17 de outubro de 2012

O Caçador do Futuro

No n.º 180.º, da edição de Outubro de 2012, da conceituada revista Caça & Cães de Caça, vislumbramos um artigo que nos chamou a atenção, da autoria de Mário do Carmo, intitulado “O Caçador do Futuro”.
Mário do Carmo pratica a actividade venatória há 42 anos. É licendiado em História, Mestre em História Regional e Local, Doutorado em História Contemporânea, cuja dissertação versou a Cinegética, tendo sido adaptada em título “A Caça Através do Tempo”; é quadro superior da Presidência do Conselho de Ministros, actualmente cedido por interesse público à Universidade Aberta como professor coordenador de toda a formação no mundo rural ministrada por esta instituição de ensino. Foi membro convidado do Conselho Nacional da Caça e da Conservação da Fauna, autor de diversos artigos científicos sobre a cinegética e filmes sobre gestão de caça, participou e organizou em congressos, seminários e eventos sobre a caça e o mundo rural.
Poderá ser contactado através do e-mail: marifcarmo@gmail.com

“O verdadeiro caçador é um sabedor dos elementos da natureza, como a fauna e flora, montes e vales, cursos de água, chuva e vento, mas sobretudo é um profundo conhecedor dos animais. Para se ser caçador exige-se ao praticante qualidades fisicas, atributos intelectuais e morais”

O Caçador do Futuro

"O problema venatório insere-se na vida pública de forma subalterna e local com diferentes motivações regionais. Ao mesmo tempo, revela-se como um dos factores mais difíceis de conhecer, para efeitos de estabelecer um pacto social entre proprietários e caçadores. Também é verdade que os políticos (e os Governos) portugueses nunca analisaram, a sério e com espírito de sacrifício, essa pretensão desigual, num país politicamente unificado. No caso da cinegética portuguesa, defende-se, contra isto, o poder político de diferentes formas. Uma delas faz-se personalizando constantemente as ocorrências. São afinal as pessoas que, na política concretizam o significado social dos termos abstractos.
O caçador português, durante várias gerações, foi rotulado como aproveitador de um capital cinegético, em cuja produção não participava minimamente, a não ser exigindo, em cada época e em cada momento, que a ordem natural repusesse os recursos bravios, omitindo o facto dos agricultores, em todo o processo produtivo, terem uma função essencial. Evidentemente, não era com comportamentos negativos que se podia alterar o universo da caça, quando os próprios interessados não colaboravam naquilo que era do interesse mútuo.  
Sabe-se também que à luz de uma certa crítica social têm sido os caçadores portugueses vistos como uma mera massa abúlica, arrastada por influências e motivações alheias. Tal visão unilateral, imediatista, sobre o envolvimento político da sua natureza e comportamento em sociedade, ignora a influência das mediações ideológicas, tendendo a promover agrupamentos em torno das principais opções de regime, não pode ser avaliada em termos grosseiros e absolutos, mas no entrelaçamento com as aspirações e lutas sociais específicas, as situações concretas, as conjunturas económicas e políticas, como expusemos, tão frequentemente.
A actividade cinegética, associada ao meio rural, envolve um profundo sentido antropológico, social, político, ecológico que o caçador do futuro terá que assumir. Contudo, o comportamento contraproducente de alguns caçadores contribuiu para a degradação da sua imagem e da diminuição  do número de praticantes, cada vez mais urbano e menos rural.
Acresce que muitos caçadores se limitam a colher uma quota-parte do capital que não ajudaram a criar, facto que, no seu conjunto, tem transformado a caça em algumas regiões do território nacional  numa actividade egoísta, de costas viradas para os habitantes do mundo rural, quando deviam ser aliados imprescindíveis. Este paradoxo - que radicalizou o clima de contestação - foi inteligentemente aproveitado pelos movimentos urbanos para combaterem a actividade cinegética. 
Também sabemos que a gestão dos recursos cinegéticos é matéria complexa quando briga com os interesses dos proprietários, designadamente quando procura, sem contrapartidas, extrair benefícios cinegéticos, como acontece actualmente com algumas Zonas de Caça Municipais. Portugal é um dos únicos países da comunidade europeia onde a caça não é considerado um fruto. Daí a raiz do problema que, por similitude, justifica os fundamentos pelos quais foi criada a figura do direito à não caça como forma de proteger o património rural.
O futuro da caça e dos caçadores, para lá da atitude que cada um possa ter em relação a esta prática, deverá residir num compromisso harmonioso entre as exigências diversas da sociedade moderna e uma gestão ordenada das populações de espécies cinegéticas, equilíbrio que deverá assegurar uma plena satisfação ao praticante, cada vez mais urbano e parente longínquo do homem-caçador.
Pode-se mudar de retórica, de leis, até de espírito reivindicativo de direitos de caça, mas a caça terá de ser gerida de forma sustentável e racional, de acordo com as condições de reprodução e repovoamento em cada época venatória. Estude-se, da melhor forma, como deve ser alargado o direito de caçar, mas não se termine com o direito de todos o poderem exercer.
O caçador do futuro, face aos desafios que se avizinham, terá de dialogar com os proprietários e todos os intervenientes do mundo rural, criando um compromisso com a conservação do património rural. Para manter viva a actividade cinegética, o caçador-produtor-gestor tem uma missão complicada no quadro rural que se avizinha: compete-lhe administrar os recursos cinegéticos no pressuposto iniludível de os aumentar; deve garantir para as gerações futuras a sustentabilidade da actividade cinegética. É neste compromisso que reside o futuro da caça."

Mário do Carmo (Outubro de 2012). Caça & Cães de Caça, O Caçador do Futuro (pág. 25)

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