7 de fevereiro de 2015

Fiz anos

Fiz anos. Acontece a qualquer um, não é? Não sei, não posso saber, como cada um de vós comemora o seu dia. 
Tempos houve em que o meu dia era uma festa. Mas, o pouco com que a fazia, esvaziou-se das presenças que a faziam. E vieram anos em que, enfim, se mastigava o dia. Depois voltei a desejá-lo: eu queria tanta coisa! Duma simples cartucheira a um atrelado de cães, duma mala de espingarda a uma edição dum livro anos a fio desejado, eu precisava e queria tudo.
Hoje, há alguns anos já, devo dizê-lo, não preciso de nada, não quero nada. Um maço de cigarros serve de prenda. Dos que eu fumo, claro. Houve até, pelo meio, alguns anos em que dei a mim mesmo "aquela prenda". Mas, já não quero nada, não preciso de nada. Agradecido, naturalmente, sempre fui. A família traz uns cheques-livro e eu fico contente. Podia ser tão sómente um maço de tabaco (dos que eu fumo) e já seria muito bom.
Vocês, claro, não souberam mas fiz anos. Há quem, no seu dia, vá jantar fora, a um lado qualquer. Mas eu nunca gostei disso. Aprecio estar na minha casa, na minha jaula, com os meus. Havendo o bulício dos próximos, melhor. Já não conto - não posso contar - com a repetição dos dias em que ruidosamente apareciam os que haveriam de ir às sortes comigo. Agora, com o passar dos anos, habituei-me a um estranho recolhimento em que pesa mais a memória, as "lembrances" que o foguetório do dia. Mas, a carga de nostalgias que isso induz e sempre ensombra uma data, que deve ser nobre, porque sempre é um rei que faz anos tem-me levado a socorrer-me da família para a esconjurar. Impedida por força maior, a família este ano não esteve disponível. Minha mulher, sempre amante, sempre amiga, quiz saber o que eu mais desejava para o jantar. Mas não a pude ajudar, por nada querer, por já nada precisar. "Deixa - disse-lhe - vou convidar uns amigos e basta-me um copo de vinho, umas taliscas de presunto". Imaginou, justamente, a casa invadida, inquiriu, barafustou mas eu, com o meu envelhecido rosto, limitei-me a dizer-lhe "Eu trato de tudo. Não estragues o MEU dia".
Os convidados começaram a chegar. O primeiro, reconhecio-o logo pelo rosto picado das bexigas:
- Camilo, que honra, entre... e não se há-de ir embora sem falarmos da cabra tinhosa no fojo.
- O segundo vinha com a velha samarra: Mestre Aquilino, não imagina como me alegra a sua presença! Vou querer que me explique como levou um pointer para a sua Soutosa.
Não imagina como isso me tem intrigado!
E assim se sucederam. O Pe. Domingos, Torga, Galvão...
Acácio da Rapada vinha com com o Dr. Fausto que, deselegantemente, ainda vinha a remorder «Ele que se foda, deixa-o ficar, que se aguente se quizer que as perdizes não esperam. Vir para aqui de fatinho brasileiro e não aguentar uma linha...» e a desdizer de quem tanto gostava, do Tomaz, que, de resto, também não faltou. Devo-os nomear todos? Mas, se foram tantos... Invadiram-me a casa, inundaram-me a casa. E eu apenas com um copo, uma garrafa e presunto de que sobravam apenas aparas.
Lá fora, entretanto, os cães da vizinhança entraram em alvoroço. E como a minha rua é tal e qual como a que David Mourão-Ferreira escreveu para a Amália " ...rua quieta / onde à noite / ninguém passa..." fui ver. Mal abri uma nesga da porta, entraram os meus cães todos, alguns, devo dizê-lo, de que eu ingratamente já nem me lembrava. Com eles reparti o resto do presunto e ergui o copo a um brinde: um ano, um ano mais, amigos, convosco à minha mesa, convosco pelos montes onde, neste momento deve estar tanto, tanto frio...

Sérgio Paulo Silva
05/02/2015

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