Fiz anos. Acontece a qualquer um, não é? Não sei, não posso
saber, como cada um de vós comemora o seu dia.
Tempos houve em que o meu dia
era uma festa. Mas, o pouco com que a fazia, esvaziou-se das presenças que a
faziam. E vieram anos em que, enfim, se mastigava o dia. Depois voltei a
desejá-lo: eu queria tanta coisa! Duma simples cartucheira a um atrelado de
cães, duma mala de espingarda a uma edição dum livro anos a fio desejado, eu
precisava e queria tudo.
Hoje, há alguns anos já, devo dizê-lo, não preciso de
nada, não quero nada. Um maço de cigarros serve de prenda. Dos que eu fumo,
claro. Houve até, pelo meio, alguns anos em que dei a mim mesmo "aquela
prenda". Mas, já não quero nada, não preciso de nada. Agradecido,
naturalmente, sempre fui. A família traz uns cheques-livro e eu fico contente.
Podia ser tão sómente um maço de tabaco (dos que eu fumo) e já seria muito bom.
Vocês, claro, não souberam mas fiz anos. Há quem, no seu dia, vá jantar fora, a
um lado qualquer. Mas eu nunca gostei disso. Aprecio estar na minha casa, na
minha jaula, com os meus. Havendo o bulício dos próximos, melhor. Já não conto
- não posso contar - com a repetição dos dias em que ruidosamente apareciam os
que haveriam de ir às sortes comigo. Agora, com o passar dos anos, habituei-me
a um estranho recolhimento em que pesa mais a memória, as
"lembrances" que o foguetório do dia. Mas, a carga de nostalgias que
isso induz e sempre ensombra uma data, que deve ser nobre, porque sempre é um
rei que faz anos tem-me levado a socorrer-me da família para a esconjurar.
Impedida por força maior, a família este ano não esteve disponível. Minha
mulher, sempre amante, sempre amiga, quiz saber o que eu mais desejava para o
jantar. Mas não a pude ajudar, por nada querer, por já nada precisar. "Deixa
- disse-lhe - vou convidar uns amigos e basta-me um copo de vinho, umas
taliscas de presunto". Imaginou, justamente, a casa invadida, inquiriu, barafustou
mas eu, com o meu envelhecido rosto, limitei-me a dizer-lhe "Eu trato de
tudo. Não estragues o MEU dia".
Os convidados começaram a chegar. O primeiro, reconhecio-o logo pelo rosto
picado das bexigas:
- Camilo, que honra, entre... e não se há-de ir embora sem
falarmos da cabra tinhosa no fojo.
- O segundo vinha com a velha samarra: Mestre Aquilino, não
imagina como me alegra a sua presença! Vou querer que me explique como levou um
pointer para a sua Soutosa.
Não imagina como isso me tem intrigado!
E assim se sucederam. O Pe. Domingos, Torga, Galvão...
Acácio da Rapada vinha
com com o Dr. Fausto que, deselegantemente, ainda vinha a remorder «Ele que se
foda, deixa-o ficar, que se aguente se quizer que as perdizes não esperam. Vir
para aqui de fatinho brasileiro e não aguentar uma linha...» e a desdizer de
quem tanto gostava, do Tomaz, que, de resto, também não faltou. Devo-os nomear
todos? Mas, se foram tantos... Invadiram-me a casa, inundaram-me a casa. E eu
apenas com um copo, uma garrafa e presunto de que sobravam apenas aparas.
Lá fora, entretanto, os cães da vizinhança entraram em alvoroço. E como a minha
rua é tal e qual como a que David Mourão-Ferreira escreveu para a Amália "
...rua quieta / onde à noite / ninguém passa..." fui ver. Mal abri uma
nesga da porta, entraram os meus cães todos, alguns, devo dizê-lo, de que eu
ingratamente já nem me lembrava. Com eles reparti o resto do presunto e ergui o
copo a um brinde: um ano, um ano mais, amigos, convosco à minha mesa, convosco
pelos montes onde, neste momento deve estar tanto, tanto frio...
Sérgio Paulo Silva
05/02/2015