A caça ao troféu, apenas e só pelo troféu é, dentro da actividade venatória, a que menos argumentos apresenta para a firme defesa dos Caçadores.
Pessoalmente muito me custa a compreender a morte de um animal pela mera razão do bicho ostentar um conjunto de atributos físicos exemplares, que depois de medidos e certificados são transformados em pontos, medalhas e demais distinções.
Nessa busca pelo maior e mais belo troféu, não estará também a ser prejudicada a qualidade genética das espécies caçadas?
Não falarei nem de um, nem do outro, porque não entendo semelhante comportamento e porque, quanto à questão, também não lhe sei a resposta.
Dedico sim as linhas que se seguem a todos aqueles que buscam no lance de caça uma experiência pessoal enriquecedora, uma memória para a vida, uma narrativa, o seu verdadeiro troféu!
O troféu de caça não se trata somente de uma recordação e muito menos de uma mera demonstração de triunfo. Perpetua uma memória e honra um animal; seja através da pena de pintor da galinhola, das navalhas de um javali, das hastes de um veado, do crânio de um lobo ou do corpo inteiro de um leão.
Nele valoriza-se o modo como viveu e foi abatido, jamais o facto de estar morto – o que menos importa.
A moderna taxidermia oferece-nos verdadeiras obras de arte que procuram representar a relação que o caçador desenvolveu com o animal no decurso da caçada.
O troféu ideal será o de corpo inteiro, mas nem todos os caçadores possuem capacidade para tal, por diversos factores.
Independentemente do tamanho ou da parte que se optar por manter, o que nele deve ficar imortalizado é o espírito e a essência do animal, sob pena de o diminuir e desvalorizar.
A pose sobre a qual ficará imortalizado deverá ser a mais natural possível, de modo a poder transmitir-nos como se movimentava e vivia, devendo evitar-se exageros antinaturais ou atitudes demasiado agressivas.
Concluído e observado esse trabalho por si só, na ausência do caçador e sem a sua explicação, por mais admirável que se nos possa apresentar, ficará imperceptível tal conexão e não o compreenderemos.
Tudo não passará de uma montagem inerte, que nada nos transmitirá,... um desperdício!
O troféu é único e permanece vivo apenas na memória do caçador que o tomou.
Não se consegue verdadeiramente um troféu de caça num ambiente fechado, artificial e controlado.
O caçador, para o poder ganhar, deve assumir o predador que existe em si, integrar-se e envolver-se intensamente na perseguição do animal selvagem, tentar conquista-lo na natureza bravia e aceitar a possibilidade de derrota, de não conseguir alcançar o alvo.
Jamais deverá confundir-se o troféu de caça com um prémio desportivo, atribuído e testemunhado por estranhos, porque a caça é pessoal e muitas vezes um acto solitário, pelo que deve ser o próprio caçador a decidir se o merece realmente. Decisão essa baseada no seu conhecimento e experiência.
Não deixa de ser, antes de mais, um objecto de recordação, emblemático do animal e do seu local de origem, que acabará por ser exposto num espaço distinto e distante do lugar onde foi capturado, porém, ao contrário dos outros artigos de recordação, o troféu de caça é único, não pode ser produzido em série, comprado e muito menos oferecido, porque simplesmente não teria qualquer significado ou lugar na narrativa verídica que lhe devolve à vida.
Tudo se inicia no próprio acto de caça e desenvolve-se ao longo das etapas de conversão do animal numa tábua ou num elaborado diorama, através de um processo que transformará o animal vivo e impessoal numa representação da relação íntima e única que possui com o caçador, procedente do drama entre a presa e o predador.
Uma das primeiras etapas após a tomada do animal é a realização do quadro de caça, muitas vezes perpetuado através da fotografia.
Até este procedimento, se bem observado, distingue-se do retrato turístico partilhado com os amigos por ocasião do relato da viajem. Neste, o turista apresenta-se descontraído, por vezes em movimento, sem grande cuidado quanto ao enquadramento da imagem e, em todas, aparece defronte do motivo fotografado.
Tal já não acontece na fotografia de um digno troféu de caça.
Verifica-se o respeito pela regra dos terços, quanto ao enquadramento; a apresentação do animal – se de corpo inteiro – é retratado de lado e deitado sobre as suas patas.
A fotografia é tirada ao nível da altura do bicho ou um pouco mais acima; o caçador apresenta-se por detrás do troféu, sobre os seus joelhos, de modo a evitar que apareça o calçado ou as suas pernas e, por vezes, a arma é colocada à frente e encostada ao corpo do animal, sem munição na câmara e numa posição de segurança.
Mesmo tirando o turista uma fotografia a uma espécie selvagem, no seu ambiente natural, pouco mais poderá acrescentar sobre a mesma, porque quase não interagiram. Limitou-se a observa-la de uma segura e controlada distância.
A fotografia do troféu de caça encerra uma história de perseguição, contada com grande entusiasmo e pormenor em relação ao local, às movimentações, à escolha daquele animal específico, à aproximação, ao disparo, à emoção sentida aquando do cobro.
Com o quadro de caça, o caçador, além de concluir um conto de vida e de morte, ao levar o troféu consigo e o expondo na sua sala, perpetuará as características, o comportamento e as qualidades de tão cobiçado animal, através da memória pessoal e da narrativa. Por outras palavras: em casa, devolve-o à vida e caça-o novamente.
No âmbito deste tema, aqui vos transcrevo “Caçadas No Meu Quarto”, da autoria de Eduardo Montufar Barreiros, retirado do seu livro “Caça – Memento Venator”, datado de 1900, que, para além de integrar um valioso documento histórico, constitui uma pérola da literatura cinegética nacional e é um auxiliar importante para a compreensão deste texto.
“Meio surdo; meio cego – porque a tanto corresponde o só ver com o auxílio de vidros de diversos graus – e trôpego – porque assim se pode chamar a quem pouco mais faz do que palmilhar quotidianamente pelas ruas de Lisboa – vão-se-me fechando, para a caça, progressivamente, como o bicho-da-seda, os âmbitos materiais da existência.
Mas não tenho tristezas, porque, em compensação, alargam-se-me os âmbitos da fantasia. E quando escarrancho as lunetas no nariz, ou quando ainda me faço puxar pelo burro nas ladeiras pedregosas da minha Arrábida, gozo nesses momentos – em que esses artificiais meios me transportam iludido, temporariamente, á realidade – mais do que não gozei quando, ali, vivia por mais tempo, sem consciência com os meus verdadeiros olhos, e as minhas desajudadas pernas.
E lucra-se, dia a dia, em ser surdo.
Surdo, porém, cego e entrevado, de todo, que venha a estar, ainda espero continuar caçando… a sonhar, então Deus é grande!
Agora uns pássaros quaisquer pintados em papel, recortados e colados nas paredes, e nas vidraças do meu quarto, povoam-no da precisa caça para, sem sair dele, todas as manhãs eu cair numa poltrona, extenuado do sem número de tiros que disparo.
E não há só esses pássaros – que eu tenho de transformar, com a imaginação, ora na rápida perdiz que me foge através do ar, e da qual me parece até ouvir o estrepitar das asas, ora na silenciosa galinhola, que se esquiva por entre o arvoredo dumas aguarelas do Perez de Castro, ora, finalmente, em codornizes, que me saltam detrás das flores de uma jarra.
Não há só esses pássaros; tenho, em quadros, a bem desenhada caça morta de Traviés; os grauss, os coelhos, e as raposas de Ansdell; e até gansos e veados de Badmer: brutinhos, que, vistos no ponto da espingarda, todos me parece saírem dos quadros, ressuscitados, e em movimento.
E, mais ao vivo, possuo ainda, pregada na parede, a cabeça embalsamada de um veado que matei – a valer – e cujos olhos de vidro, mais imorredouros que os seus naturais foram, nem a verdadeiros tiros agora morreriam.
Mas, na força da fantasia, prescindo até de uns e outros, e crio, sem que existam de todo, coelhos e lebres, que, junto do rodapé, e por entre os pés dos móveis, ou por detrás das árvores de um biombo pintado por minha mulher, se me afiguram acudindo às tocas, através dos matos rasteiros, ou saltando e correndo, às furtas e às carreiras, por entre bosques e balseiras.
Todos este bichinhos eu fuzilo, com tiros, de imaginação ainda, pois nem sequer desfecho a arma para não estragar a fecharia. São tiros que não fazem bulha, a não ser quando os imito com a boca: pan! Pan!
E não fazem gasto de cartuchos, e, melhor que tudo, não custam sangue.
Activam a circulação do meu, e nesse higiénico atear da vida, em que me esforço para recuperar a que o decorrer do tempo me vai levando, acodem, vivas, as imagens remotas do meu passado, a povoarem ainda esses limitados espaços do meu quarto.
Pelas janelas vejo, na realidade, horizontes largos donde emergem algumas das mais saudosas. Tenho a meus pés o amplo Tejo, tantas vezes por mim cruzado nas boas e más monções que lá me levaram á caça. Diviso as colinas da outra banda, com a Trafaria – a dos juncais quentes de codornizes – ao cabo; e, mais longe, a esbater-se, e a tornar-se misteriosa já, aquela serra da Arrábida, tão minha, ainda hoje o meu encanto, e o derradeiro sítio em que talvez caçarei. Lá adivinho, na depressão da serra, Calhariz, com o palácio e as matas, sítios que ressuscitam em mim doces lembranças de decorridos tempos.
Mas os olhos do meu espírito devassam os outros horizontes que á vista se me escondem: os das minhas outras caçadas por todo o meu país, essas que aí ficam nestes contos.
Não sei porquê, na perdiz que rapidamente me foge entre o grande retrato da minha avó – um pastel de Belolli – e uma aguarela de sem nome, vejo aquela perdiz que na Azambuja chumbei na volta de um cabeço, e que, derreada, se afastou de mim sobre o curto mato – continuação daquele de que saltara – e depois, voou por cima das vinhas verdejantes do vale, por entre as árvores de fruto e as oliveiras que ma escondiam, diminuída já de volume pela distância, mal se vendo só por fim, pelo reflexo do sol nas luzentes penas, até desaparecer, caída num cerrado de pedras soltas.
E lembro-me, que ao abrir os olhos, que fechara para descansar a vista, via ao pé de mim o meu perdigueiro com ela já na boca!
O caso era fantástico; e o olhar risonho do meu cão até me parecia diabólico.
Pois se és caçador – tu que me lês – já o mesmo, de certo, te aconteceu, pouco mais ao menos: a perdiz que o cão me trazia á mão não era ela; era outra, que eu matara com o mesmo tiro que fizera àquela, e que eu nem sequer vira.
E os tiros dobrados que eu acerto, desforrando-me assim dos poucos que fiz a valer?
Destes, dos verdadeiros, conto só dez em toda a minha vida de caçador; mas o extraordinário é que, desses, seis foram, num só ano, ás perdizes. Eram estas, perdigotas; mas um tiro dobrado… sempre é um tiro dobrado: não perde o mérito por mais fácil que seja a caça. O desdobrar a vista, o calcular o tempo, para, com serenidade e firmeza, apontar e derrubar as duas peças saltadas simultaneamente, sempre é difícil. Falo de um tiro dobrado feito assim, porque muitos caçadores dão esse nome a dois tiros, logo que os disparem seguidos, embora a caça não salte a um tempo… e chamam-nos assim, mesmo quando os erram. Desses, disparei muitos.
Foi aquela meia dúzia em Sintra, num ano já remoto, em que eu contava em mim os anos de Cristo, e em que a vida me sorria feliz em tudo.
Mas voltemos aos não menos alegres, nem menos felizes tempos de hoje, e aos tiros dobrados do meu quarto, que acertam sempre.
Nem só aos pássaros ou aos quadros os aponto. Hoje emparelharam uns a touca da Irmã de caridade, de um carvão de Brion, com a cruz das minhas espadas de Chobert.
Foram dois tiros que ligaram, por acaso, sem eu querer, esses dois símbolos de paz e guerra; ambos de abnegação e sacrifício de vidas. As armas, porém, são laureadas na terra por glórias, que a Irmã só espera no céu. (Barreiros, Eduardo Montufar: 297 – 301)
Tranquilo, lanço também os olhos para as minhas outras companheiras, menos nobres mas para mim mais queridas, que, através do vidro claro de um esculpido móvel, me espreitam, aprumadas e em linha, resplandecentes de cuidados e brunidos. Se com elas também algum tiro menos leal disparei, aí fica nestes meus contos confessado e assim remido.
E, amigas minhas e ciumentas entre si, vejo-as acotovelarem-se para ser cada uma a preferida quando alguma procuro! E como sinto estremecer e vibrar nas minhas mãos a escolhida, e afagar-me quando a aconchego á cara!
Até as últimas – a Baker, comprada ao Sousa, e a Greener dada por El-Rei, duas gentis «hamerless», conhecidas de ontem, e que ainda não experimentei, e talvez jamais experimentarei á caça – como elas respondem em carícias aos meus afectos, e como procuram, rivais das antigas, levar-me a expulsa-las!
E conseguem-no. A minha outra Baker, e a Relley, de cães á vista, as duas, com que eu tanto atirara, lá foram repudiadas já para estranhas mãos! Nem lhes valeram os históricos pergaminhos, á primeira, de vencedora em Philadelphia, e, á segunda, de manejada por mãos imperiais e régias em Rambouillet.
Só me não desfiz, e isso lá seria não ter vergonha! Das presenteadas: duas Barellas, iguais, que os Duques de Palmela me trouxeram de Berlim, uma carabina tirolesa, de dois canos, que meu tio Bedmar me deixou, e outra, a Werder, que El-Rei D. Luiz me deu.
Todas trato com igual carinho sem excluir a Colt, mercenária e rude, com que na Arrábida atiro ao alvo e defendo a caça. Mas desconfio que seja a senilidade que me faça pender demais para as jovens e viçosas. Serei castigado; isso é de prever. Desenganadas de que não irão comigo á caça, serão elas que afinal de mim se desprenderão, talvez quando o meu coração delas mais precise!
Até lá, porém, hoje com uma, amanhã com outra, e, de quando em quando, com as velhas para as não escandalizar, continuarei, enquanto puder, iludindo-as, atirando com todas às perdizes e aos coelhos que simuladamente me esvoaçam e correm pelo quarto.
Faltam-me todavia nestas caçadas os cães, que me tornariam maior a ilusão. Das molduras espreitam-me um griffon e um basset, e, de cima da estante dos livros, dois perdigueiros de Méne, de bronze; mas, indiferentes á minha voz, não consigo que se movam. E o meu perdigueiro, o de carne e osso, o que tão fagueiro – até demais – acode a mim, e tão bem me entende, afastei-o eu, em benefício seu (e economia minha nas licenças), para as montanhas da sadia Arrábida.
Seguem-me próximos, porém, os olhos espantados da minha consorte, mais compassivos – pelo que ela chama, indulgentemente, a minha maluqueira – do que nunca seriam, por mais que o fossem, os do meu desterrado, o «Sadi».
15 de Agosto de 1900” (Barreiros, Eduardo Montufar: 303 – 304)
O troféu de caça é, deste modo, a recordação de um lance de caça memorável, o testemunho do enredo em que participaram e se envolveram profundamente, num determinado cenário, tanto o caçador como a presa.
Além do prémio que representa, traduz a veneração de um animal especial.
Através da sua contemplação o caçador regressa à caçada e recorda cada um dos intensos momentos que partilhou com aquele animal.
Relembra pormenorizadamente o quanto teve de se esforçar, a concentração que lhe dedicou, as qualidades do animal e as movimentações de ambos. Muitas vezes o perigo que enfrentou e a sorte que teve em regressar.
Sem a memória e a narrativa do caçador que o conquistou, o troféu de caça esvaziar-se-á de conteúdo e de nada valerá.
O troféu de caça representa não o animal em si, mas a memória que o caçador dele possui antes de o ter capturado e na qual ambos revivem através da sua inédita narrativa.
Bibliografia consultada:
Barreiros, Eduardo Montufar (1900). Caça - Memento Venator. A Liberal - Officina Typographica
Marvin, Garry (2010). Living With Dead Animals - Hunting. Wiley-Blackwell
Imagem ilustrativa:
Monet, Claude (1862). Trophée de chasse.