23 de fevereiro de 2010

O Trilho do Caçador

De acordo com o que disse Ortega e Gasset, no seu livro “A Caça e os Touros”, a Caça possui a característica de quase não ter variado na sua estrutura geral desde os tempos primórdios, exemplificando tal afirmação através da comparação da cena de uma batida aos veados, gravada no decurso da era paleolítica, na Cueva de los Caballos, em Espanha, com a de uma imagem fotográfica de uma montaria actual.
Referiu também que a Caça não se pode definir apenas pelo desporto ou pela utilidade, que designou por finalidades transitivas, porque são exteriores, que ficam para além dela e que a supõem, ou seja, que as distintas finalidades atribuídas à Caça não determinam a actuação em que ela consiste, mas modulam somente o seu exercício.
Que tão pouco pode ser definida pelas suas operações particulares, pelas suas técnicas, uma vez que são inumeráveis, sendo que todas e cada uma implicam certos supostos gerais e comuns, que são a verdadeira essência da actividade venatória e que, por isso, é um erro definir a Caça como sendo uma “perseguição raciocinada”, nos termos em que refere Kurt Lindner, no livro “A Caça Pré-histórica”.

Os primeiros Caçadores, foram os primeiros hominídeos. De facto, fomos Caçadores, muito antes de sermos “totalmente” homens. Significa isto que a Caça é uma das nossas heranças genéticas e que se encontra gravada bem fundo no código de ADN que nos dá a forma e o conteúdo (David Petersen, em “Heartsblood”).
Fernando de Araújo Ferreira, designa-o de "Fogo Sagrado"!

A Caça é uma importante actividade social e psicológica para os Caçadores. É uma demanda poderosa e repleta de significado, acima e para além de outras actividades recreativas (Mark Duda).
Paul Shepard referiu um dia que “the hunt brings into play intense emotions and a sense of the mysteries of our existence, a cathartic and mediating transformation”.
A Caça coloca em confronto emoções intensas e profundas, desperta-nos o intelecto para o mistério que envolve a nossa existência!

Conhecemo-la por Diana, nome Romano para a deusa da caça, a rainha dos animais, a soberana dos animais errantes e da natureza livre, mas também é chamada de Thoeris no Egipto, Shakuntala na Índia, Taue Si na América do Sul, Sedna entre o povo Inuit, de Wibalu na Oceania.
Em todos os povos, de todos os países, de todos os continentes, há uma deusa da caça, e algumas delas são tão antigas como a história ancestral do mais antigo desses povos, cuja função essencial reside na atribuição de um significado compreensível e de alguma ordem à vida, bem como estabelecer um conjunto de normas éticas e morais tão essenciais que são à existência em sociedade. Esses deuses tanto podem ser representados através de animais e plantas, rios e vales, lagos e montanhas, o vento que sopra de Norte ou as constelações, como a Ursa Maior ou o Sagitário!

James A. Swan, no seu livro “The Sacred Art of Hunting” refere que, na generalidade das culturas tradicionais, existe a crença de que há muito, muito tempo, os animais andavam e falavam, coexistindo com o homem em igualdade de circunstâncias e comunicando através de uma linguagem comum, geralmente identificada como a linguagem das aves. Uma vez que acreditam que as dimensões do tempo e do espaço se fundem nos sonhos e nas visões, prevalece a crença de que o homem pode reentrar nesse lugar e conversar com os espíritos, tal e qual o fizeram tão inequivocamente os seus antepassados. Acrescenta ainda que crêem que os animais de todas as qualidades se encontram interligados através de uma espécie de teia invisível, que não só os liga entre si, mas também aos seres espirituais que coabitam noutra dimensão mais elevada e que presidem à sabedoria e poderes de cada animal. Que esses poderes podem ser transferidos para os humanos que ganham o reconhecimento desses seres poderosos. Por exemplo, os índios Kwakiutl, acreditam que as almas dos grandes caçadores renascem nas orcas que, para eles, são animais sagrados e poderosos.

Ao contrário dos animais cuja vida não se encontra vazia e indeterminada, como disse Ortega e Gasset, o homem ao encontrar-se existindo, deparou-se com um pavoroso vazio, um espaço que o distanciou ainda mais do mundo natural, donde surgiu e necessita urgentemente de regressar para poder reencontrar-se e compreender-se, e tenta faze-lo desesperadamente desde que tomou consciência da sua humanidade, desde que se tornou caçador.
Os rituais mágicos, os amuletos, o consumo de drogas alucinogénias estão entre as primeiras tentativas de comunicação com os espíritos. Não é por acaso que ainda se reza “O Pai Nosso” na montaria ao javali ou na batida aos veados, da qual disse Ortega e Gasset não ter diferença quando comparada com a gravura existente na Cueva de los Caballos, a tal que remonta à era paleolítica.
Nas grutas de Lascaux, em França, podemos encontrar uma cena de caça que remonta a 17000 anos antes de Cristo, cujo realismo, audácia e movimento inspirou diversos artistas. Picasso, quando com ela se deparou, exclamou: “fui eu que fiz isso!” (La Chasse vue par les peintres, de Sylvie Ménard).

O Sufismo, uma seita espiritual, com origem no Médio Oriente, prega a existência de 72 caminhos, através dos quais podemos chegar a Deus e que todos eles são iguais, sendo um deles o Trilho do Caçador.

A morte de um animal na Caça, seja ele qual for, é um acontecimento triste, mas nunca um acto de maldade, a não ser que o caçador não possua consciência do seu impacto na natureza ou ignore as consequências do seu acto, mas quando assim for, não é Caçador! Por isso mesmo, em tantas culturas por este mundo fora, persistem ritos celebrados também após a morte do animal, para poder dar-lhe o merecido descanso, agradecer-lhe a carne que irá proporcionar e para tranquilizar os deuses, como, por exemplo, o d’"a última refeição", celebrado nalgumas regiões da Europa, em que o caçador serve comida ao animal abatido, tornando-se, por isso, também o local onde foi encontrado e caiu num terreno de caça sagrado.
Nesse contexto disse Fernando de Araújo Ferreira, no seu livro "Galinholas" o seguinte: "não sei se já repararam neles, na expressão desses olhos, quando à vossa mão vai parar uma galinhola de asa... Eu creio que nenhum caçador, que tenha sensibilidade, possa demorar a sua atenção no olhar da galinhola sem que sinta pena, sem que lá dentro haja uma certa revolta por roubar aquela vida à extensão das florestas, à solidão do seu destino".
É assim um acontecimento amargo e desgostoso, mas também de enorme reconhecimento pelo animal que morreu para nos alimentar. Jamais um acto insensível e cruel!

O que mais deseja o Caçador é tornar ao que é natural e verdadeiro e dar o seu válido contributo para o equilíbrio do ecossistema onde todos existimos e nos relacionamos.
Apesar de admitir ser impossível conciliar as suas crenças com as daqueles que o atacam, o Caçador respeita-as, porque aprecia-as, os admiram, e muito, o modo como eles tentam minimizar o seu impacto negativo no Mundo. Nós, Caçadores, também tentamos fazê-lo, mas percorrendo o nosso caminho, tal e qual eles percorrem o deles, e fazemo-lo caminhando no Trilho do Caçador, como sempre o fizemos, desde o primeiro dos dias, e continuaremos a fazê-lo, até ao último dos minutos!

Este texto encontra-se publicado no Santo Huberto e também n' O Baluarte

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