Ricardo Bensaúde, o autor deste "Caçador de Angústias",
é filho de Maurício Bensaúde, que foi um dos raros vultos nacionais de ópera a
nível mundial, e familiar de Vasco Bensaúde, outro distinto Açoriano, que encontro elogiado no jornal “Caça”,
mensário publicado nos Açores, em 1936 e 1937, como caçador e benemérito, e
também no exemplar que possuo do “Estudo sobre o Perdigueiro Português”, de 1937,
da autoria de Leopoldo Machado Carmona, onde se pode ler na dedicatória,
manuscrita e assinada pelo autor, em 19/VII/1937,: “Para o meu Exmo Amigo
Senhor Vasco Bensaúde, ilustre canicultor e grande impulsionador das Exp. Can.
Port. (...)”
Ricardo Bensaúde distinguiu-se na pintura e deixou-nos este
livro, onde nos relata os seus episódios de caça na Europa e no Brasil.
Dele transcrevo "Caçadas nos Pirinéus":
"Era ainda noite e um vento áspero enregelava-me as costas.
Para me aquecer, desmontei e segui a pé pela encosta pedregosa.
Durante a subida, agarrado ao rabo do cavalo, ofegando e
tropeçando nas pedras, ia com a imaginação antevendo as peripécias da caça que
me esperavam lá em cima.
Ouvia-se apenas o resfolegar do cavalo e o ruído dos seus
cascos na rocha.
De baixo vinha o canto de um galo e, de muito longe, um coro
suavíssimo, de outros galos que respondiam.
Mais cedo do que esperava, a encosta tornou-se impraticável
para o cavalo e tive que o mandar de volta para Troumouse.
Fiquei só com o contrabandista.
Entretanto, lá em cima, os cumes dos montes avermelhavam-se
com o primeiro raio de sol. Nós, na sombra e no frio, continuávamos a subir
pelos desfiladeiros intermináveis para atingir a zona de caça, que começa a
partir dos dois mil e quinhentos metros de altitude.
Chegados por fim a um desfiladeiro coberto de neve,
combinámos que cada um de nós explorasse uma vertente, para depois, mais acima,
nos juntarmos de novo. Separámo-nos e prossegui sozinho.
Avançava com cautela, explorando com a vista as rochas
distantes e, um por um, todos os recantos, com aquela expectativa ansiosa que
dava um encanto quase poético às caçadas da minha juventude. Durante horas,
bati o terreno áspero inutilmente.
Ao entrar numa zona sombria, de repente estaquei e agucei a
vista: não havia dúvidas, aquele vulto ali deitado que via entre duas rochas,
mais abaixo, era o de uma camurça.
Só quem caçou esse esplêndido animal sabe quanto é
emocionante o seu encontro, depois de tantas fadigas e de tanta ansiedade.
Ofegante como estava, esperei alguns momentos para acalmar
as batidelas do coração, antes de atirar. Depois apontei a arma, mas logo
desisti, considerando que o alvo se apresentava mal, tornando o tiro
problemático. Não podia falhar aquela ocasião, e decidi aproximar-me. Comecei a
descer, com extrema prudência, quase rastejando, quando, vindo de cima, ouvi um
silvo. No alto de um paredão, a uma centena de metros de mim, recortada contra
o céu, magnífica, uma camurça olhava-me. Parecia compreender que estava fora do alcance prático da minha
carabina. A outra camurça, por baixo, alertada pelo silvo, já estava em fuga,
num ruído de pedras rolando.
Ficámos, o animal e eu, longos instantes a contemplar-nos,
ele, seguro por estar distante e da parte de cima, eu, com a minha arma de
guerra, uma Lebel, sem óculo de alcance, impotente para atingi-lo àquela
distância. A camurça lançou alguns silvos ainda e desapareceu. A desilusão foi
tão viva que me acompanhou, cáustica, pelo dia fora.
Procurei o meu companheiro, tentei desabafar com ele, mas em
vão. O melhor era seguir em busca de melhor sorte, e lá fomos em direcção ao
cimo da montanha para alcançar a outra vertente.
O topo dessa alta serra, de cujo nome me não recordo, mas
que se acha perto do Mont Perdu, nos Pirinéus, era alongado e estreito como uma
lâmina virada para o céu, com um gume da espessura de dois metros, talvez, e o
comprimento de cinquenta ou mais. Para lá chegar subimos um canal de pedras
soltas. O meu companheiro disse-me então que exploraria a outra vertente,
voltaria para me comunicar o resultado e combinar o que faríamos depois.
Vi o contrabandista desaparecer, silencioso, por detrás das
rochas. De novo fiquei sozinho.
Naquela nesga de terra, limitada por paredes a pique, tive
uma sensação de vertigem. Sentei-me e depois acabei por estender-me, de tão
cansado que estava. Com o sol na cara, naquele silêncio empolgante, fiquei a
olhar as nuvens brancas que passavam por cima. Seguindo-as com os olhos
relembrava o episódio da camurça perdida, remoendo a minha desilusão.
Pouco a pouco, fui cerrando as pálpebras, vencido pelo
sono... mas uma sombra passou de repente. Abri os olhos e vi um vulto escuro
por cima de mim, tão próximo que se tivesse alongado o braço poderia toca-lo:
uma águia! Vi as garras estendidas e até as escamas das patas, o vibrar das
asas e os olhos cruéis pregados nos meus... Tudo num relance, porque, com o meu
estremecimento, o vulto desviou-se e mergulhou no espaço!" (pp. 31-36)
Bensaúde, Ricardo (1966). O Caçador de Angústias. Sociedade
de Expansão Cultural - Lisboa. Gráfica Santelmo, Lda.