17 de março de 2010

Oito Séculos de Caça em Portugal

"Oito Séculos de Caça em Portugal", um grande livro da autoria de Miguel Sanches Baêna e de João Maria Bravo, com prefácio de Jorge Roque de Pinho.
Data de 20 de Novembro de 1998, com uma tiragem especial de 3500 exemplares em exclusivo para o Grupo BPI.

"O arranjo gráfico e artístico foi de Angelina Luís.
Os textos foram compostos em tipo gillsans e as selecções de cor foram executadas por Reproscan-Reprodução Gráfica, Lda, que também executou a montagem dos fotolitos.
Os trabalhos de impressão e acabamento sobre papel tulimatt de 150 gramas, da tulipel, foram efectuados nas oficinas da Eurolitho, Impressores Gráficos, Lda."

Possui 9 capítulos, que se desenrolam ao longo de 394 páginas, a nomear:
- I Montaria; II Falcoaria; III O Cão de Caça; IV Armas de Caça; V A Caça à Raposa a Cavalo com Matilha; VI A Caça Ligeira; VII Caçadas e Caçadores - memórias de caça; VIII Armas e Caça na África Portuguesa; IX Jóias e Caça (séc. XIX).

Trata-se esta, juntamente com "A Propósito de Caça" e "A Caça no Império Português", de uma das mais emblemáticas obras da literatura cinegética deste País.

A páginas 324, encontramos uma caricatura de Bulhão Pato, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro in Álbum das Glórias.
Introduz-nos a mesma a uma história, narrada por Saraiva Mendes, intitulada "A Espingarda de Bulhão Pato", que tomo a liberdade de transcrever:

Era Inverno e época de caça. Na Quinta do Minhoto, a dois passos dos Riachos e a seis da Golegã, propriedade de Agnelo Freire Salter de Sousa Cid, grande senhor que se ufanava de ir a Torres Novas apenas através das suas terras, ou fazendo o mesmo da Chamusca a Abrantes, há muito que se preparava a grande caçada às narcejas. Essa ave do Norte da Europa e da Ásia Menor, de enorme bico, espécie comum em Portugal e muito difícil de matar, congregara para o belo palacete do Minhoto algumas das melhores espingardas especializadas em tão apreciada ave, nomeadamente o poeta Bulhão Pato, personalidade diversificada de escritor, caçador e gastrónomo.
Bulhão Pato chegara na véspera. E à volta do farto lume da lareira de oliveira e azinho, teciam-se conjecturas prognosticando o número de peças que cada um mataria no dia seguinte.
Salter Cid, homem generoso e brincalhão, começou a duvidar, em pura chalaça, das proezas venatórias do poeta.
«Você diz que mata esse mundo e o outro de narcejas, pois fique sabendo que o meu amigo José Augusto Saraiva, dos Riachos, chega e sobeja para si.»
O que foste dizer. Abespinhado, ferido no seu orgulho, Bulhão Pato retorquiu:
«Diga lá ao seu amigo se, por mero acaso, matar mais narcejas do que eu, sem errar, perco esta espingarda que me ofereceu o rei de Espanha.»
Todos se riram da liberdade poético-venatória, menos Bulhão, que ensimesmou naquela de haver a possibilidade de alguém o bater nas narcejas!
A conversa à roda da lareira continuava com histórias curiosas. Agnelo Cid, bom conversador, e cuja vida era recheada de histórias, atirou esta:
«Sabe. ó Bulhão Pato, quem é o meu amigo Saraiva? É uma história curiosa e dramática. O José Augusto Saraiva era filho do notário em Trancoso, dr. FrancoVeloso, liberal dos sete costados, perseguido como não podia deixar de ser pelos patuleias, casado com D. Rosa Saraiva, de excelentes famílias beiroas. A perseguição foi de tal ordem que ele viu-se na necessidade de espalhar os três filhos. O José Augusto, que trato como filho, foi-me confiado e os outros dois foram para Vila Franca de Xira e Lisboa, também confiados a correligionários liberais.»
«Então o seu amigo dever-se-ia chamar Franco Veloso...»
«Mas isso era nome maldito e tiro pela certa. Os rapazes adoptaram o nome da mãe para se esquivarem a mais perseguições. Cada um fez a sua vida e parece que escaparam à sanha absolutista.»
«Conte-nos agora uma história sua...»
«Calculem vocês, há anos, estava eu na Feira de Sevilha e vi um cavalo soberbo, montado por um grande de Espanha. Quanto quer pelo cavalo?
O homem mirou-me de alto a baixo e atira: 50 mil pesetas. É meu, disse, e paguei-lhe logo em moeda de oiro. Estupefacto pelo gesto, o conde espanhol nem tempo teve de abrir a boca, pois, para maior espanto do orgulho nobre, rapei da minha navalha e cortei as crinas e o rabo do belo animal e apenas murmurei: era o animal que eu precisava para tirar a água à nora!»
Senhor de enormes propriedades, orgulhoso, cacique da região, onde chegou a ter pequeno exército, por si mantido, era respeitado e temido até em Lisboa, pelo apoio incondicional que dava à causa liberal.
«Ó Cid, foi verdade você ter dito à rainha para vir falar consigo?»
«Não é bem assim, mas quase. A rainha, senhora D. Maria II, estava na Quinta da Broa, do José Rafael da Cunha, no termo da Azinhaga, e mandou um enviado para que eu lhe fosse falar. A minha resposta só poderia ser uma: diga a sua magestade que é tão longe do Minhoto à Broa, como da Broa ao Minhoto! Como é evidente, fiquei na minha casa.»
No outro dia, mal se levantaram, o tema de conversa era o mesmo: a aposta da espingarda. No pátio, os cavalos e as carruagens aguardavam os caçadores.
«Ó Bulhão Pato, quero apresentar-lhe o meu amigo de quem lhe falei ontem, o José Augusto Saraiva.»
«Tenho muito prazer em o conhecer. E, segundo me disse o Salter Cid, o senhor é o melhor caçador de narcejas aqui da região. E ontem apostei com o nosso anfitrião que, caso o senhor matasse mais narcejas seguidas do que eu, lhe daria esta espingarda, oferta do rei de Espanha.»
«Isso é uma brincadeira do Salter Cid. Sou um vulgar caçador, às vezes com sorte...»
«Já lhe disse, se o meu amigo me bater, a espingarda será sua.»
Deu-se a caçada e, na verdade, José Augusto Saraiva foi o que pendurou mais narcejas ao cinto, matando nove, sem errar.
Quando regressaram ao Minhoto, virou-se para o companheiro e deu-lhe a espingarda.
«É sua, Sr. José Augusto Saraiva.»
«Desculpe, mas não aceito. Foi uma brincadeira do Salter Cid.»
«Faço questão.»
E questão foi essa que os caçadores ficaram amigos a tal ponto que José Saraiva se deslocou, por diversas vezes, a casa do poeta, na Torre da Caparica, para daí sairem para caçadas... e a espingarda ainda hoje se encontra na posse da família.

Apenas uma das muitas histórias em "Oito Séculos de Caça em Portugal", para serem lidas e relidas.

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