28 de agosto de 2011

Caçadas Portuguezas

As palavras que se seguem escorrem da pena de um dos mais ilustres caçadores portugueses, de cuja companhia tenho a felicidade de usufruir – e de partilhar.
Se dos meus livros sobressai uma valiosa colecção de literatura cinegética, a obra que se segue, é, sem dúvida, uma das suas referências, um acrescento de enorme qualidade que muito estimo.
Dá pelo nome de Caçadas Portuguezas, Paizagens – Figuras do Campo, cujo autor se trata de Zacharias d’ Aça, e foi editado no distante ano de 1898, pela Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, com sede no Largo do Conde Barão, n.º 50, em Lisboa.

Deixo-vos, então, Duas Palavras, título do preâmbulo que nos introduz à fabulosa leitura do volume supracitado:

Vai correr mundo este livro. Largando-o das minhas mãos, faço votos para que ele não naufrague no mar – umas vezes encapelado, outras vezes morto – da publicidade. Não arvora bandeira de facção literária, não lhe pus divisa, e, apesar do estrondear da fuzilaria, não vai a conquistar; mas o título diz que o anima o espírito da nossa terra – fala de coisas portuguesas.
De tigres e leões poderia eu contar histórias trágicas e horripilantes, mas nunca me defrontei com eles, e não me seduz o papel de cronista inconsciente de alheias proezas. O que se contém nestas páginas são as minhas impressões dum mundo muito próximo de nós, mas de que, quase todos os que escrevemos, andamos muito alheados – o mundo dos campos.
Os capítulos todos deste livro – afora dois ou três – são capítulos da minha vida, e quando os recordo alegra-se-me ainda o coração. E sinal certo de que foram dias bem passados, é que ainda não se me apagou da memória o sol, que os alumiou. Sol que brilha no passado, sol poente hoje para mim!...
Mas as nuvens, que ele doirava nas suas fantásticas evoluções, eram brancas e transparentes; fugitivas, como os sonhos da mocidade, não faziam manchas no céu, como também não me deixaram sombras na vida.
De quantos dias ela se compõe, estes de que aqui falo, e poucos mais, são os únicos que eu quereria reviver. Porque – não te direi, leitor amigo, se não é caçador, que não me entenderias, e aos que me podem entender não é necessário explicar-lho. Os entusiasmos e os arroubos da paixão só os compreende bem quem já os experimentou.
Do nascer ao pôr-do-sol sentimo-nos outros – estamos em contacto íntimo e constante com a natureza. O corpo e a alma têm a consciência, e estão no pleno exercício de todas as suas faculdades, de todas as suas energias; manifestam-se, desenvolvem-se, sem peias, nem constrangimentos. Alegra-se-nos a alma espraiando a vista pela paisagem, e essa alacridade sente-a também o corpo, recebendo, em cheio, as ondas desse banho enorme de luz; aspirando, a plenos pulmões, as largas correntes do ar puro e oxigenado dos campos e das florestas.
Há em todos nós alguma coisa do selvagem, um resto do homem primitivo, e esse, antes de tudo, foi caçador – preou, como quase todos os animais.
O civilizado, com requintes de trajo, de mesa, e de habitação, invenções de artes e ciências, esse fez-se depois – é obra do tempo. Os historiadores relegaram o primitivo para os primórdios da história, e parece-nos, ao lê-los, que o troglodita lá ficou sepultado nas suas cavernas. Mas não – ele vive, e, dentro de nós, como o escravo dos triunfos romanos, vencido e agrilhoado, veio-nos acompanhando, assistindo e resistindo a todas as civilizações. É ele quem faz os caçadores – e é esta a filosofia da caça.
E basta de prefácio e de filosofias, que me poderiam levar longe, e fariam efeito contrário no leitor, que me deixaria ir – sem me acompanhar.
Individualidade complexa, esta do caçador tem algo do soldado, do viajante, do aventureiro e do artista.
De tudo isto parece-me que o leitor encontrará alguns reflexos e vislumbres nas páginas destas narrativas. Quadros, cenas, paisagens, marinhas, figuras – tudo é desenhado ou esboçado do natural, com excepção da Tragédia da caça, que me foi contada por testemunha presencial, que não figura no lance, e do Final d’uma caçada – uma tradição da minha família.
E agora, para terminar esta apresentação, se tu, leitor benévolo, sentires, ao leres estas histórias, não o que eu senti, quando as vivi, porque seria impossível, mas um pouco do prazer que ainda tive ao escreve-las, dar-me-ei por satisfeito e pago do meu trabalho.
Vale.

4 de Junho de 1898

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