8 de novembro de 2010

Caça - Memento Venator

Aqui vos venho apresentar um excerto, intitulado "Lebres e Coelhos", retirado do livro “Caça – Memento, Venator”, de 315 páginas, da autoria de Eduardo Montufar Barreiros, editado pel’ A Liberal – Officina typographica, obra esta datada do distante ano de 1900.
Fala-nos todo este extracto sobre a caça às lebres e aos coelhos, sem deixar de ser uma crónica, mas acima de tudo uma recordação muito pessoal deste nobre homem.
Optei por transcrever somente as partes que dizem respeito ao coelho em detrimento das restantes, pelo que vos suplico o perdão. Umas das razões que a isso me levou foi por ser esta, a par da caça aos patos, a que mais me fascina, enquanto o outro motivo adveio do cansaço que me provocou reproduzir vocábulos desusados.
Convém relembrar-vos que se trata de um texto com cento e dez anos de idade, pelo que irão, por certo, admirar a virtuosa forma de expressão e também estranhar a envelhecida arte da escrita.



"Lebres e Coelhos

Não posso – na qualidade de caçador, se entende – fallar com sympathia d’estes bichos, que na caça, nunca tomei a sério, apesar de não os considerar indignos de um tiro – honra que elles, de certo, dispensariam receber de mim.
Bem sei que entram no numero dos animaes bravios que, perante a lei, dão fóros de caçador a quem os persegue e apprehende; como sei também não ser desprovido de arte o modo de os apanhar.
E não são de poucos os recursos e artificios com que a natureza dotou esses animaesinhos, para se defenderem dos meios de ataque de que ella propria armou os que os perseguem. Contradicção, apparente de certo, e necessaria para a harmonia eterna, com que ella realmente vae ceifando a vida a todos.
Fel’os de ardende sangue, para que o amor – essa felicidade principal dos infimos – os tornasse prolificos; mas aos doze e quinze filhos, que permitiu á lebre ter, por anno (obrigando-a a ser mãe em cada um dos mezes que decorrem de fevereiro a novembro), oppôz, por inimigos todos os animaes carnivoros das florestas e dos ares, e, a mais, o homem; inimigos a que deu o prazer de os caçar – sem distincção de serem filhos ou pães – e a necessidade de os comer – tenrinhos ou durazios. Até os coelhos, que o homem classifica da mesma familia da lebre, perseguem e expulsa esta da sua companhia, e a força a uma vida toda de sustos, errante, em que tem por único abrigo a cama ao ar livre, onde se acoita de dia, vagueando, para o sustento e para os amores, só de noite.
Dos coelhos, fez ainda a natureza, com a fecundidade de que os dotou para conservação da especie, o flagello da humanidade a destruir-lhe as searas: e, dando esta para alimento commum de ambas as especies, obrigou o homem a usar contra elles de todos os meios que lhe suggere ainda para os destruir!
Deu a natureza, á lebre e aos coelhos, côr egual á da terra, para assim melhor se esconderem dos perigos; mas não impediu que o fumegar do corpo, vendo-se sobre as moitas, facilmente os denuncie deitados; e deixou-lhes na pellagem um ponto branco, que serve de guia, quando fugidos, aos que os perseguem.
(...)
Aos coelhos, na cultura do tal instincto, permitiu que se acobertassem em tocas sob a terra, para – melhor do que a lebre – se defenderem, a si e aos seus, mas, nas regiões em que os faz nascer, egualmente nasce a gineta, que ali os mata, e tambem o furão, que n’essas tocas, para si e para o homem, os colhe.
Que resta, pois, para se defenderem, a esses brutinhos, a quem a natureza negou até alcance na vista, concedendo-lhes apenas a vantagem de vêr melhor de noite que de dia? Umas compridas orelhas, movediças, e que, semelhantes as cornetas acusticas, ouvem – para seu martyrio – os mais imperceptiveis sons; e um fino olfacto com que nas movediças ventas haurem os mais tenues cheiros; sentidos que os armam… só para a fuga.
(...)
Os coelhos, sem recursos eguaes aos da lebre para a fuga na carreira, mas mais atilados, esquivam-se em enoveladas e rapidas furtas, muitas vezes com vantagem, aos podengos e aos tiros; e, philosophos, recebem, quando colhidos, mais resignados do que ella, o chumbo ou o golpe fatal atraz das orelhas, que, apesar de brando, tão rapidamente lhes extingue a vida.
Tem arte, na realidade, o caçador que, sabendo das forças e fraquezas d’estes bichos, e dos seus usos e costumes, os procura na estação ou no sitio proprios para a caçada lhe ser propicia.
(...)
E, aos coelhos, não será tambem arte o dirigir a matilha dos esfomeados podengos, a conterem os impetos da paixão e do estomago, e a obedecerem ao caçador, que, ao aceno e á voz, ora os retem na moderada e cuidadosa busca, ora os arrebata na vertiginosa corrida atraz da victima?
E não é arte, senão astucia, descobrir o bicheiro entre a espessa moita o coelho na cama, onde nem os raios X o fariam vêr, e despedir-lhe, na rapida furta, o pau que o deixa morto, ou o chumbo que, a corta-matto, o põe inerte, sem ele vêr o bicho?
E as bem dirigidas batidas, a salto, em cordão com as pontas avançadas, silenciosas, fuzilando mechanicamente e disciplinadas os orelhudos de qualquer especie que levantam? e as de espera com vozearia trazendo ás caladas e immoveis portas as incautas lebres? e as feitas aos coelhos, com gritos, batendo as moitas de que fogem, sorrateiros, para traz indo lançar-se nas portas falsas? todas estas batidas não revelam saber, dextreza e arte?
E é arte ainda, mas de outra especie, esperar silencioso e quieto, nas clareiras, á luz da lua ou pelo alvor da manhã, as lebres e os coelhos no seu pasto; ou durante escura noite, se ao candeio accodem, fuzilar – aquellas ou estes – de peito, quando, sentados, com as patas dianteiras levantadas, olham, curiosos, para o facho, sem nos verem. Nem deixa de ser tambem arte o imitar a voz dos coelhos, com o chio que os faz parar ou attrae á boca do covil para os matar a tiro; ou metter o furão ás covas, acompanhando, á escuta, o guiso que leva ao pescoço para saber da subterranea lucta, que deve trazer á rêde a perseguida victima.
Assim é; (...)
Mais outra vez o relembrar decorridos tempos me vem mostrar o meu estado de alma de hoje em relação ao de então; e a maior piedade, agora, pelas victimas, e o espectaculo mais vivo das bellezas do passado, invadem-me tão doce e intensamente o coração, e o espirito, que, não mais longe do que os momentos que tenho gasto em narrar este conto, já se me apresenta a caça das lebres e dos coelhos mais sympathica."

De referir que os podengos eram utilizados na caça ao coelho e à lebre, sobretudo, pela classe popular, desprovida dos bens e do conforto das mais abastadas, pelo que é por essa razão que o autor a eles se refere como esfomeados.

Trata-se este de um dos mais belos livros que tenho a felicidade de desfrutar, a par de outros que tenho vindo, por aqui e convosco, compartilhando.

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