30 de junho de 2009

A Caça à Narceja nos Açores

Divagações e algumas reflexões sobre a sustentabilidade da sua caça no arquipélago.

No início de Junho deste ano, quando regressava aos Açores depois de uma ausência de dois meses, surpreendi-me a pensar que há mais de um mês que não via uma narceja, o que já não me acontecia desde 2004: estar um mês sem observar narcejas…

Nas terras altas da Terceira

Contornando aqui o que esta confissão possa significar no domínio do patológico, depois de uma brevíssima passagem por São Miguel, viajei até à Terceira, em trabalho, e, logo que tive oportunidade procurei as pastagens altas da ilha, para os lados do Pico da Bagacina. Esta é uma zona onde ainda se encontram algumas áreas de pastagens naturais, com interessantes manchas de turfeira e juncos, e solos bastante húmidos, mesmo durante o período estival.

Entrei então numa pastagem que conheço bem, passeando sob o olhar curioso e atento dos touros, um elemento que faz parte da paisagem local. Após prospectar bem o terreno, durante mais de meia-hora, comecei a inquietar-me pela ausência de narcejas e por não lograr um único levante. Mesmo naqueles locais com “bom aspecto”, com juncos e alguma água. Ainda assim continuei. Aproximava-me então dum dos tão característicos – e “amaldiçoados” – muros de pedra solta quando, a cerca de meio-metro dos pés, me salta uma narceja, num “desajeitado voo de ave ferida”, a voar rente ao solo e indo pousar a algumas dezenas de metros de distância. Estaquei de imediato. Um passo a mais poderia significar a morte duma cria ou o esmagamento dum ninho. Com efeito tratava-se dum ninho. Com quatro ovos. E não se tivesse dado o feliz acaso da ave me ter saltado tão próximo, e de ter visto exactamente o local donde havia levantado, nunca teria descoberto este ninho, de tal maneira se encontrava bem escondido e camuflado entre a vegetação. Ali estava, num buraco perfeito entre as ervas, o ninho de narceja mais “invisível” que observei até hoje. Afastei-me do local rapidamente, de modo a não perturbar mais, permitindo que a fêmea regressasse o mais rápido possível à incubação dos ovos. Enquanto me afastava levantei uma segunda narceja, um macho, que ganhando altura se exibiu num ruidoso voo de parada, vocalizando no ar durante alguns minutos. Continuei por mais algum tempo, a procurar na restante área com potencial habitat de reprodução, não voltando a levantar mais nenhuma ave. No entanto, já próximo do carro encontrei os restos duma narceja morta (e predada*). Fiquei então a pairar num misto de exaltação e apreensão pelo que tinha assistido. Saía dali com a certeza de que o local ainda era uma zona de reprodução mas em estado de degradação/decadência. Quando em 2005 ali tinha feito um censo, existiam 2-3 casais de narcejas e agora existia apenas um.

No dia seguinte, uma visita nas pastagens vizinhas mais não fez do que acentuar a minha apreensão. Embora não tendo feito uma busca exaustiva, a observação de apenas mais quatro aves (e ainda os despojos duma segunda ave predada) deixou-me preocupado e a pensar no assunto durante os dias seguintes.

*Um juvenil não-voador e uma fêmea adulta, encontrados numa área relativamente reduzida, fazem adivinhar uma elevada mortalidade durante o período reprodutor, devido à grande vulnerabilidade das fêmeas durante a fase de incubação e às crias/juvenis enquanto estão dependentes dos progenitores.

No Planalto dos Graminhais

Alguns dias depois, já em São Miguel, fui até ao Planalto dos Graminhais, o único sítio nesta ilha onde existe a possibilidade de observar narcejas, durante a época de nidificação. Não visitava o lugar desde o início de Abril e estava com bastante curiosidade, para tentar perceber se eram evidentes os efeitos de uma época de interdição da caça no local. Esta foi a primeira reserva de caça, criada com o propósito de proteger esta espécie, não só nos Açores como a nível nacional. E muito bem, na minha opinião. Com efeito, não fazia sentido continuar a caçar-se a Narceja na única área de reprodução no Grupo Oriental. Menos ainda quando se sabe estarmos na presença duma população reprodutora muito reduzida, de cerca de meia-dúzia de casais (6-7 em 2005; 3-4 em 2008), que tem como zona potencial de nidificação uma área com menos de 100 ha.

Embora durante os meses de Outono e Inverno sejam ali caçadas/observadas, com regularidade, aves oriundas do continente europeu (a Narceja-comum Gallinago gallinago e a Narceja-galega Lymnocryptes minimus) e da América do Norte (a Narceja de Wilson Gallinago delicata), o risco de estarem a caçar- se as aves residentes/potenciais reprodutores era muito elevado e, com a minha experiência pessoal do local e de caça a esta espécie, diria que bastante efectivo. O abate de duas aves ali anilhadas (2007 e 2008), uma a algumas centenas de metros do local onde havia sido anilhada e a outra a poucos quilómetros, na Achada das Furnas, parecem corroborar estes receios.

Mas abandonemos por momentos as reflexões e divaguemos um pouco pelo Planalto dos Graminhais. Que, naquele dia, percorri embevecido e quase em extâse – se a felicidade existe este é o seu estado mais próximo – durante seis horas. Sem parar. Quase sempre envolto por um manto de nevoeiro ou, mais exactamente, pelas nuvens. O lugar é de uma beleza ímpar, coberto por juncos e almofadados montes de musgão, em infinitos tons de verde. E o nevoeiro e tempo chuvoso, que ali encontramos durante grande parte do ano, transmitem ao local uma aura de misticismo únicas. Embora desconhecido é, seguramente, o mais selvagem e belo local de São Miguel e uma das mais originais e antigas paisagens de Portugal. É também uma turfeira e, porventura, a pastagem natural e zona húmida de altitude mais bem conservada do país.

Além do aspecto lúdico e do evidente prazer pessoal que retiro sempre que vou aos Graminhais, esta visita proporcionou-me também, inesperadamente confesso, a confirmação de nidificação de três casais de Narceja: três crias (duas delas já “esvoaçantes”), acompanhadas por adultos, de duas ninhadas diferentes, e um ninho com quatro ovos. Se a descoberta das crias não me surpreendeu muito pela sua localização, pois deu-se na zona onde têm sido localizadas mais aves durante a época de reprodução, a descoberta do ninho deu-se num local “novo” onde, embora habitualmente ali observe uma/duas aves, nunca havia confirmado a sua nidificação. Ainda, o comportamento de algumas das outras aves levantadas/observadas faz-me pensar na forte possibilidade de mais 2-3 casais na zona. Cerca de 14 indivíduos diferentes observados (nunca havia observado tal número durante a época de nidificação) e, embora não tenha feito uma prospecção exaustiva, o que me foi dado observar faz-me pensar na possibilidade, bem real, de 5-6 casais na actualidade, se pensar que podem ter-me passado despercebidas algumas aves (sobretudo alguma fêmea, a incubar ou junto de alguma cria).





No terreno das especulações

Embora avaliando apenas as duas últimas épocas de reprodução, a comparação, talvez prematura, oferece-nos um quadro optimista. Esta avaliação, repito, é no entanto ainda feita “a quente” e, mais do que sustentada por um recenseamento, é resultado da observação directa e do conhecimento empírico que o autor tem da espécie nos Açores e, sobretudo, do estado da sua população no Planalto dos Graminhais.

Assim, este aparente aumento, poderá dever-se à:

- Interdição da caça = estabilidade e incremento da população reprodutora. Com efeito, após uma época sem se caçar na zona, “salvaram-se” não só alguns possíveis reprodutores como – habitat disponível existe –, eventualmente, devido ao sossego agora proporcionado, houve novos indivíduos a estabelecer-se na zona.

Ou, por outro lado a:

- Factores meteorológicos = aumento de habitat disponível e aumento da taxa de sobrevivência das crias. De facto, se chover com maior regularidade as aves poderão sentir-se, por um lado, impelidas a ocupar novos territórios, e por outro, se o clima for mais doce na altura da eclosão dos ovos, a possibilidade de sobrevivência das ninhadas aumenta.

Pessoalmente acredito mais na primeira possibilidade. E se voltar ao início deste texto, à Terceira, os “factos” clarificam-na. Na Terceira, na zona atrás referida (assim como nos restantes territórios de nidificação), está autorizada a caça à narceja. Até ao início da época pré-nupcial. Para se ter uma ideia, no dia 18 de Fevereiro, neste local, ouvi um macho a vocalizar (Chip-call), sendo que a caça a esta espécie havia fechado no fim de semana anterior… Se adicionar-mos o facto de a caça, ao coelho, ter aberto em Agosto, em toda a ilha, e revelarmos que no início de Agosto ainda podem existir crias e juvenis a ensaiar os primeiros voos… Depois, tem havido um aumento do número de caçadores a caçar à narceja e a exercer uma maior pressão sobre a espécie nestas áreas.

Se agora voltarmos ao Planalto dos Graminhais e pegarmos nas primeiras impressões do autor, depois de uma época em que a caça no local esteve interdita, por muito que nos esforcemos, teremos dificuldade em justificar aqui a manutenção da caça a esta espécie.

Poderemos ainda abordar a questão da ilha do Corvo. A única no arquipélago açoriano onde não se caça. A nenhuma espécie. E, embora com habitats de nidificação semelhantes aos que existem em São Jorge, Pico ou Flores, é a ilha com maior densidade de narcejas ou seja, aquela em que proporcionalmente existem mais narcejas. De longe.

Mas não deixemos aqui espaço para mal-entendidos. Não sou contra a caça à narceja. Pelo contrário. A narceja é uma espécie que, embora tendo sofrido um ligeiro declíneo nos últimos anos, a nível europeu, apresenta um estatuto de ameaça pouco preocupante, estando classificada pela BirdLife International como SPEC 3. E no nosso país, no Continente e nos Açores, é um invernante comum e regular. Apenas não concordo – acho mesmo que não faz sentido – que se autorize a sua caça nos seus territórios de reprodução. Sobretudo em locais onde os factores de ameaça são evidentes, como a degradação do habitat e reduzido número de efectivos populacionais. Penso que em alguns locais, como por exemplo aqueles que são referenciados no texto, não se devia autorizar a sua caça e, em relação às outras espécies, apenas se deveria permitir o exercício venatório entre Outubro e o fim de Janeiro.

Por exemplo, acho de uma imoralidade atroz (e inabilidade na gestão dos recursos cinegéticos) que nas Flores a caça ao coelho esteja aberta durante todo o ano, em todo o lado, e todos os dias. Não pelos coelhos, que são de facto imensos, mas pela perturbação que a sua caça pode causar noutras espécies, como as galinholas e as narcejas, que fazem o ninho no solo. E como estamos no campo da cinegética fiquemo-nos apenas por estas duas espécies.
Também aqui se deveriam proteger algumas zonas, pelo menos durante o período de reprodução.

Penso que no Pico e em São Jorge, devido às especificidades dos terrenos frequentados pelas narcejas (“pantanosos”, ventosos e chuvosos), assim como pelos efectivos existentes no Outono e Inverno, o impacto da caça será menor do que noutras ilhas. E, na verdade, o número de caçadores que ali caçam à narceja é pouco significativo. Por outro lado, em Santa Maria e na Graciosa, por serem ilhas onde a espécie não nidifica, pode-se ser menos escrupuloso com os locais e calendários venatórios.

Tal como para todas as espécies cinegéticas dos Açores, o calendário venatório deve ser feito e ajustado tendo em conta o seu estatuto fenológico e particularidades. Para tal é necessário conhecer bem a dinâmica das populações, em todas as ilhas, não só no período de Outono/Inverno como durante a época de reprodução. Como se sabe, em ilhas pequenas os ecossistemas e o equilíbrio das populações de aves é quase sempre muito frágil. Fazer censos regulares, durante todo o ciclo anual, e estudar a ecologia das espécies, é essencial para que se possa estabelecer um calendário criterioso: a bem da caça e da conservação.


Texto e fotos da autoria de Carlos Pereira

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