No início de Junho deste ano, quando regressava aos Açores depois de uma ausência de dois meses, surpreendi-me a pensar que há mais de um mês que não via uma narceja, o que já não me acontecia desde 2004: estar um mês sem observar narcejas…
Nas terras altas da Terceira
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Entrei então numa pastagem que conheço bem, passeando sob o olhar curioso e atento dos touros, um elemento que faz parte da paisagem local. Após prospectar bem o terreno, durante mais de meia-hora, comecei a inquietar-me pela ausência de narcejas e por não lograr um único levante. Mesmo naqueles locais com “bom aspecto”, com juncos e alguma água. Ainda assim continuei. Aproximava-me então dum dos tão característicos – e “amaldiçoados” – muros de pedra solta quando, a cerca de meio-metro dos pés, me salta uma narceja, num “desajeitado voo de ave ferida”, a voar rente ao solo e indo pousar a algumas dezenas de metros de distância. Estaquei de imediato. Um passo a mais poderia significar a morte duma cria ou o esmagamento dum ninho. Com efeito tratava-se dum ninho. Com quatro ovos.
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No dia seguinte, uma visita nas pastagens vizinhas mais não fez do que acentuar a minha apreensão. Embora não tendo feito uma busca exaustiva, a observação de apenas mais quatro aves (e ainda os despojos duma segunda ave predada) deixou-me preocupado e a pensar no assunto durante os dias seguintes.
*Um juvenil não-voador e uma fêmea adulta, encontrados numa área relativamente reduzida, fazem adivinhar uma elevada mortalidade durante o período reprodutor, devido à grande vulnerabilidade das fêmeas durante a fase de incubação e às crias/juvenis enquanto estão dependentes dos progenitores.
No Planalto dos Graminhais
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Embora durante os meses de Outono e Inverno sejam ali caçadas/observadas, com regularidade, aves oriundas do continente europeu (a Narceja-comum Gallinago gallinago e a Narceja-galega Lymnocryptes minimus) e da América do Norte (a Narceja de Wilson Gallinago delicata), o risco de estarem a caçar- se as aves residentes/potenciais reprodutores era muito elevado e, com a minha experiência pessoal do local e de caça a esta espécie, diria que bastante efectivo. O abate de duas aves ali anilhadas (2007 e 2008), uma a algumas centenas de metros do local onde havia sido anilhada e a outra a poucos quilómetros, na Achada das Furnas, parecem corroborar estes receios.
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No terreno das especulações
Embora avaliando apenas as duas últimas épocas de reprodução, a comparação, talvez prematura, oferece-nos um quadro optimista. Esta avaliação, repito, é no entanto ainda feita “a quente” e, mais do que sustentada por um recenseamento, é resultado da observação directa e do conhecimento empírico que o autor tem da espécie nos Açores e, sobretudo, do estado da sua população no Planalto dos Graminhais.
Assim, este aparente aumento, poderá dever-se à:
- Interdição da caça = estabilidade e incremento da população reprodutora. Com efeito, após uma época sem se caçar na zona, “salvaram-se” não só alguns possíveis reprodutores como – habitat disponível existe –, eventualmente, devido ao sossego agora proporcionado, houve novos indivíduos a estabelecer-se na zona.
Ou, por outro lado a:
- Factores meteorológicos = aumento de habitat disponível e aumento da taxa de sobrevivência das crias. De facto, se chover com maior regularidade as aves poderão sentir-se, por um lado, impelidas a ocupar novos territórios, e por outro, se o clima for mais doce na altura da eclosão dos ovos, a possibilidade de sobrevivência das ninhadas aumenta.
Pessoalmente acredito mais na primeira possibilidade. E se voltar ao início deste texto, à Terceira, os “factos” clarificam-na. Na Terceira, na zona atrás referida (assim como nos restantes territórios de nidificação), está autorizada a caça à narceja. Até ao início da época pré-nupcial. Para se ter uma ideia, no dia 18 de Fevereiro, neste local, ouvi um macho a vocalizar (Chip-call), sendo que a caça a esta espécie havia fechado no fim de semana anterior… Se adicionar-mos o facto de a caça, ao coelho, ter aberto em Agosto, em toda a ilha, e revelarmos que no início de Agosto ainda podem existir crias e juvenis a ensaiar os primeiros voos… Depois, tem havido um aumento do número de caçadores a caçar à narceja e a exercer uma maior pressão sobre a espécie nestas áreas.
Se agora voltarmos ao Planalto dos Graminhais e pegarmos nas primeiras impressões do autor, depois de uma época em que a caça no local esteve interdita, por muito que nos esforcemos, teremos dificuldade em justificar aqui a manutenção da caça a esta espécie.
Poderemos ainda abordar a questão da ilha do Corvo. A única no arquipélago açoriano onde não se caça. A nenhuma espécie. E, embora com habitats de nidificação semelhantes aos que existem em São Jorge, Pico ou Flores, é a ilha com maior densidade de narcejas ou seja, aquela em que proporcionalmente existem mais narcejas. De longe.
Mas não deixemos aqui espaço para mal-entendidos. Não sou contra a caça à narceja. Pelo contrário. A narceja é uma espécie que, embora tendo sofrido um ligeiro declíneo nos últimos anos, a nível europeu, apresenta um estatuto de ameaça pouco preocupante, estando classificada pela BirdLife International como SPEC 3. E no nosso país, no Continente e nos Açores, é um invernante comum e regular. Apenas não concordo – acho mesmo que não faz sentido – que se autorize a sua caça nos seus territórios de reprodução. Sobretudo em locais onde os factores de ameaça são evidentes, como a degradação do habitat e reduzido número de efectivos populacionais. Penso que em alguns locais, como por exemplo aqueles que são referenciados no texto, não se devia autorizar a sua caça e, em relação às outras espécies, apenas se deveria permitir o exercício venatório entre Outubro e o fim de Janeiro.
Por exemplo, acho de uma imoralidade atroz (e inabilidade na gestão dos recursos cinegéticos) que nas Flores a caça ao coelho esteja aberta durante todo o ano, em todo o lado, e todos os dias. Não pelos coelhos, que são de facto imensos, mas pela perturbação que a sua caça pode causar noutras espécies, como as galinholas e as narcejas, que fazem o ninho no solo. E como estamos no campo da cinegética fiquemo-nos apenas por estas duas espécies.
Também aqui se deveriam proteger algumas zonas, pelo menos durante o período de reprodução.
Penso que no Pico e em São Jorge, devido às especificidades dos terrenos frequentados pelas narcejas (“pantanosos”, ventosos e chuvosos), assim como pelos efectivos existentes no Outono e Inverno, o impacto da caça será menor do que noutras ilhas. E, na verdade, o número de caçadores que ali caçam à narceja é pouco significativo. Por outro lado, em Santa Maria e na Graciosa, por serem ilhas onde a espécie não nidifica, pode-se ser menos escrupuloso com os locais e calendários venatórios.
Tal como para todas as espécies cinegéticas dos Açores, o calendário venatório deve ser feito e ajustado tendo em conta o seu estatuto fenológico e particularidades. Para tal é necessário conhecer bem a dinâmica das populações, em todas as ilhas, não só no período de Outono/Inverno como durante a época de reprodução. Como se sabe, em ilhas pequenas os ecossistemas e o equilíbrio das populações de aves é quase sempre muito frágil. Fazer censos regulares, durante todo o ciclo anual, e estudar a ecologia das espécies, é essencial para que se possa estabelecer um calendário criterioso: a bem da caça e da conservação.
Texto e fotos da autoria de Carlos Pereira