13 de maio de 2012

Carta Aberta

Sou um ser humano falso, um fingido, um sádico mascarado de caçador, um mau tipo, um insensível, um mentecapto, um mestre do eufemismo, alguém a quem, por favor, nunca voltes as costas...
Podes tu pertencer aos que dizem que ficas encantado com o campo e com os animais, que amas a mãe natureza e todos os seres que nela habitam, sem excepção. Que te dá prazer visitá-la, se possível na companhia do teu cão, que adoptaste, de passar um fim-de-semana com a tua família ou amigos numa casa rural, esse será sempre o teu plano perfeito.
Desfrutas então quando observas de longe o majestoso voo do abutre, ou o voar rápido do falcão peregrino ou o esvoaçar imóvel do peneireiro.  
Sonhas em conseguir juntar o dinheiro suficiente para conseguires comprar aquele magnífico telescópio austríaco que te irá permitir ver tudo nessas idílicas paisagens, até mesmo o fundo da tua alma.  
Em casa reciclas tudo, para o trabalho vais sempre em transporte público e sempre que podes colaboras com uma organização ambientalista. Sim, decididamente estás comprometido para sempre. Para ti, é isso que é amar a Natureza, o resto - dirás tu - serão cantigas.
Por isso, meu amigo ecologista, que tão bem nos conhecemos, és incapaz de entender porque razão sou eu um caçador e falo de uma estupidez tão grande como o acto de caçar. Como assim?
Eu não posso de forma alguma amar a natureza e os animais pois acabo por, no final, procurar matá-los.
Não, para ti amar a Natureza não é isso.
A minha espingarda será sempre um objecto tétrico, um objecto artificial, que provoca um imenso ruído na paz dos campos, sempre que eu disparo... nunca este cenário poderia encaixar numa tela a óleo de Monet, dirás.
Apesar disso, digo-te e repito que proclamo o meu amor por esta mesma amante, que tu também amas. Mas isso é impossível, dirás. Sou um falso humano, um fingido, um sádico mascarado, um mau tipo, um insensível, um mentecapto, um mestre do eufemismo, alguém de que desconfias e a quem nunca voltarás as costas...não vá o Diabo tecê-las.
Mas deixa-me só dizer-te uma coisa, gostaria muito que, por uma só vez que fosse, te debruçasses comigo sobre a Natureza, aquela que eu verdadeiramente conheço. E que te fundisses com ela tal como eu faço muitos fins-de-semana.
Vem então. Parte essa vitrina que te aprisiona, sai dessa maldita rota do sedentarismo e vem pisar a erva molhada da madrugada ainda escura, que te encharca os pés, sente que és tu o dono do teu caminho e que encaminhas os teus passos para qualquer lado, não te importes nem com o destino nem com a direcção, nem com o resultado.
Esse é o caminho que nós, caçadores, seguimos durante algumas horas, os que deixamos de sonhar em sermos livres para passarmos a sê-lo verdadeiramente, nas nossas jornadas. Sente aquele vento áspero e gelado na tua cara, suja as tuas calças de barro quando saltas aquela charca que está atravessada no teu caminho, treme, encharcado de chuva, frio ou de nervos, quando te sentas um pouco no meio do nada, a descansar, ofegante, naquela imensidão, compreende que, ali, a tua vida, naquele momento, depende única e exclusivamente de ti, pois estás só, ali não existem óleos de Monet, nem a policia, nem a cobertura de telemóvel que tanta falta te fazem. Possivelmente, só os teus companheiros de caça e o teu cão fiel amigo.
Sente-te livre. Pica-te, arranha-te nos tojos quando procuras romper pelo monte acima em busca das perdizes esguias. E sangra das pernas. Acaricia o teu cão companheiro de caça e tenta olhá-lo nos seus olhos fugidios e esquivos. Vais ver que não consegues pois ele está é absolutamente compenetrado em procurar aquela perdiz para ti, que tanto pretendes. Depara-te com a lebre matreira que, dormindo nos pastos, salta à tua frente, em desafio e corrida desenfreada.
Sente as horas, o dia, a fugirem, a escaparem rapidamente debaixo dos teus pés. Desafia essa Gigante toda-poderosa que é a Mãe Natureza. Desfruta-a com toda a atenção a que és obrigado e olha-a com respeito.
Observa como espera a raposa, sinistra, imóvel, como ela salta sobre a ratazana ou o coelho, observa como o falcão peregrino "rasga" aquele bando de torcazes que vem para o Alentejo, onde alguns perdem a vida.
Encontra pelo caminho a cama do Javali, ainda quente, e faz uma careta com o mau cheiro pestilento do animal que ali esteve. Se o encontrares pela frente, vê como o teu sangue parece congelar nas veias durante cinco segundos. Observa como a raposa agarra com os dentes na jugular daquela lebre menos atenta e mais afoita. Sente a fuga do veado , a partir as ramadas das giestas, e que é bem capaz de saltar por cima de ti enquanto foge e escapa aos seus perseguidores, envolvendo o teu coração numa autêntica revolução de sentidos.
Observa muito bem todo esse cenário que nós caçadores vivemos, pois é o mais real que vais ver na puta da tua vida. Aqui estão escritas todas as leis da existência e da sobrevivência. Assim é, há milhares de anos, ainda que tu não o saibas. Uma dessas leis, a mais lapidar, é a da vida e da morte, a de comer ou ser comido, a de fugir ou ser abatido, a de caçar ou ser caçado.
Se tens sangue nas tuas veias, o teu coração irá acelerar e muito ao ser testemunho directo de tão maravilhoso e grandioso espectáculo.
E então talvez compreendas que a única diferença que existe entre nós é que eu não me conformo em ser um mero espectador desta maravilha que é a gloriosa Natureza.
Que eu quero ser o que sempre fui, e que desfruto vivendo a vida da maneira mais simples, esquecendo nestes dias tudo o que aprendi na escola e na universidade, participando nesse formidável jogo de vencedores e vencidos.
Talvez assim entendas porque sou verdadeiramente capaz de me integrar na Natureza como qualquer outro animal. Como animal que tu também foste antes de te tornares completamente artificializado com as tuas teorias humanistas, antes de distorceres a realidade para não sentires o tacto pegajoso do sangue da peça de caça ou do estertor da morte da peça que capturaste e que ainda bate na tua perna, à medida que caminhas.
Nesse dia, depois de veres a vida através dos meus olhos, talvez penses que o meu melhor não é a falsidade e que eu, de facto, amo profundamente a natureza. O meu amor talvez não seja tão idílico, nem tão casto, nem tão puritano como tu gostarias que fosse. Mas é um amor real, longe de ser perfeito, como o que um filho sente pela sua mãe e não como o que uma mãe sente pelo seu filho.
Um amor que por muito que tentes, nunca mo poderás arrebatar.

Um abraço de amizade, de um caçador.

Texto e foto da autoria de Sérgio Vieira, em Histórias de Caça em Portugal

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