Escrevo sobre a ilha de Santa Maria, donde a caça soltou amarras e navega sem rumo, ao sabor da indiferença dos ventos e das marés.
Na terra mais oriental do arquipélago açoriano, o acto de caçar surge com a chegada dos primeiros povoadores, verificada no início do séc.XV, depois de terem sido largadas, nos anos anteriores, diversas espécies animais com o propósito de proporcionarem alimento e condições de subsistência aos recém-chegados até que brotassem os primeiros frutos.
Inicialmente a utilização do pau era uma prática comum e generalizada, principalmente na caça ao coelho. Certamente a que proporcionaria mais jornadas, também realizada com a ajuda de cães, furões, ou com os dois.
O caçador deslocava-se munido de um bordão, geralmente de pau branco, madeira leve e resistente, ao qual, mais tarde, uniu uma foice, fabricada na forja, de menores dimensões e mais ligeira do que as que utilizava no trabalho campestre, para desatravancar caminho, introduzir nas fendas, levantar a presa ou sitiá-la, de modo a tornar possível a aproximação e, com uma pancada certeira, executar o cobro com sucesso.
Já não existem ferreiros que se dediquem, por inteiro, à laboração, pelo que as foices de Santa Maria dificilmente poderão ser adquiridas novas.
Os cães, devido ao isolamento e especificidade insular, acabaram por desenvolver características notáveis e de grande paixão por este tipo de caça.
Aquele mais afortunado fruía igualmente de furão. Eram utilizadas preferêncialmente as fêmeas por serem de menores dimensões e mais facilmente adestráveis. A sonoridade do guizo, que lhes era pendurado ao pescoço para facilitar a sua localização, motivava acaloradas discussões nos centros de reunião.
Eram transportados no aljabre, pequeno contentor, de forma cilíndrica, construídos em madeira, couro ou varas de vimeiro, por vezes artistícamente trabalhados.
Numa das extremidades era a porta, enquanto a outra permanecia vedada com a excepção de um pequeno orifício para o escoamento da urina do animal.
Somente em meados do século transacto se verificaram profundas alterações no modo de vida e consequente caçar ilhéu.
Para não comprometer a neutralidade portuguesa durante a II Guerra Mundial foi arquitectado um acordo entre Portugal e a companhia aérea norte americana Pan American, para a construção de um aeródromo que permitisse aos E.U.A. alcançar o mediterrâneo e Santa Maria, por acréscimo, vislumbrar o Séc. XX.
O choque cultural foi violento para esta comunidade. Ainda hoje persistem no vocabulário local palavras como “friza”, proveniente do inglês = freezer, que designa arca frigorífica, entre outras.
Na caça os efeitos não foram menores. Vulgarirou-se o uso da arma de fogo devido a trocas nem sempre idóneas e legais entre os trabalhadores e os militares. Aos poucos foram deixadas ao abandono tradições centenárias e desprezados os conhecimentos que as sustentavam. Os campos deixaram de ser cultivados, contribuindo a par da caça intensiva e do furtivismo para o desaparecimento total da perdiz vermelha nos anos oitenta e para a regressão populacional contínua das codornizes e dos pombos torcazes.
Urge debater, definir e aperfeiçoar medidas e acções que proporcionem a reorganização da actividade venatória e o ordenamento do património cinegético, sensibilizar as entidades políticas, económicas e científicas regionais para a caça como factor de diversificação de rendimentos e de desenvolvimento local, harmonizar os interesses dos caçadores com os demais cidadãos, levar a efeito acções de preservação, de desenvolvimento da fauna e da sua biodiversidade. Já não se justificam medidas, como a da ilha do Pico que permite caçar o coelho com auxílio de candeio e sem limite de peças até 2008 nas áreas de vinha, milho e produtos hortícolas. Porque razão não se optou pela deslocação dessas populações por biólogos da Universidade dos Açores, em parceria com os caçadores e os agricultores para locais onde a sua presença é deficitária?
Santa Maria é um exemplo real onde a pressão sobre a fauna cinegética supera todas as medidas no sentido de tornar a caça o elemento de gestão, conservação, estabelecimento da biodiversidade e desenvolvimento que deve ser.
É num misto de ansiedade e preocupação que aguardo os novos tempos.
Se a realidade se mantiver e nada for alterado no actual panorama cinegético, a curto prazo acabaremos por perder um importante recurso natural, uma porção significativa da nossa identidade cultural que nos identifica e distingue.
Texto publicado na revista "Caça & Cães de Caça" e no jornal mensal "O Baluarte"