É sabido ser a caça a mais antiga actividade do homem e que esteve na génese de tantas outras, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento da humanidade!
Então, porque é que parece ser tão difícil, para alguns, entender que somos herdeiros de algo ancestral, que nos acompanha desde os primeiros tempos? De aceitar que nos assiste o direito a existirmos e a praticar essa nossa actividade, a herança mais antiga da humanidade, para a qual possuímos natural tendência?
Afinal porque caçamos? E é ou não legítimo fazê-lo?
Na actualidade, nalguns sectores da sociedade (os mais modernos e recentes, de raiz urbana), considera-se que caçar é um comportamento reprovável... em nome de uma falsa e hipócrita defesa de um ambiente que sofre infinitamente mais com as outras múltiplas actividades humanas, derivadas do desenvolvimento e da modernidade, do que com a prática da caça – esta aliás, quem mais contribui para a preservação e entendimento desse mesmo ambiente.
Que é vicioso, em nome de discutíveis e exacerbados valores sobre a condição animal, fruto do afastamento da realidade da Natureza e do campo. Consideram-no um desvio, fruto do seu alheamento da vida e da morte, naturais, que não entendem e temem! Que é uma expressão da violência e do mal, segundo princípios anti-armas do pacifismo artificial urbano que todavia desenvolveu a violência psicológica, sofisticada.
Mesmo alguns caçadores têm dúvidas em se assumirem, e até vergonha... tentam que não reparem neles, fazem-no às escondidas e defendem-se com pouca convicção, sem saber exactamente porque são levados a caçar, como se só por si a vontade e o prazer não chegassem para o justificar e antes fossem algo de pecaminoso!
Eu, caçador contemporâneo, aos 54 anos, sempre que chego a um local ao ar livre, qualquer que seja o espaço... um quintal, um jardim, um campo, uma praia... olho em volta à procura dos sinais, dos animais e dos lugares onde eles possam estar, as suas possíveis querenças. É instintivo, inconsciente!
Imediatamente avalio vegetação e terreno, procuro pedras ou onde o mar levante. Dou comigo a identificar o posto onde me iria colocar, como entraria no terreno ou aonde iria à procura de presas!
Não olho para um rio ou pedaço de mar, um bosque, montanha ou planície... que não pense imediatamente que animais ali se encontrarão!
Vejo qualquer espaço aberto e me dá vontade de pôr a arma ao ombro, assobiar ao cão e marchar rumo ao horizonte...
Chegando a uma praia, olho imediatamente para o mar a avaliar o seu potencial, o estado de força, a limpidez, altura da maré, manchas de pedra e outros sinais...
Mal avisto um pedaço de oceano, logo me apetece enfiar máscara e barbatanas e ir por ali fora, de arma na mão!
É mais forte do que qualquer outra coisa, e sempre assim foi desde que me lembro!
Ora o que é isto? Só tenho uma explicação:
- SOU CAÇADOR! Em todas as fibras do meu ser... até ao mais ínfimo protão!
Porquê? Pois porque há em mim um qualquer código que me faz ser assim. Como sei que existe noutros e sei que existem outros cujo primeiro olhar é para os biquínis, ou para a luz e côr do enquadramento que daria uma tela ou uma fotografia; os que ouvem música no vento e nas ondas, ou os que desenham na mente a casa que ali construiriam... cada qual nasce com a sua sensibilidade e tendências...
Os meus antepassados foram formidáveis caçadores! Se não o tivessem sido não estaríamos aqui a discorrer sobre estas questões! Porque o homem é fraco, corre pouco, não possui asas, tem pele fina e nua, unhas curtas e dentes pequenos... Teria sido comido pelos carnívoros, ou, sobrevivendo de raízes, frutos e plantas, não teria chegado ao nível actual dos nossos detractores nem aos locais onde eles se exprimem. Seria um tímido herbívoro não evoluído, um saguim grande e triste, nu, com frio e miserável, em permanente busca de comida e estado de vigilância. Se “eles”, os modernos e os que se julgam anti-caça, se acham no topo da evolução humana, foi por terem sido criados a carne e porque os seus antepassados caçaram e comeram carne!
Este antepassado caçador tinha prazer na caça! Tinha que ter... a necessidade de caçar, teve de proporcionar esse prazer, como tudo o que é instintivo e fundamental à sobrevivência das espécies:
- O prazer do sexo, da comida, de mitigar a sede, de sentir o calor quando se tem frio ou o fresco quando se tem calor... são indispensáveis à própria vida! Por isso os animais brincam e têm prazer nos jogos onde treinam para a sua sobrevivência: as lutas e emboscadas dos leões, o correr e saltar das gazelas... as acrobacias dos macacos e das aves, as brincadeiras das focas, lontras ou golfinhos.
Fala-se da morte e associa-se esta à caça... tentam que seja um argumento de peso contra ela mas, a verdade é que há caçadores e presas em todos os estratos da vida! A morte ocorre em todos os seres e faz por isso parte da vida, e de uma relação profunda e natural, que permite a transmissão da matéria e da energia.
Existe uma teia intrincadíssima entre TODOS os seres vivos, que os condiciona. Nós não somos excepção! Basicamente o homem é um animal e igual a eles: nasce, cresce, reproduz-se e morre! Mas, quanto mais sentimentos desenvolveu e mais elevados, mais se distanciou do básico e portanto do animal. Tanto o animal como o homem partilham sensações físicas elementares como a sede, fome, calor, frio e cansaço. Possuem ainda outros sentimentos mais elaborados como o medo, a disposição para o combate, a luxúria e até o amor maternal. Porém, o homem desenvolveu outros sentimentos ainda mais sofisticados, ao nível da psique, que só ele possui, o tornam diferente e elevam a níveis inacessíveis ao animal!
Nós matamos porque somos caçadores! Sem raiva... porque na Natureza, a morte de uns é a vida de outros. Matamos as presas, naturalmente e em paz! Não porque as odiamos, como o leão não odeia zebras nem a aranha odeia moscas! Mas precisam delas para viver e as capturam, naturalmente. Quando damos a morte é por uma razão: a morte de uns dá a vida aos outros, é assim a ordem de toda a Natureza, das plantas aos animais! A grande árvore que morre, apodrece e dá de comer ás novas... e a tantos insectos e estes aos pássaros e até ao urso... Se tiramos uma vida, podemos todavia dar-lhe continuidade porque ao comer o ser que morreu, o incorporamos, e ele continua assim a viver em nós, até por nossa vez morrermos e sermos incorporados na terra e nos vermes e daí passarmos às outras formas de vida, as plantas e os outros animais. Por isso a vida se mantém, é passada de uns seres para os outros. Nós somos meros transportadores de energia, através da vida.
Dar a morte é algo de natural, porque morrer é consequência de estar vivo e o fim dessa mesma vida. Nós damos a vida ao fazer filhos e também damos a morte... é o mesmo e faz parte da nossa condição! O caçador o pratica, com respeito pelos animais a quem dá a morte pois não o faz com o mesmo sentimento do assassino ou a raiva de quem se vinga ou quer suplantar o adversário, e o faz com frieza e eficiência! O objectivo é matar e não fazer sofrer! Mata porque tem de ser, tal como o leopardo mata a gazela, a águia o coelho e o tubarão a foca. Fazemos parte de um todo onde se mata e se morre, como a morte faz parte da vida. E é por isso que sendo caçadores, amamos os animais que matamos e não os odiamos! O pastor, esse odeia o lobo que lhe come o rebanho, o agricultor odeia o javali que lhe come a seara! Podem odiar, e se compreende, mas raramente os matam, e, quando matam alguma coisa é aos seus animais, para os comer, e também não os matam com ódio, matam-nos com indiferença e porque é preciso! Matar com ódio, mata o assassino, por maldade...coisa que nem a cobra ou o crocodilo fazem, porque o criminoso é mau, é baixo! Está no mais baixo nível da existência!
O homem se foi libertando desta teia e saiu dela, por força da sua evolução e do desenvolvimento, arranjando formas dela menos depender. Mas continua a depender da morte, porque come seres que estiveram vivos... animais mortos, e, ao comer as plantas também as mata! A morte estará sempre associada à transferência da energia natural!
O gosto natural pela caça, o “gene do caçador”, existe e está no nosso código genético! Em todas as classes de seres vivos, em todos os estratos e em todas as comunidades, há predadores e presas, que a Natureza na sua complicada rede de interacções e relacionamento criou, de modo a que se regulasse e mantivesse numa dinâmica de evolução e vida. Esse gosto manteve-se ao longo das gerações, como o gosto em procriar ou comer. O homem ao evoluir ganhou outras sensações que são seu apanágio: os gostos e os prazeres sofisticados, apreciar uma paisagem, um vinho, ouvir música, jogar um jogo complexo! Porque só o homem tem o espírito, ou a "alma", que lhe permitiu desenvolver tais sentimentos superiores, como o amor ou a piedade! Isso o que distingue o homem dos animais... que não os sentem. Por exemplo, e desde logo, a piedade, que nenhum animal possui, por força da sua condição como pela sua total inutilidade ou mesmo vantagem de não a manifestar! Pode imaginar-se que o lobo tenha piedade pelo veado? Seria anti-natural! Ou o amor, o amor puro dos amantes ou pelas outras pessoas que conduz a praticar o bem, e, a generosidade! São sentimentos exclusivos do homem, como apreciar as coisas belas e boas, a gastronomia, a música e o canto, a dança ou um simples pôr-do-Sol! Tudo coisas que o homem desenvolveu, inatingíveis para os animais e que os separam. Coisas que diferenciam os próprios homens e os colocam em diferentes níveis da evolução: da cupidez do ladrão, do ódio do assassino, da luxúria do tarado - exacerbações extremas de paixões - , ao homem que se eleva pela sua arte, ou pelos sentimentos generosos da partilha ou da ajuda, e finalmente ao Santo, cujo desprendimento é total!
Esse gene do caçador, pode existir ou não, como pode estar activo ou adormecido. Neste caso pode revelar-se tardiamente ou nunca se revelar! Porém em nós, ele está activo e nos impele a caçar, como nos podia ter impelido a ser músicos, militares, cozinheiros! Por isso, para mim, caçar é sentir a satisfação e a liberdade imensa de seguir essa tendência que vive no meu ser! O desapego, o afastar de tudo, onde nada mais conta nem importa senão o ir, o procurar... não importa o quê!
Reprimi-lo seria a atrofia de uma tendência natural, a infelicidade e a frustração. E, preciso sim de capturar uma presa, de me apossar dela, de a sentir como sendo minha! De experimentar essa sensação da posse, a satisfação atávica, animalesca e ancestral de "apresar". Não se confunda com matar! Nada tem a ver, porque logo depois a minha parte humana, a alma, se enche de pena e se pudesse daria vida àquele animal e o perseguiria outra vez, pois ao caçá-lo criei uma ligação com ele, me identifiquei com ele e passei a depender dele, como num namoro!
Será assim tão difícil de perceber? E de aceitar? Isto faz de mim um ser vicioso e mau? Um sádico criminoso, como pretendem os que não o entendem... talvez porque nunca lhes explicaram as coisas deste modo, presumindo eles de acordo com a sua percepção?
Depois, comê-la-ei... é outra parte dessa condição de ser caçador: sou impelido a comer a minha captura! Os antigos caçadores, os mais primitivos e os filósofos, explicam bem esta parte, pois ao comer o animal, o incorporamos em nós próprios e ele continua a viver, em nós... é algo de profundo que explica a forte ligação da caça à gastronomia, para lá do pragmatismo puro da alimentação e sobrevivência.
A seguir, partilho com os outros esse momento da posse: o lance vivido! Exibo-me e recebo o reconhecimento dos meus iguais, a admiração. É a vaidade humana entendida sob a forma da recompensa, que nos leva a procurar a eficiência para o bem comum: É-se enaltecido mas se contribuiu para o grupo! O que em tempos idos teve a maior importância e por isso se manteve e nos marcou! E não funciona só na caça!
No acto de historiar, há ainda um componente fundamental: a partilha da experiência e do saber adquirido. O ensinar e o imitar, que melhoram a técnica e portanto os resultados do grupo! Ou julgam que é por acaso que somos uma confraria de "mentirosos"? De contadores de histórias e de potenciais vaidosos?
Percebe-se que a prática da caça mantém a nossa ligação à Natureza, e, que nos reintegramos nela ao regressarmos à condição do caçador. O homem, que se afastou da Natureza, regressa assim ao seu estado mais natural ou primitivo, renova energias, limpa as frustrações da vida moderna, reaproximando-se da Natureza e de si mesmo, como os adultos tendem a voltar à infância ou aonde foram felizes! Mais do que isso, imergem na Natureza, onde têm lugar, são aceites porque o caçador faz parte dela e está previsto! A sua actividade é sustentável, como não é a do homem construtor de mega urbes e do desenvolvimento industrial!
Claro que usufruir da Natureza, também outros o fazem! O caminheiro, o fotógrafo e o observador de pássaros, o mergulhador, o ciclista de btt e o alpinista... experimentam esse contacto, mas apenas o contacto e porque não possuindo o gene do caçador, isso lhes basta. Não têm de satisfazer a necessidade de caçar, de se apoderarem de mais do que sensações ou imagens. A necessidade do caçador é ainda mais física! Além do esforço e do jogo da caça, de iludir o animal, importa a sua posse: a captura! A captura é o grande objectivo! Assuma-se e entenda-se, porque sem a captura do animal, o caçador primitivo não sobrevivia... ele não se alimentava de sensações nem de imagens, e sim de carne!
A caça evoluiu, mas não pode ser separada dessa posse, que redunda na morte... a pesca sem morte é a excelência... quando houver a caça sem morte, talvez surja um novo caçador... porém ficará sempre o vazio da posse física, de incorporar o animal, que hoje ainda não dissocio da caça. No futuro... não sei, pois já não será nesta minha vida. Sei sim que a caça evoluiu também, acompanhou o homem... a que se pratica hoje pouco tem a ver com a do início do século passado, menos ainda com a da idade média e nada com a da pré-história... salvo pelo que se manteve, o impulso de caçar e a finalidade de apresar! Mas em contrapartida e pela lei das compensações, assumiu uma maior importância quer na ligação à terra e à Natureza quer na sua preservação, pois que graças à caça e pela caça, sobrevivem hoje espécies e se mantém o ambiente e a biodiversidade! Não tenho dúvida de que o caçador em mim passará a outro, como me foi passado e se manifestou em mim, e assim acontece desde o início dos tempos, porque ele é útil! E passará, não só pelas leis da genética mas também por via das idéias que se divulgam e cultivam, outra admirável e exclusiva capacidade humana!
É verdade que o caçador procura um regresso à Natureza? Sim, o operário da cintura industrial das grandes cidades, o urbano dos bairros citadinos, o que vive nas metrópoles, os saudosos do campo e da vida ali, que mantêm vestígios da cultura campesina, e são ainda muitos, hoje talvez até a maioria! Porém e o caçador rural, o aldeão que vive na, com, e da Natureza? Como pensar que vá à caça para se sentir próximo da Natureza? Também isso não basta...
Então afinal porque caçamos?
Bom, eu, caçador actual e ser pensante, cheguei à conclusão que, quando pego na arma e saio para o campo ou para o mar, afinal aquilo que faço é perpetuar o gesto do meu longínquo ancestral, no momento em que empunhou pela primeira vez uma arma e alijando a sua condição de presa, se ergueu em glória de predador!
É isso que eu revivo e celebro desde essa altura!
É o que me foi passado no código genético e que eu passarei a outros, por muito que nos “eduquem”, reprimam ou reprovem.
É isso que nos diferencia do alpinista, do passeante, do observador!
É isso que nos leva a ser o que somos...
Afinal é por isso que caçamos!
Foram os caçadores que deram aos artistas e aos filósofos a oportunidade de o serem... que proporcionaram à humanidade chegar até hoje. Foi a caça que lhes permitiu estarem aqui hoje, os biólogos e políticos, os “bem pensantes” dos direitos animais e do ambiente, os “modernos”, todos os que agora tentam acabar connosco!
Deviam estar-nos gratos, perceber o nosso direito a existirmos pelo simples facto de o sermos e gostarmos de caçar, e, não acabar connosco porque já não lhes fazemos falta, porque perderam a capacidade de nos entender e ignoram este facto ancestral.
Não teremos então já, o direito a existir?
Não pretendo fazer de ninguém caçador, tão pouco impor que seja obrigatório caçar... como o fariam os meus detractores! Procuro apenas divulgar porque sou caçador, e que me respeitem por isso.
Não luto para impor as minhas idéias e sim pela defesa de ter direito a elas!
António Luiz Pacheco, Fevereiro de 2010
Texto da autoria de António Luiz Pacheco e aqui reproduzido com a devida autorização do autor