverno, e digam-me na verdade se o não invejam como eu próprio invejo. Apesar de ser um contemplativo adoro os tipos de acção, capazes de realizarem o seu sonho oferecendo a vida ao destino. O que eu na velhice cismo numa existência independente e feroz, calcorreando a selva até acabar encostado a uma árvore sem dúvidas nem complicações!...
É lendo algumas destas páginas que tenho pena de não recomeçar a vida. Recomeçava-a esfarrapado como um ladrão, com uma espingarda na bandoleira e um pedaço de pão no saco, e internava-me pelo mato, não para matar elefantes, mas para matar de vez o homem inútil, o homem da fórmula que vive connosco, para contemplar a obra de Deus em toda a sua pureza antes do civilizado ter edificado o primeiro chalet no interior da selva. Quem ler este livro despretensioso sente como eu senti uma lufada de ar novo, e se não está já soterrado por uma montanha de civilização e de mediocridade, deseja como eu desejei, fugir para sempre às conveniências, à regra, ao dever, à lei. Mas já agora para mim esse sonho é impossível. Já agora que passei a vida entre papéis, acabarei a vida inutilmente entre papéis, deixando que outros aproveitem melhor a lição de energia que João Teixeira de Vasconcelos nos dá a todos com este livro interessantíssimo.”

João Teixeira de Vasconcelos (1957). África Vivida - Memórias de um Caçador de Elefantes.  Livraria Fernando Machado - Porto

18 de maio de 2014

Dom Dinis e a Dramática Montaria Real ao Urso

(...) Pois foi nestas terras matagosas das margens do Guadiana e de Odiarce, mais claramente na margem esquerda do ribeiro de São Pedro de Pomares, tributário desta ribeira, que D. Dinis, em 1294, saindo de Beja a montear a cavalo, por certo acompanhado por fidalgos da sua Casa, por monteiros de pé e podengueiros da sua matilha de sabujos e alões – um rei nunca rondava sem ser acompanhado pelos mais famosos monteiros da região onde caçava – teve a sorte de «levantar», numa densa mancha de mato desses sítios, um grande urso que o monarca logo começou «a correr» e que o levou a afastar-se dos seus companheiros de montaria para acabar, segundo as fontes de que nos socorremos, por matar o urso num local a curta distância do Guadiana, então conhecido pelo sítio de Belmonte.
Nesse local, que hoje podemos identificar com o fértil território da «Quinta de São Pedro», entre Salmes e Baleizão, mais precisamente com o abandonado «monte» e, talvez pelo facto do ribeiro de São Pedro de Pomares, já em fins de Novembro, provavelmente devido às chuvadas das chamadas «águas novas» ir de caudal engrossado, o urso, fugindo dos matagais da margem direita do Guadiana, onde devia operar a linha dos batedores e, também, do rei e da matilha dos podengos que, por outro lado, o perseguiam, teria, como bom nadador, atravessado o ribeiro e procurado refúgio na margem oposta.
Uma vez chegado à margem esquerda do ribeiro o urso, perdendo contacto com o rei, deve ter procurado abrigo numa daquelas pequenas colinas povoadas pelas «quebradas penhas» de granito de que nos fala o cronista e ter-se «emanchado» no denso e alto mato de estevas, aroeiras e mendronheiros em que esses afloramentos rochosos costumam ser tão fartos.
O monarca continuando a perseguir o urso, terá, também, vadeado a cavalo o ribeiro de São Pedro e, encaminhando-se para o sítio onde hoje se ergue a igreja de São Luís, não teria curado, no ardor da perseguição, do enorme perigo a que se expunha perante o súbito e inesperado ataque de um animal selvagem como o urso, acossado e furioso e talvez mesmo já ferido pela matilha de podengos. Segundo narram os cronistas foi isso mesmo que aconteceu.
O urso, sentido-se perseguido, «emanchou-se» instintivamente num daqueles «castelos» de rochas tão típicos do cenário paisagístico do sítio onde a emboscada veio a ocorrer e quando D. Dinis, a cavalo, se lhe cruzou pela frente, o bicho saiu subitamente do seu esconderijo e, erguido nas patas posteriores, derrubou o rei da sela e, já com ele por terra, abraçou-o e começou a tentar mordê-lo.
Perante a ameaça de uma morte certa às mãos do urso, D. Dinis, segundo a tradição, que ainda hoje se mantém intacta e viva por aqueles sítios – lá estão ainda a chamada «rocha da sela» e uma outra que, dizem, mostra «a impressão da pata do cavalo», que se supõe ter sido, também, derrubado pela força do urso – implorou a São Luís, bispo de Tolosa, a graça da vida, São Luís a quem a própria Rainha Santa se sentia ainda presa por laços familiares e a quem guardava tanta devoção, e conforme assegura, já nos fins do século XVII, o bispo do Porto D. Fernando Correia de Lacerda, o santo bispo atendeu a prece do monarca e concedeu-lhe a graça da salvação da morte naquela horríveis e poderosas mãos do urso.
Agarrado pelas patas do bicho, em luta corpo a corpo, quando ia ser devorado pela fera, D. Dinis parece ter sido iluminado por um fulgor divino e, num súbito reflexo, desembainhou do cinto a sua faca de mato, cravou-a no peito do urso – o cronista aponta, concretamente, a espádua esquerda – e rematou-o, assim, à punhalada.
Este acidente de montaria nos campos de Beja em que D. Dinis, em luta corpo a corpo, mata um grande urso à punhalada, encontra-se hoje clara e iniludivelmente evocado e testemunhado em dois monumentos medievais portugueses.
O primeiro é a ermida de São Luís, entre Selmes e Baleizão, que parece ter sido mandada edificar por voto dos povos daquela região, em acção de graças pela salvação do rei em luta com o urso e não só para comemorar festivamente a façanha do monarca mas, também, para render culto, naquele mesmo sítio, à extraordinária figura mística do bispo de Tolosa alcançando para D. Dinis a graça de o poupar a uma morte certa nas mãos do bicho.
O segundo monumento é o túmulo em mármore, ricamente esculturado, do mosteiro de São Dinis, em Odivelas que, durante séculos, guardou na capela do lado do Evangelho, os restos mortais de D. Dinis. Bela peça de escultura tumular medieval com formosa jacente do grande monarca! (pp. 5-6)

José Pires Gonçalves (1982). Dramática Montaria Real nos Matos do Guadiana, no Século XIII. Edição de «Palavra», com o patrocínio do «Grupo de Amigos de Monsaraz». Gráfica Eborense.

7 de maio de 2014

Uma Viagem pelo Mundo da Cinegética no Uruguai

Um grupo de seis amigos e conhecidos caçadores decidiram este ano ir fazer a abertura da caça ao Uruguai, designadamente às perdizes e às lebres. Para tal fizeram-se acompanhar de três Epagneul Bretões, duas fêmeas e um macho, entre as fêmeas incluía-se a minha Pipoca que já no mês de Julho completa sete anos, e o que lhe falta em capacidade de resistência sobra-lhe em experiência. Os nossos cães de parar adaptam-se muito bem à caça da perdiz Uruguaia já que esta variedade de perdiz  se assemelha muito às nossas codornizes bravas dos Açores, embora tenha uma envergadura  substancialmente maior.  Um cão bem rodado na caça às codornizes nos Açores e que tenha um bom nariz, no segundo dia de caça  já se apercebeu das artimanhas que a perdiz Uruguaia utiliza para se furtar aos predadores e que são muitas.
A caça a estas espécies cinegéticas no Uruguai começa no primeiro de Maio, coincidindo precisamente com o Outono na América do Sul.
Este ano tomamos a opção de não nos integrarmos em nenhuma organização profissional de caça, embora contássemos com o apoio de uma espingardaria em Montevidéu que nos ajudou no acesso a todas as licenças que nos habilitaram a caçar legalmente no Uruguai e nos vendeu as munições. Foi também imprescindível para o sucesso desta organização o apoio de uma família local e na qual destaco um ex-guia de caça que, presentemente, desempenha outra atividade profissional,  mas por uma  amizade antiga nos ajudou muito com a sua experiência e conhecimento dos terrenos. Ainda neste capítulo a vinda antecipada para o Uruguai do Dinis, em cerca de dois dias, também foi determinante.
A caça no Uruguai é dos proprietários dos terrenos e ninguém lá caça sem a sua autorização, e é precisamente neste pormenor que se joga uma parte muito importante dos resultados a obter no acto cinegético, já que a outra parte diz respeito à qualidade dos nossos cães. O acesso a um campo-terreno (1000 a 5000 ha)  pode variar de  quarenta a cem euros, o que no nosso caso dava um custo per capita de cerca de cinco euros. Os terrenos, na sua maior parte, são cultivados com soja e pasto para o gado de carne e leite. Nos cinco dias em que cacei sempre acompanhado com a minha Pipoca fiz resultados extraordinários, com lances inesquecíveis,  e o mesmo se pode dizer dos outros dois grupos de caçadores, já que cada cão de parar caçava com dois caçadores.
Um outro aspecto a destacar foi a elevada componente social muito fortalecida com refeições magistralmente confeccionadas no campo,  aproveitando parte do produto da caça e com o bacalhau levado de Portugal, já que os Continentais que integravam o Grupo se não comessem  bacalhau ficavam muito infelizes. Eu e o José Correia fomos os cozinheiros de serviço, cozinhando eu a caça e ele o bacalhau.
Continua muito impressionante, pela positiva, a riqueza da fauna Uruguaia com particular destaque para as aves, com espécies  muito variadas e de uma beleza indescritível. Do meu ponto de vista mereciam um estudo aprofundado e com toda esta riqueza poderiam incluir roteiros de observação de aves do mais fascinante que se pode imaginar.
Uma outra nota muito positiva vai para a população Uruguaia e em particular a de Trinidad que é a capital do Departamento de Flores. As pessoas ainda se cumprimentam sem se conhecerem e dar os bons dias é mesmo uma prática corrente. Trinidad tem cerca de vinte e um mil residentes e o Departamento de Flores vinte e cinco mil habitantes, com uma área de 5146 Km2, predominantemente agrícola (soja, sorgo, pasto, trigo, cevada e girassol). Eu que quando viajo para estas terras é mesmo para caçar, também aprecio estes pormenores e a etnologia e etnografia Uruguaia.
Soube bem festejar no Uruguai a Vitória do Benfica sobre a Juventus e depois de mais uma caçada muito agradável.
De referir como muito emocionante o reencontro que tive com o Tito,  um Setter Inglês  com quem tive o privilégio de já ter caçado no Uruguai  em tempos idos, e foi muito comovente verificar como ele me reconheceu, foi com muito esforço que tive de conter umas lágrimas . Numa das viagens anteriores não o trouxe  comigo para os Açores devido às complicações e entraves que são colocados ao transporte aéreo de cães. Fui informado que o dono deste Setter, o Nelson Gutierres, tinha falecido o ano passado num trágico acidente com uma carrinha de transporte.
A parte mais negativa deste empreendimento é a caça se desenvolver em terrenos com  produções  excluindo a pastagem, baseadas em métodos de produção intensiva e com o recurso progressivo a químicos e pesticidas,  como é visível na produção da soja. As consequências imediatas são uma redução de todas as espécies bravias que habitam naqueles terrenos e a prazo será a exaustão dos próprios solos como ocorreu em Portugal no Alentejo com a Campanha do Trigo durante o Estado Novo.
Este tipo de produções está a gerar elevados rendimentos de curto prazo e são fruto da procura acrescida para a produção de energia com o recurso à soja.
Um outro aspecto muito negativo são as infindáveis burocracias a que os caçadores são sujeitos nos Aeroportos e nas companhias de aviação quando se fazem acompanhar de cães de caça e de armas de caça, uma autêntica tragédia. Viajar hoje para um caçador deixou de ser um acto alegre e de boa disposição, e transformou-se num sacrifício, razão porque dificilmente regresso a estas paragens. Para me chatear já bastam as viagens inter-ilhas nos meus Açores, e quanto a estas,  e enquanto tiver saúde nunca vou desistir, pois não me importo de as ter de suportar e fazer todos os sacrifícios para praticar a caça com cão e que tanto valorizo.

Texto e foto da autoria de Gualter Furtado

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