A corneta é, essencialmente, um instrumento de sopro, que tanto poderá ser constituída por um chifre, um búzio, como por metal, sobretudo latão e cobre.
Inicialmente o bocal, lugar por onde se sopra, era formado apenas por um orifício simples, como ainda se verifica nos búzios e nos chifres, sendo então o som produzido fruto da passagem do ar expelido em conjunção com a vibração da língua e dos lábios. Trata-se de uma técnica que requer alguma prática, embora não seja de difícil realização.
Mais tarde foi desenvolvido um sistema mais simples, através da introdução de uma palheta no próprio bocal, substituindo, deste modo, a necessidade de executar o procedimento supracitado com a língua e os lábios
Utilizamos diferentes tipos de sons para comunicarmos, quer produzidos através da voz ou de instrumentos.
Exemplificativo deste último, temos, por exemplo, o cornetim utilizado nas forças armadas durante a ordem unida.
O uso do chifre, do búzio, da corneta na caça em Portugal é actualmente, apesar de se tratar de uma prática ancestral, um costume em desuso.
Pretendo, na elaboração deste texto, embora de modo elementar e muito modestamente, contribuir para a inversão desta realidade e ajudar a recuperar este uso.
Tais instrumentos foram utilizados nas mais diversas caçadas em que se perseguiam as presas com cães e eram empregados para sinalizar procedimentos ou indicar o que se estava a suceder.
Ainda se encontram bem presentes na tradição venatória de alguns países europeus, como a Alemanha, a França ou a Inglaterra, entre outros. Possuem toques para cada situação, à semelhança do cornetim na ordem unida que mencionei acima, e melodias próprias como a francesa “Le Chateau de Passin” ou a alemã "Aufbruch zur Jagd", a título exemplificativo.
Quanto aos toques, os ingleses dividem-nos em três grupos: os “signal calls”, utilizados para transmitir informações aos acompanhantes e aos cães; os “disappointed” ou “sad calls”, empregados, por exemplo, para dar conta da perda da presa ou do final da caçada e os “doubled calls”, usados em contraste com os “disappointed” ou “sad calls” para demonstrar grande entusiasmo, encorajamento ou excitação. Dentro destes conjuntos, há então diversos toques que os preenchem, atribuindo à caçada sonoridade e modulação excepcionais. O toque de “blowing for home”, que se insere no segundo grupo, é o único que me parece desobedecer às normas inflexíveis dos restantes, permitindo ao tocador acrescentar alguma da sua originalidade, mas apenas no final da última jornada de caça da época venatória.
Regressando a Portugal, podemos encontrar registos do uso da corneta de caça gravados na arca tumular do Conde D. Pedro, sita na Igreja de Tarouca, que data do séc XIV, e também na arca tumular do falcoeiro-mor de Vasco Estevão de Gatos, do séc XV, localizada no Convento de São Francisco, em Estremoz.
Na página 65.ª, do livro “A Propósito de Caça”, da autoria de João Maria Bravo, encontra-se a fotografia de um caçador português a fazer uso de uma corneta, no decurso de uma batida em Novembro de 1952, em território nacional.
Até à revolução, ocorrida a 25 de Abril de 1974, era utilizada com frequência nas batidas aos lobos e às raposas.
De tudo isto se infere que a utilização da corneta de caça em Portugal tem tradição e era comum!
Francisco Duarte, n’ “Uma caçada em Arraiolos”, narrativa inserta no seu livro “Caça e Caçadores”, descreve-nos como se processa uma linha de caçadores: “No Alentejo, em 1931, as linhas ainda eram de dez caçadores. E, em terreno plano, é muito difícil caçar com linha reduzida, pois as perdizes fogem para fora, logo no primeiro levanto, deixando-se perseguir muito dificilmente se ela é constituída por poucos caçadores.
Em grande parte do distrito de Évora o terreno é quase plano. Por isso as linhas são em caldeirão, isto é, formando um arco de círculo.
Os caçadores que fazem as pontas vão mais adiantados, os contrapontas um pouco mais atrasados, e os do meio ainda mais recuados de modo a formarem o caldeirão.
Nestes terrenos quase planos, os caçadores distanciam-se uns dos outros, por vezes deixando um espaço superior a cento e cinquenta metros entre cada dois caçadores.
Ora, quando eram permitidas linhas de dez, cada uma chegava a apanhar uma extensão de mais de um quilómetro.
Os caçadores que fazem as pontas têm a missão de meter as perdizes para dentro da linha, enquanto os contrapontas marcam, por assim dizer, a trajectória, são o ponto de referência dos companheiros, para manterem a linha em boa ordem e com o arco de círculo sempre constituído.
Esta é a maneira das perdizes não saírem para fora dela.
Mas se os bandos, ainda assim, dão de asa para um dos lados, então o ponta desse lado pára (ou faz peão) e dá o grito: vá de enrola.
A este sinal, o ponta contrário corre imediatamente para o lado solicitado, bem como toda a linha, indo no entanto mais devagar os do lado da ponta que faz peão.
Esta manobra tem de ser feita conservando continuamente o caldeirão.
E aqui é que se pode verificar se uma linha é constituída por caçadores de categoria ou não, visto que o enrolamento deve ser feito com toda a rapidez. Isto porque as perdizes que já voaram, que são as que tentam sair da linha, é que devem ser perseguidas, pois, se o não forem imediatamente, descansam e dificilmente esperam gatilho.
No Alentejo, para conservar a linha sempre bem, é costume cada caçador olhar para o da sua esquerda. Isto significa que o caçador que faz a ponta esquerda tem que conhecer muito bem o terreno e ser verdadeiro técnico da caça à perdiz. “
Mais à frente, sobre a indicação dos lugares que cada caçador deve ocupar, acrescenta: “Devo dizer que a numeração, no Alentejo, é feita da esquerda para a direita e não como há anos vi na Beira Baixa, o que me surpreendeu.”
E ainda a seguir esclarece-nos que: “A bicada dá-se quando um caçador se adianta e se vai postar na frente da linha, esperando aí as perdizes. Isto em terreno plano, dá um resultadão para quem faz a bicada, mas redunda em prejuízo para os companheiros, especialmente para os que estão perto, que deixam de ter perdizes na sua frente.”
Apesar deste autor não referir a corneta, na margem esquerda do Guadiana, as pontas das linhas dos batedores também utilizavam búzios para sinalizar a volta, recolher os cães ou indicar o levantamento de uma peça de caça, pelo que seria perfeitamente natural substituir o grito de “vá de enrola” pelo som proveniente de uma corneta ou de um búzio, sobretudo nas tais linhas com mais de um quilómetro.
Um dos factores que poderá ter sido determinante para a diminuição do uso de tais instrumentos na nossa caça relaciona-se com o decréscimo da floresta portuguesa e a consequente diminuição da diversidade das espécies de caça maior, sendo talvez devido a estas que ainda persista tal conduta nos países que citei acima, pois desenrolando-se a caçada em tais lugares, será muito mais adequado comunicar por toques de corneta.
Outra das causas residirá na eventual falta de conhecimentos do caçador neófito, muitas vezes sem qualquer tradição familiar recente nesta arte e, por fim, no declínio dos mestres fabricantes de tais utensílios.
Salvar esta prática é perpetuar uma identidade, assente em usos e costumes próprios e profundos que nos identificam e distinguem dos demais, pelo que devemos pugnar pela sua recuperação e dela cuidar para que não se perca no esquecimento, certo de que, com este texto, ainda muito ficou por abordar e referir sobre a corneta de caça em Portugal.
*Um agradecimento especial aos Confrades António Luiz Pacheco, João Acabado, Pedro Almeida Alves e Ricardo de Sousa pela valiosa contribuição que prestaram à minha solicitação no portal Santo Huberto, através da enorme partilha de conhecimento e da muita experiência pessoal!
Inicialmente o bocal, lugar por onde se sopra, era formado apenas por um orifício simples, como ainda se verifica nos búzios e nos chifres, sendo então o som produzido fruto da passagem do ar expelido em conjunção com a vibração da língua e dos lábios. Trata-se de uma técnica que requer alguma prática, embora não seja de difícil realização.
Mais tarde foi desenvolvido um sistema mais simples, através da introdução de uma palheta no próprio bocal, substituindo, deste modo, a necessidade de executar o procedimento supracitado com a língua e os lábios
Utilizamos diferentes tipos de sons para comunicarmos, quer produzidos através da voz ou de instrumentos.
Exemplificativo deste último, temos, por exemplo, o cornetim utilizado nas forças armadas durante a ordem unida.
O uso do chifre, do búzio, da corneta na caça em Portugal é actualmente, apesar de se tratar de uma prática ancestral, um costume em desuso.
Pretendo, na elaboração deste texto, embora de modo elementar e muito modestamente, contribuir para a inversão desta realidade e ajudar a recuperar este uso.
Tais instrumentos foram utilizados nas mais diversas caçadas em que se perseguiam as presas com cães e eram empregados para sinalizar procedimentos ou indicar o que se estava a suceder.
Ainda se encontram bem presentes na tradição venatória de alguns países europeus, como a Alemanha, a França ou a Inglaterra, entre outros. Possuem toques para cada situação, à semelhança do cornetim na ordem unida que mencionei acima, e melodias próprias como a francesa “Le Chateau de Passin” ou a alemã "Aufbruch zur Jagd", a título exemplificativo.
Quanto aos toques, os ingleses dividem-nos em três grupos: os “signal calls”, utilizados para transmitir informações aos acompanhantes e aos cães; os “disappointed” ou “sad calls”, empregados, por exemplo, para dar conta da perda da presa ou do final da caçada e os “doubled calls”, usados em contraste com os “disappointed” ou “sad calls” para demonstrar grande entusiasmo, encorajamento ou excitação. Dentro destes conjuntos, há então diversos toques que os preenchem, atribuindo à caçada sonoridade e modulação excepcionais. O toque de “blowing for home”, que se insere no segundo grupo, é o único que me parece desobedecer às normas inflexíveis dos restantes, permitindo ao tocador acrescentar alguma da sua originalidade, mas apenas no final da última jornada de caça da época venatória.
Regressando a Portugal, podemos encontrar registos do uso da corneta de caça gravados na arca tumular do Conde D. Pedro, sita na Igreja de Tarouca, que data do séc XIV, e também na arca tumular do falcoeiro-mor de Vasco Estevão de Gatos, do séc XV, localizada no Convento de São Francisco, em Estremoz.
Na página 65.ª, do livro “A Propósito de Caça”, da autoria de João Maria Bravo, encontra-se a fotografia de um caçador português a fazer uso de uma corneta, no decurso de uma batida em Novembro de 1952, em território nacional.
Até à revolução, ocorrida a 25 de Abril de 1974, era utilizada com frequência nas batidas aos lobos e às raposas.
De tudo isto se infere que a utilização da corneta de caça em Portugal tem tradição e era comum!
Francisco Duarte, n’ “Uma caçada em Arraiolos”, narrativa inserta no seu livro “Caça e Caçadores”, descreve-nos como se processa uma linha de caçadores: “No Alentejo, em 1931, as linhas ainda eram de dez caçadores. E, em terreno plano, é muito difícil caçar com linha reduzida, pois as perdizes fogem para fora, logo no primeiro levanto, deixando-se perseguir muito dificilmente se ela é constituída por poucos caçadores.
Em grande parte do distrito de Évora o terreno é quase plano. Por isso as linhas são em caldeirão, isto é, formando um arco de círculo.
Os caçadores que fazem as pontas vão mais adiantados, os contrapontas um pouco mais atrasados, e os do meio ainda mais recuados de modo a formarem o caldeirão.
Nestes terrenos quase planos, os caçadores distanciam-se uns dos outros, por vezes deixando um espaço superior a cento e cinquenta metros entre cada dois caçadores.
Ora, quando eram permitidas linhas de dez, cada uma chegava a apanhar uma extensão de mais de um quilómetro.
Os caçadores que fazem as pontas têm a missão de meter as perdizes para dentro da linha, enquanto os contrapontas marcam, por assim dizer, a trajectória, são o ponto de referência dos companheiros, para manterem a linha em boa ordem e com o arco de círculo sempre constituído.
Esta é a maneira das perdizes não saírem para fora dela.
Mas se os bandos, ainda assim, dão de asa para um dos lados, então o ponta desse lado pára (ou faz peão) e dá o grito: vá de enrola.
A este sinal, o ponta contrário corre imediatamente para o lado solicitado, bem como toda a linha, indo no entanto mais devagar os do lado da ponta que faz peão.
Esta manobra tem de ser feita conservando continuamente o caldeirão.
E aqui é que se pode verificar se uma linha é constituída por caçadores de categoria ou não, visto que o enrolamento deve ser feito com toda a rapidez. Isto porque as perdizes que já voaram, que são as que tentam sair da linha, é que devem ser perseguidas, pois, se o não forem imediatamente, descansam e dificilmente esperam gatilho.
No Alentejo, para conservar a linha sempre bem, é costume cada caçador olhar para o da sua esquerda. Isto significa que o caçador que faz a ponta esquerda tem que conhecer muito bem o terreno e ser verdadeiro técnico da caça à perdiz. “
Mais à frente, sobre a indicação dos lugares que cada caçador deve ocupar, acrescenta: “Devo dizer que a numeração, no Alentejo, é feita da esquerda para a direita e não como há anos vi na Beira Baixa, o que me surpreendeu.”
E ainda a seguir esclarece-nos que: “A bicada dá-se quando um caçador se adianta e se vai postar na frente da linha, esperando aí as perdizes. Isto em terreno plano, dá um resultadão para quem faz a bicada, mas redunda em prejuízo para os companheiros, especialmente para os que estão perto, que deixam de ter perdizes na sua frente.”
Apesar deste autor não referir a corneta, na margem esquerda do Guadiana, as pontas das linhas dos batedores também utilizavam búzios para sinalizar a volta, recolher os cães ou indicar o levantamento de uma peça de caça, pelo que seria perfeitamente natural substituir o grito de “vá de enrola” pelo som proveniente de uma corneta ou de um búzio, sobretudo nas tais linhas com mais de um quilómetro.
Um dos factores que poderá ter sido determinante para a diminuição do uso de tais instrumentos na nossa caça relaciona-se com o decréscimo da floresta portuguesa e a consequente diminuição da diversidade das espécies de caça maior, sendo talvez devido a estas que ainda persista tal conduta nos países que citei acima, pois desenrolando-se a caçada em tais lugares, será muito mais adequado comunicar por toques de corneta.
Outra das causas residirá na eventual falta de conhecimentos do caçador neófito, muitas vezes sem qualquer tradição familiar recente nesta arte e, por fim, no declínio dos mestres fabricantes de tais utensílios.
Salvar esta prática é perpetuar uma identidade, assente em usos e costumes próprios e profundos que nos identificam e distinguem dos demais, pelo que devemos pugnar pela sua recuperação e dela cuidar para que não se perca no esquecimento, certo de que, com este texto, ainda muito ficou por abordar e referir sobre a corneta de caça em Portugal.
*Um agradecimento especial aos Confrades António Luiz Pacheco, João Acabado, Pedro Almeida Alves e Ricardo de Sousa pela valiosa contribuição que prestaram à minha solicitação no portal Santo Huberto, através da enorme partilha de conhecimento e da muita experiência pessoal!